quinta-feira, 10 de março de 2011

Filosofia

                              AS PALAVRAS E AS COISAS

Michel Foucault inaugura, com “As palavras e as coisas”, uma nova metodologia para se fazer uma investigação de um problema filosófico: a arqueologia dos saberes. O grande fator de ineditismo desta forma de se fazer filosofia consiste na análise dos discursos e práticas das mais diversas áreas do conhecimento – mas de uma forma muito diversa das que se costumam fazer. O paralelismo com a arqueologia tradicional se dá pelo fato de o filósofo “cavoucar” não apenas, mas principalmente, nas entrelinhas destes discursos e práticas – como o arqueólogo escava seus sítios. Depois de garimpados e tendo sido feita a triagem dos “cacos” dos discursos e práticas de seus domínios próprios, que logo em seguida são peneirados e separados, e devidamente catalogados pelo filósofo, pode-se passar ao estabelecimento de uma articulação e inter-relação entre seus diversos âmbitos de saberes, começando a constituir um cenário único e coeso, a despeito das naturezas várias dos quais se originaram – o que é igualmente semelhante ao trabalho do arqueólogo, quando este faz a triagem dos diversos pedaços de objetos diferentes que recolhe e que, sob um primeiro olhar, não se encontra nenhuma relação entre eles, mas que, a partir de uma análise desses fragmentos diversos, o arqueólogo consegue reconstruir – ou melhor, “reconstituir” ou “intuir” – uma configuração de mundo da qual esses objetos são oriundos. No caso de “As palavras e as coisas”, o que Michel Foucault vai procurar fazer para responder à questão da representação e conformação de saberes é estabelecer a instauração de seus sítios arqueológicos – ou seja, o campo onde vai buscar seus pressupostos e marcos teóricos e, é claro, suas premissas – nos domínios da Biologia (ou melhor, das Ciências Naturais), da Economia e da Linguagem, estabelecendo um intervalo histórico compreendido entre os séculos XV e XIX. Articulando, para este fim, discursos de pensadores proeminentes destas áreas no intervalo citado, como Adam Smith, Cuvier, Lamarck, Marx, entre outros.

O mediador e a solidão


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O filósofo Franklin Leopoldo e Silva mostra o significado que a Encarnação e o “escândalo” do Deus crucificado assumem na antropologia e na teologia do pensador francês Blaise Pascal
Franklin Leopoldo e Silva
Não há maior abandono do que estar exilado de sua própria essência. Que seja por um momento, viver esta situação é passar pela experiência de uma excentricidade radical e marcada pela exterioridade do sujeito a si mesmo. O abandono de si, a perda da integridade íntima, a ausência de referência interna configuram a pura fragmentação existencial, o absurdo de um existir que não participa do ser, como alguém atirado a uma distância infinita daquilo que o faria existir. O limite do exílio não está no esgotamento das possibilidades de deixar um lugar ou de partir para outro lugar, mas sim na impossibilidade do movimento: o exílio na modalidade do ser e não no significado acidental da mudança. O que resta para aquele que foi degredado de si mesmo? Que perdeu os limites referenciais do que é propriamente ele e portanto já não conta também com o impulso próprio para aspirar àquilo que o transcenda? Tudo isto pode ser resumido numa única pergunta: É possível conceber uma situação em que o desamparo ultrapasse os limites da própria solidão – quando o desamparo de si não permite que se conte sequer consigo mesmo, já que não se pode dizer que se está verdadeiramente em si?
Assim como há uma grandeza além das possibilidades humanas, há uma miséria aquém das possibilidades humanas. Foi esta a que Cristo experimentou: assim o entende Pascal em sua reflexão sobre o episódio do Getsêmani (1). Trata-se da tentativa de compreender, ou pelo menos de descrever, o paradoxo de uma miséria sobre-humana – ou sub-humana –, de uma dor que só Deus pode infligir, mas que também só ele pode sofrer. Paradoxo, porque a miséria absoluta, experimentada absolutamente, supõe uma espécie de autonegação da plenitude divina. Apesar desta dificuldade, não há como negar que a solidão e a angústia sentidas por Cristo no Jardim das Oliveiras não podem ser comparadas a qualquer sofrimento humano – e no entanto foi humanamente que ele sofreu, na vivência da miséria menos que humana, e por isto mesmo além do que qualquer homem poderia suportar. “(…) ele se fez pecado por mim e todos os vossos flagelos recaíram nele. Ele é mais abominável do que eu (…)” (553/919) (2). Jamais esgotaremos o significado da miséria em toda a sua profundidade; basta, para que se constate esta impossibilidade, observar que o resgate da miséria humana exigiu que Deus se fizesse mais miserável que o homem. Em que Cristo rebaixou-se mais do que os homens? Não foi através do sofrimento físico, tortura e morte na cruz. Foi através do sofrimento moral: a angústia diante da morte, o sentimento de abandono, a distancia dos homens e de Deus. O paradoxo que está envolvido na descrição desta agonia supera a medida de qualquer compreensão humana da dor: o Filho abandonado pelo Pai é Deus abandonado por Deus. É o momento do ser em exílio, quando o desamparo deixa de ser a qualificação ou o estado, mas se constitui como ser. Aquele que é absolutamente não sofre carência como privação de parte de seu ser. Ele é a absoluta carência, porque não participa de nenhuma positividade que viesse a constituir outra possibilidade de ser. O homem sofre a carência como privação porque, não sendo absolutamente, pode tornar-se ainda mais semelhante àquele de que participa, pois neste caso a privação envolve a possibilidade de ser em grau mais alto do que atualmente se é. A participação traz a esperança de ser na exata medida em que me priva de ser atualmente em sentido absoluto. Mas Cristo não sofre da mesma maneira a privação, porque não participa, e sim é em identidade de essência, aquilo que entretanto não é no regime de obediência à intenção salvífica de Deus. O homem é por Deus e por isto sofre para tornar-se mais do que homem e atingir o destino sobrenatural da alma. Cristo, enquanto verdadeiro homem, sofre por Deus na medida em que aceita o sacrifício em obediência ao Pai; mas a própria perfeição do seu sacrifício impede qualquer projeção de virtualidade: sua ação, perfeita, é absolutamente o que é, e assim também aquele que a pratica, já que a pratica em virtude de sua própria perfeição. Ora, disto decorre a impossibilidade de se pensar neste caso a aspiração a uma complementação de si próprio, de seu próprio ser. A magnitude do sacrifício exige vítima sem mácula: a ausência do pecado em Cristo constitui a solidão daquele que através da absoluta diferença pôde trazer a salvação. Parece estar de acordo com estas considerações a distinção que faz Pascal entre paixão e agonia: “Jesus sofre em sua paixão os tormentos que os homens lhe infligem; mas na agonia sofre os tormentos que a ele mesmo se impõe: turbare semetipsum. É um suplício de mão não humana, mas onipotente, e é preciso ser onipotente para suportá-lo” (idem). No quadro da miserabilidade, a onipotência se inscreveria muito mais num registro de obediência ativa à vontade soberana do que na perspectiva de poder. Pois na situação de abandono Cristo se distingue pelo sofrimento absoluto, o que de forma alguma indica simples passividade, já que a agonia e a paixão são aceitas livremente. Mas não se pode dizer, sem risco de ferir a ortodoxia, que Cristo sofreu um suplício “onipotente” porque é “onipotente”. Cristo suporta o sofrimento absoluto porque nele a virtude da obediência é absoluta, mas o suporta enquanto homem, a quem a ausência de pecado confere uma força que habitualmente falta à liberdade humana. Pascal procura alcançar o paradoxo do Deus abandonado por Deus através da idéia, implícita em sua meditação, de que a solidão e a dor do homem que também é Deus aparecem no quadro da angústia mortal do Cristo como uma espécie de sensibilização do absoluto. E isto indica a profundidade do traço trágico da existência em geral: mesmo o absoluto, quando se insere na esfera da existência, deve fazê-lo na forma da miséria, neste caso, absoluta. O Deus abominável, mais miserável do que o homem, traz na radicalidade da miséria o poder absoluto de reparar a ofensa feita ao absoluto. A magnitude impensável da dor da morte de Deus é signo de que para vir aos homens Deus teve que assumir a morte, para reverter a escolha humana da morte. “Minha alma está triste até a morte” (idem). Como poderia ser estabelecida a mediação entre a miséria e a grandeza senão pela intensificação da privação que a miséria comporta, para que a sua superação se dê através da vivência do que ela representa na totalidade do seu significado: a angústia mortal que atinge o espírito imortal?
A polaridade inscrita na função mediadora do Cristo faz com que ele sofra humanamente mais do que qualquer homem poderia sofrer. E a face humana do sofrimento se volta para a possibilidade do consolo. “Jesus procura algum consolo ao menos em seus três mais queridos amigos, e estes dormem; pede que suportem um pouco com ele, e estes o abandonam com uma negligência total, e com tão pouca compaixão que não podia sequer impedi-los de dormir um momento. E assim Jesus foi abandonado sozinho à cólera de Deus.” (idem) A atitude humana carrega em sua pequenez a patética coerência do espírito confinado ao corpo, a impossibilidade da vigília interior que afrontaria a angústia com a prece de consolo e de esperança. A oração é humana e é com os homens que Cristo desejaria fazê-la. Mas eles não compreendem a mediação, porque não podem avaliar a incomensurabilidade dos termos da polaridade que ela envolve. Por isto não participam do momento culminante da função mediadora, que é a agonia. Coerência patética, porque é por eles que Jesus agoniza, e eles não podem sequer assistir como expectadores. Coerência também inscrita na dramaticidade do momento, em que a dupla natureza de Cristo se manifesta inteiramente na sua misteriosa unidade: a angústia do homem relaciona-se com a grandeza infinita do sacrifício divino; a divindade do mediador torna impossível a solidariedade humana. A vigília é oração que supõe a misericórdia do Deus que ouve, mas é também o enfrentamento da cólera divina, pois o momento da agonia é a hora de assumir o pecado humano, a natureza e a história do mal, o peso da corrupção sobre os ombros de um único homem por meio do qual a natureza e a história serão redimidas. “Jesus está em um jardim não de delícias, como o primeiro Adão, onde este se perdeu e com ele todo o gênero humano, mas num jardim de suplícios, de onde se salvou e com ele todo o gênero humano” (idem). A relação entre o jardim de suplícios e a salvação retoma a que Pascal já estabelecera entre agonia e paixão. Adão se perdeu de Deus num jardim de delícias; o outro Adão vai ao encontro de Deus num jardim de suplícios. Que a agonia seja a mediação do reencontro com Deus indica a necessidade da transposição do abismo que se interpôs entre o homem e Deus a partir da queda. A profundidade do abismo marca a necessidade da dor profunda por meio da qual ele será transposto. Mas marca também que a agonia que precede a efetividade da mediação deriva do abandono de Deus, da distancia que provoca o seu ocultamento. Jesus está distante de Deus por ter assumido a miséria humana; e está distante dos homens por que deles o diferencia a grandeza necessária para assumir a miséria. A solidão da vigília configura portanto o laço que se estabelece entre a miséria humana e a grandeza divina, na mediação dolorosa da agonia e da paixão.
O tema do ocultamento de Deus, recorrente em Pascal, não sofre qualquer modificação substancial no tratamento da auto-revelação de Deus em Cristo. Por certo a Encarnação é vista como a vinda concreta de Deus ao encontro dos homens. Mas ao assumir a história humana Deus modificou o sentido desta história e instituiu os novos valores a partir dos quais ela deve ser vivida e pensada. A profundidade da transformação e o modo específico pelo qual ela se deu foram de molde não a confirmar as expectativas humanas mas sim a desconcertar os homens, contrariando as expectativas equivocadas acerca do evento messiânico. Por isto a passagem de Jesus é revelação de Deus para aqueles em quem a transcendentalidade da fé permite a compreensão do paradoxo do Deus ultrajado. Isto significa que tal compreensão permitiria a reciprocidade do encontro. Deus veio aos homens; estes irão a ele a partir da sensibilidade ao caráter específico da grandeza divina, que tem como requisito de compreensão o entendimento da especificidade do espírito. Neste sentido Pascal é profundamente agostiniano: a possibilidade de ver claro em Deus está diretamente relacionada à possibilidade de ver claro em mim. Por isto, mesmo após a Encarnação, permanece a dialética revelação- ocultamento. Deus se revela ocultando-se porque a iniciativa humana de ir a Deus está sempre comprometida com o confinamento do espírito. Em Pascal não existe uma oposição simples entre matéria e espírito. Mais importante do que esta dicotomia, é o comprometimento do espírito com a corrupção ocasionada pela queda. Por isto, também, “Jesus, enquanto seus discípulos dormiam, operou a salvação deles” (idem). Aprofunda-se assim o sentido trágico da polaridade grandeza-miséria quando assumida voluntariamente pelo espírito. Aquele que por infinita grandeza se fez mais miserável do que o mais miserável dos homens cumpre um destino de solidão precisamente por ser, diante dos homens, maior do que eles, e diante de Deus, miserável, portador da miséria de todos. A auto-revelação de Deus em Cristo produz uma nova significação do equilíbrio entre os predicados divinos. Se por um lado a ofensa ao ser infinito necessita, por justiça, reparação à altura da infinitude divina, por outro a possibilidade desta reparação repousa na intenção salvífica sustentada pela misericórdia. É o Deus misericordioso que faz justiça e a sua misericórdia é a única possibilidade desta justiça: por isto ela é perdão. Para atingir este novo equilíbrio entre justiça e misericórdia foi preciso que a própria divindade passasse pela agonia humana elevada ao seu paroxismo. É a virtualidade nunca antes atingida pela vivência da miséria humana no seu caráter abissal que separa o homem que sofre dos outros homens que dormem. Não é por não compreenderem Deus que os homens dormem enquanto Jesus vela; não é por não compreenderem o sacrifício divino que está para se dar que os apóstolos não manifestam a força do espírito vigilante. É por não compreenderem a medida extrema do sofrimento humano, por terem perdido, ou nunca terem tido, a compreensão sensível do nada em latência, da extraordinária privação intimamente constitutiva do homem. Não compreendem a necessidade da vigília porque não sabem o quanto um homem pode sofrer na situação de abandono do espírito. Pascal é sensível a este outro paradoxo, o da solidariedade pela qual tocamos o fundo do abismo: somente aquele que sofre absolutamente pode indicar aos outros a possibilidade-limite do sofrimento, a possibilidade recusada e recalcada de ser em exílio, de reconhecer-se a si mesmo na dimensão da privação total. A recusa da vigília solidária é neste caso a recusa de se saber em solidão, através do outro em quem ocorre em máxima potência a solidão de todo homem distanciado de Deus. A solidariedade em vigília, embora com aquele em quem a privação inerente à condição humana está muito além do que eu mesmo poderia experimentar, é ato pelo qual atinjo um conhecimento essencial de mim mesmo. “Jesus estará em agonia até o fim do mundo: é preciso não dormir durante este tempo” (idem). A vigília do espírito é requisito para que o homem esteja sempre junto de si mesmo. Por isto os homens são advertidos do perigo que eles mesmos correm (“zanga-se por causa do perigo a que expõem não a ele mas a si próprios”) ao distanciarem-se de si, desconhecendo a fraqueza e a necessidade de vigiar.
A vigília assim compreendida é o reverso ético da queda, condição ontológica em si irreversível, mas que pode ser convertida em salvação se o coração humano puder sentir Deus através da proximidade do seu poder, mais do que através da distância de sua essência. A idéia de que há uma dupla relação com Deus remonta aos primeiros tempos do Cristianismo: já Clemente de Alexandria enunciava acerca de Deus um poder exercido através da misericórdia; o poder de aproximar-se compensa a absoluta separação de essência, mas tal poder é mediado pela misericórdia cuja manifestação é a salvação, e portanto o Salvador. Daí a extraordinária importância que Pascal confere à figura de Cristo como mediador, já que a auto-revelação é inseparável da intenção salvífica. “Só conhecemos Deus por Jesus Cristo. Sem este mediador, fica suprimida toda comunicação com Deus; por Jesus Cristo conhecemos Deus” (189/547). “Não só conhecemos Deus apenas por Jesus Cristo, mas ainda conhecemo-nos a nós mesmos apenas por Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo não sabemos o que é nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos” (417/548). Aparece aqui o inteiro significado de Cristo chamar os homens à vigília, não apenas para orar com ele e participar da sua solidão, mas principalmente para que participem da própria solidão. Conhecer-se na solidão do Cristo é conhecer-se na essencial carência cujas conseqüências ele veio reparar; é conhecer Deus como causa desta reparação; é conhecer a vida e a história humanas através deste sentido fundamental ligado ao destino sobrenatural reafirmado por Deus pela mediação do Cristo.
Está presente também, na essencialidade da mediação, a distância de Deus e o seu ocultamento. Mas a própria distância indica a radicalidade da dependência da criatura: se fora de Cristo não sabemos o que é Deus, não sabemos também o que somos. Entre o ocultamento de Deus e a presença do Cristo mediador está a possibilidade dramática de o homem se encontrar, em meio a duas modalidades opostas de presença, a inefabilidade do absoluto e o Deus feito carne e história. A situação humana está tão intrinsecamente ligada à mediação, que o homem só pode vislumbrar algo de si mesmo através de oposições radicais, na instabilidade característica da oscilação entre os extremos. Como falar de uma essência humana, se o que o homem é brota da matéria do seu ser que é o nada, e o seu destino se projeta no plano da imortalidade do espírito, que de alguma maneira participa do absoluto? Por isto a chave da compreensão é a mediação e o mediador. E a manifestação da polaridade é a situação de agonia que é também de conhecimento: “Jesus está só na terra, não só para sentir e compartilhar a sua pena, mas para ter conhecimento dela: o céu e ele são os únicos que têm este conhecimento” (919/553). Não é possível supor a agonia do homem que viesse a conhecer a sua pena, derivada da justiça de Deus. Jesus conhece a sua pena, e é um conhecimento solitário, pois os homens não compreendem o significado sacrificial da mediação. Sentir a solidão é abandono; conhecer o sofrimento é agonia; a fusão do sentimento e da certeza totaliza a angústia. “Roga uma só vez que o cálice passe” (idem). Se a pureza do espírito e a condição filial permitem a comunicação constante e direta com o Pai, o peso do pecado assumido configura a distância: certeza de que a Vontade será cumprida, e angústia ante a magnitude do que será consumado. Por isto solidão angustiada, temor do que se sabe necessário, e que apenas ele sabe necessário.
Como associar uma tão intensa solidão à proximidade do mediador?
Nessa questão está a idéia pascaliana da permanência da distância, mesmo na aproximação sacrificial do mediador. O tema joanino da incompreensão dos homens atua aqui com dupla função. De um lado a incomensurabilidade entre o Logos divino e a compreensão humana; de outro a necessidade de corresponder à aproximação de Deus, participando da vigília e da agonia. “Jesus separa-se dos discípulos para entrar na agonia: devemos separar-nos dos mais próximos e dos mais íntimos para imitá-lo” (idem). De que valeria a meditação que se dá a partir da proximidade da fé se apenas repetisse o abandono daqueles que viveram a proximidade carnal? Não dormir até o fim dos tempos é algo que superaria a força humana se a decisão não fosse alicerçada na certeza de que morte e vida se inverteram na graça da salvação do espírito. Mas como tal inversão, e a doação da nova vida operaram-se a partir da agonia da solidão, em que Cristo separou-se para unir, nele, a miséria dos que não o acompanharam, temos, graças a isto, o conhecimento de que a solidão humana nos aproximará do Cristo. Imitá-lo na vigília é assumir a condição que ele tão intensamente viveu, e que é a condição humana do olhar que se perde na verticalidade da transcendência, no apelo ao Deus longínquo, que no entanto se fez próximo pela mediação, permanecendo distante pela incompreensão. Compreender a mediação, por isto, é compreender Cristo, Deus e a nós mesmos.
Mas a recusa humana da vigília configura, na manifestação da fraqueza, a incompreensão do apelo divino de participação do homem na tarefa de sua própria salvação. Os atributos denotadores da privação e da auto-referência da finitude ao seu próprio vazio atuam como elementos impeditivos da participação. Tais atributos, por provirem do nada enquanto matéria da criação, impedem que os homens reconheçam na angústia do salvador a face solidária de Deus. Assim fica cortada a ligação entre o homem e Deus no próprio momento que antecede a consumação do evento que reestabelecerá a vinculação rompida pelo pecado. “Vejo meu abismo de orgulho, de curiosidade, de concupiscência. Não há nenhuma ligação entre mim e Deus, nem entre mim e Jesus Cristo justo. Mas ele se fez pecado por mim e todos os vossos flagelos recaíram nele” (idem). A separação entre os homens e Cristo no intróito do sacrifício revela a magnitude da angústia vivida na mais absoluta solidão. É o peso do pecado de todos os homens que os separa de Cristo, que assume por eles a miséria humanamente irresgatável.
A inflexão histórico-salvífica que se desenha a partir da solidão do mediador abre a possibilidade de um novo projeto de existência para aqueles que desejam participar do plano de salvação. Vincular a minha existência a este momento revelador da dimensão eterna do perdão seria a única maneira de tentar estabilizar a oscilação constitutiva da condição humana. A miséria só pode relacionar-se com o absoluto através do perdão, mediante o qual Deus torna a voltar sua face para o homem pecador. Não há conhecimento, não há contemplação de Deus que não seja mediada pelo tremor da angústia inerente à consciência do pecado. Somente através da angústia posso reordenar a existência aos desígnios de Deus. Mas nenhum homem poderá jamais sentir a angústia que corresponderia ao afrontamento do  Deus ofendido. Por isto só recuperamos a possibilidade de sentir o olhar divino voltado para nós através da mediação daquele que enfrentou por nós a cólera divina. E assim é preciso tomar a si a tarefa quase impossível de retirar da profundidade da finitude a força necesária para participar da angústia solitária do Deus tornado homem e abandonado pelos homens. “É preciso juntar minhas chagas às dele, e juntar-me a ele, e ele me salvará salvando-se” (idem). A compreensão da mediação leva à reordenação da existência através da renúncia à falsa positividade dos atributos que configuram as cadeias da servidão. É preciso atentar para o profundo significado do propósito de juntar-se a Cristo: não se obtém desta forma a paz humana que ilusoriamente se atribui ao repouso na naturalidade da nossa condição. Pois juntar-se a Cristo é o mesmo que abandonar esta naturalidade, trocando-a pelo desejo de participação no mistério do sacrifício. É ao Cristo que se salva e que me salva que desejo juntar-me, e esta salvação é possibilitada pela agonia, paixão e morte. Assim, e na escala da finitude, tal participação significa assumir integralmente a perspectiva agostiniana da vita mortalis como preâmbulo da liberdade sobrenaturalizada.
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 O significado da relação fica assim  vinculado à necessidade de compreender a ação de Deus a partir da intenção salvífica manifestada na encarnação do Verbo. É este interesse prático que justifica a crítica às concepções meramente filosóficas de Deus e coloca o conhecimento mediado por Cristo como superior à racionalidade teórica. Esta mediação constitui o único meio de conhecer a Deus como Salvador, em que pese a distância essencial entre o homem e a divindade. A mediação que aproxima e a distância que separa configuram o mistério da presença de Deus na história e a vocação do coração humano para abrir-se ao apelo de Deus. “Consola-te. Não me procurarias se já não me tivesses achado” (idem). Como se constitui esta presença anterior a todo conhecimento e que manifesta a incompreensível união entre intimidade e distancia?
Em primeiro lugar, não atingimos o plano em que tal mistério pode ser pensado se nos ativermos às formulações sistemáticas da natureza humana de Cristo como princípio. É claro que a explicação das ações humanas de Cristo necessita de um ponto de partida que nos permita alguma compreensão do caráter intrínseco destas ações, caso contrário não conceberíamos Cristo como verdadeiro homem. Mas este princípio de operação traz consigo o risco de entendermos a natureza humana neste caso como princípio de ser e não do agir, o que faria com que compreendêssemos tal natureza como repousando em si mesma e não no dinamismo da sua ação. Com isto perderíamos o teor de solidariedade presente na dramaticidade histórica da vida de Jesus, que deve ser compreendida como plenamente integrada no evento salvífico. A atualização da natureza humana nas ações de Cristo é que confere concretude ao evento e mostra com todo vigor o caráter sacrificial a ele inerente. A salvação ocorre num espaço histórico no qual Cristo vem ocupar um lugar central; mas ele o ocupa dinamicamente e esta centralidade é constantemente manifestada em ações. Por outro lado este espaço histórico não é apenas aquele que corresponde à vida de Jesus, mas a toda a história da salvação, desde a Antiga Aliança, em que a Promessa salvífica é constantemente reiterada, principalmente nos episódios de infidelidade do povo e no contexto das profecias (3). Esta constante presença histórica da promessa da salvação é tematizada por Pascal nas Figuras do Antigo Testamento, que são as antecipações simbólicas do evento crístico. “Um retrato traz ausência e presença, prazer e desprazer. A realidade exclui a ausência e o desprazer. Para saber se a lei e os sacrifícios são realidade ou figura, é preciso ver se os profetas, falando destas coisas, nelas detinham a sua vista e o seu pensamento, de maneira que só vissem nelas essa antiga aliança, ou se viam nelas alguma outra coisa de que ela foi a pintura; de fato, num retrato, vê-se a coisa figurada” (260/678). A vivência histórica da promessa de salvação inclui a figuração da verdade. Neste sentido o tempo pré-cristão é regido pela lei figurativa, que guarda na significação oculta das palavras e dos atos a plenitude da verdade do acontecimento futuro. Tais manifestações prévias do evento central da história devem nos alertar para o dinamismo da ação salvífica de Deus. A ambigüidade do significado soteriológico da história está profundamente vinculado à realidade do evento salvífico e à especificidade da manifestação de Deus na história concreta vivida por Jesus. O fato de que esta realidade contrariou as esperanças que estavam unicamente depositadas na letra que enunciava a promessa é coerente com a necessidade de que a reparação do pecado ocorresse a partir de uma ressignificação da lei e da justiça. Neste sentido a humanidade de Cristo não poderia revestir-se da grandiosidade messiânica sugerida pela interpretação literal dos textos escriturísticos. A libertação da miséria espiritual supõe o rebaixamento da grandeza material. A especificidade da situação histórica da vinda de Cristo prende-se portanto ao significado espiritual da palavra de Deus. “Quando a palavra de Deus, que é verdadeira, é literalmente falsa, ela é verdadeira espiritualmente” (272/687). O entendimento das figuras torna-se portanto dependente da compreensão da tensão entre o desígnio de Deus, remetido à eternidade, e a figuração histórica deste desígnio no plano das contradições da experiência humana. A relação de contrariedade, que muitas vezes se constata, entre a figura e o figurado manifesta a pobreza das possibilidades humanas de responder historicamente aos sinais divinos.
Ora, o episódio do Getsêmani representa com dramaticidade esta tensão entre a vida histórica e a autorevelacão de Deus no evento de salvação. Além da necessidade de compreender dinamicamente a natureza humana do Cristo, o segundo ponto a ressaltar é o caráter atuante da justiça de Deus, que encaminha a história para o evento central da salvação. Ação humana de Cristo e justiça atuante de Deus não podem ser separadas senão a partir de uma compreensão demasiadamente essencialista de cada uma das naturezas presentes em Cristo. “Toda a história da vida de Jesus e todas as possibilidades de expressão, todas as figuras de actio e de passio humanas são postas a serviço deste evento de Deus. Aí é preciso afastar a idéia de que se permanece num paralelismo platonizante e numa justaposição da figura humano-corporal visível e da realidade divino-espiritual invisível.” (4) Os textos do Mistério de Jesus que comentamos acima mostram que Pascal entende que Jesus tem participação existencial no evento de Deus, isto é, na manifestação redentora da sua presença. Como pode tal participação existencial harmonizar-se com a natureza divina, sem que a existência venha a contradizer a essência? Se atentarmos para o fato de que o evento salvífico inscreve-se na história, e, mais concretamente, na história de Jesus através de quem ele se efetivou, poderemos dizer que a história da automanifestação de Deus é a história de Jesus e vice-versa. A justiça atuante de Deus está relacionada à atualização da história de vida de Jesus. Esta história de vida deve corresponder ao resgate da miséria humana. O momento crucial desta história individual, que antecede o resgate histórico do pecado humano, está caracterizado pelo mergulho no significado da situação-limite de toda história individual: o enfrentamento da morte. Pois a morte é também a atualização histórica da realidade de Jesus.Nesta situação- limite é que se traduz a face humana de um sacrifício sobre-humano. Para entender o inteiro significado deste momento culminante é preciso insistir ainda um pouco mais nos aspectos relativos à vinculação da temporalidade histórico-existencial aos atributos propriamente ontológicos da divindade.
É certo que a mediação se vincula à relação que o Filho e o Pai mantêm na vida intradivina concebida trinitariamente. Desta maneira não se pode ignorar a procedência trinitária do Logos em que Deus se automanifesta. Mas esta automanifestação é também autocomunicação, pois restabelece a união entre os homens e Deus. O mediador, portanto, a partir da relação trinitária que é identidade essencial entre o Pai e o Filho, realiza a comunicação necessária à salvação não apenas como portador, mas vivendo intra-historicamente o processo salvífico na dimensão humana. Não se pode então separar a realização de Deus em Cristo da humanidade de Jesus. Isto significa que há uma relação interna entre o homem Jesus e Deus, marcada pela especificidade da noção de envio. O entendimento correto da mediação não permite pois que se separe o evento crístico da realidade de Jesus. Jesus não é apenas o meio pelo qual Deus realiza funcionalmente a salvação; pelo contrário, esta só pode existir na e pela realidade humana de Jesus. No entanto, o que se realiza em Jesus está diretamente vinculado à filiação ontológica da Segunda Pessoa. Por isto o evento que Jesus protagoniza tem caráter absoluto e escatológico. Jesus concretiza o evento de Deus ao existir historicamente. “Jesus age sempre numa interna relação retrospectiva com aquele Deus que o envia e que se realiza nele. O caráter absoluto escatológico da promessa e exigência salvíficas de Deus transferem-se para o seu próprio falar e agir humanos.” (5) É preciso evitar duas posições unilaterais. A primeira delas é a separação entre a divindade de Cristo e a investidura salvífica, fazendo com que a independência de Cristo anule a intenção salvífica do Pai. A segunda é considerar que Cristo teria sido mero instrumento, sem realidade teológica própria, o que seria confundir o caráter sobrenatural da ação salvadora com a sua realidade histórica. A dificuldade que está na gênese destes dois riscos de interpretação é a da manutenção do significado dinâmico da união hipostática, conceito que parece resvalar sempre para um estatismo ontológico inerente aos princípios e categorias. Ora, a união hipostática deve ser considerada muito mais como acontecimento do que como princípio. Não se pode entender a mediação como ação a partir apenas de naturezas justapostas. O envio do Filho pelo Pai, a encarnação como realização de Deus em Jesus, a ação histórica que se dá como cumprimento da promessa salvífica, só podem ser compreendidos num horizonte dinâmico de atuação de Deus na história, e de Deus na pessoa de Jesus. Se a salvação só poderia ser realizada pelo Filho eterno, a ação salvadora manifesta-se no evento histórico de Jesus, na incompreensível identidade com o evento de Deus. Nesta relação está posta a unidade da procedência intradivina e da concretude histórica da salvação. “Muito longe de encobrir ou colocar em dúvida uma filiação intradivina preexistente, a filiação histórico-salvífica oferece precisamente o próprio fundamento e a compreensão para a eterna filiação preexistente. (…) A filiação histórico-salvífica somente se manifesta em toda a sua gratuidade e graciosidade no segundo plano da filiação eterna.” (6) A importância da filiação histórico-salvífica coloca em plano de destaque o evento salvador como missão na história. Isto significa que a história é em si mesma mediação da auto-revelação de Deus? A impossibilidade de responder a esta pergunta ilustra, por contraposição, a irrecusável facticidade do evento salvífico.
Com efeito, a pergunta só é possível a partir do fato do Deus que entrou na história. É um caso em que a possibilidade só pode ser afirmada depois do evento. Pois não se pode levar a interrogação até o plano de uma fundamentação da liberdade divina. A história humana está irremediavelmente comprometida com a corrupção. Tal estado provoca um tão grande afastamento de Deus que nem mesmo sabemos mais perguntar pela possibilidade de nos tornarmos ainda capazes de nos sentirmos em união com a divindade. Mesmo que suspeitemos que isto só seria possível a partir da livre iniciativa de Deus, manifestada na sua misericórdia, a distância que se interpõe pelo pecado nos impede de nos considerarmos dignos até mesmo da sua piedade. “(…) somos, de fato, tão baixos, que somos por nós próprios incapazes de conhecer se a sua misericórdia pode tornar-nos dignos dele” (149/430). Esta situação nos relega ao conhecimento post-factum da mediação histórica. “Por nós próprios” não somos capazes de Deus, nem podemos almejar uma comunicação que, a partir de nós, vença a distância aberta pela corrupção. Mas a profundidade da miséria tampouco seria sentida se, por uma peculiar relação que Deus estabelece com os homens, a magnitude do abismo não fosse mostrada pela grandeza do gesto de aproximação. “A encarnação mostra ao homem a grandeza da sua miséria pela grandeza do remédio de que necessitou” (352/526). Se a extrema miséria vela a consciência de si, que não poderia mesmo existir sem o sentimento da grandeza de Deus, é preciso que o enfermo se dê conta da gravidade do seu estado através do poder do remédio de que necessita para curar-se. Mas isto indica que a consciência da miséria é ao mesmo tempo o reconhecimento da grandeza. Esta simultaneidade aparentemente benéfica pode tornar-se perversa se, por inversão dos termos da comparação, a ilusão da grandeza provocar o orgulho, o que pode acontecer se entendermos que a ausência da consciência da miséria leva a confundir a extrema privação com a absoluta suficiência, pois o homem não se conhece se não conhece a Deus. Por outro lado, a hipótese da consciência da miséria sem a visão da grandeza provoca o desespero, fruto da conjunção entre miséria e solidão. A superação desta situação provém da estranheza do cristianismo: “O cristianismo é estranho: ordena ao homem que reconheça que é vil e até abominável; e ordena-lhe que queira ser semelhante a Deus” (351/537). A síntese destes elementos aparentemente inconciliáveis nos faz retornar ao significado da mediação e do mediador. “O conhecimento de Deus sem o da própria miséria faz o orgulho. O conhecimento da própria miséria sem o de Deus faz o desespero. O conhecimento de Jesus Cristo encontra-se no meio, porque nele encontramos Deus e nossa miséria” (192/527). Não podemos, portanto, entender que a história humana, explicitação temporal da miséria inerente à nossa condição, constitua lastro suficiente para sustentar a mediação entre o homem e Deus. Mas a intenção salvífica exprime uma misericórdia maior do que possamos conceber. E assim, a encarnação de Deus na história fez dela mediação, ao conferir ao tempo humano a dignidade para que Deus nele se expressasse. É a partir da gratuidade deste fato que compreendemos a mediação histórica como signo da dialética miséria/qrandeza constitutiva da condição humana. Há que se notar, então, que esta elevação da história à categoria de mediação ocorre porque a história torna-se, por vontade de Deus, moldura para o mediador, para sua ação salvífica no contexto humano. A salvação é evento, e portanto a história não é supérflua. Mas a sua posição mediadora decorre de que Deus a fez seu instrumento. Por isto a verdadeira significação da história remete às figuras com que nela Deus manifestou sua intenção reconciliadora.
De resto, tais figuras não se circunscrevem à história no nível dos eventos e de seu encadeamento. Elas possuem também um alcance antropológico, na medida em que a consciência da condição humana e o conhecimento que o homem tem de si vinculam-se aos avatares históricos de sua trajetória. Neste sentido, especial relevo merece a figuração em que se constitui a ambigüidade humana, o binômio grandeza/miséria vivido como contradição. E isto é importante porque o fazer-se homem de Deus se inscreve nesta ambigüidade, já que assumir a condição humana é viver a ambigüidade que a constitui. Verifica-se então uma estreita relação entre antropologia e teologia, na medida em que a referência ao Cristo como reordenador da peregrinatio humana torna-se a referência à contradição que na figura do Cristo assume a proporção da infinitização da finitude. “Fontes das contradições – Um Deus humilhado até a morte na cruz, um Messias triunfando da morte por sua morte. Duas naturezas em Jesus Cristo, duas manifestações, dois estados da natureza do homem” (241/765). A encarnação não envolve a transfiguração da humanidade, como quer um humanismo otimista. Quando Cristo assume a condição humana, ele não a assume pelo vértice de uma eventual nobreza contida na perfeição relativa do homem entre as demais criaturas. A encarnação significa tomar a si a carga do pecado, de forma ainda mais radical do que a toma cada um dos homens individualmente, porque Cristo o faz em nome da humanidade. É neste sentido que o triunfo da morte passa pela morte. O percurso humano do processo redentor manifesta então de forma intensa os “dois estados da natureza do homem”, pois a morte pelo pecado é resgatada quando a Vida se entrega à morte. A vida se transforma em morte para que a morte se transforme em vida. Assim é que a imanência de Deus à história humana aparece como ocasião de advento da consciência de si por parte do homem, não como certeza de sua natureza mas como sentimento trágico da ambigüidade de sua condição. Quando a morte é requisito para a manifestação da vida, é porque a mortalidade natural já se transmutou em condição moral de existência. Por isto o triunfo da morte através da morte é o triunfo do espírito, não da natureza.         Mas o triunfo do espírito é possibilidade aberta para aqueles que superam a fraqueza da carne, reconhecendo a miséria da alma naturalizada. É a vivência desta dupla condição que permite que o Cristo eleve o homem a partir do fundo de sua baixeza (7).
Pode a miséria humana transfigurar-se em relação positiva com Deus? A questão é complexa porque, mesmo que seja respondida afirmativamente, isto não suprime a negatividade da condição do homem, nem a negatividade transitória da condição humana de Cristo. É bem verdade que só o reconhecimento da miséria pode fazer com que o homem se sinta verdadeiramente diante de Deus, já que este “estar diante” inclui a infinita distância. Por isto é do fundo da negatividade que se vislumbra algo de Deus, sendo que este “conhecimento” não confere por si mesmo elevação alguma no que concerne à qualidade da condição humana. Pelo contrário, a afirmação da miséria é que provoca o desejo de Deus. E isto ocorre porque o Deus manifestado na história não está revestido da grandeza divina. Sendo assim, o caráter exemplarista da mediação exige que o encontro de Deus se dê através do reconhecimento da humildade e da humilhação do mediador. É nítida a procedência agostiniana deste percurso em que a elevação só é possível através da assunção radical da finitude. “Eu não tinha a humildade suficiente para possuir o meu Deus, o humilde Jesus, nem conhecia as lições que a sua fraqueza nos dava. De fato, o teu Verbo, verdade eterna, exaltado sobre as criaturas mais sublimes, eleva a si os que lhe são sujeitos, e ao mesmo tempo constrói nas partes inferiores, com o nosso lodo, uma habitação humilde, e assim faz que se arranquem de si mesmos aqueles que aceitam a submissão, a fim de atraí-los a ele, curando-lhes o orgulho e alimentando-lhes o amor.” (8) O finito só é capaz do infinito por via do conhecimento da especificidade da mediação, que institui uma peculiar relação entre fraqueza e força, já que a grandeza da redenção se vincula diretamente à miséria assumida pelo redentor. Por isto a máxima expressão de grandeza se dá por via das virtudes que são as mais opostas à grandeza no seu sentido natural e humano: a caridade e a humildade. Não há reconhecimento de Deus que não passe pelo conhecimento da humildade do Filho como realização da misericórdia do Pai. Não é por outra razão que a reconciliação com a eternidade passa pela angústia da mortalidade. “Era necessário, pois, que o mediador entre nós e Deus reunisse mortalidade passageira e beatitude permanente, a fim de ser conforme aos mortais no que passa e chamá-los do fundo da morte ao que permanece.” (9) A oposição entre mortalidade e beatitude configura o caráter dramático do apelo da graça: o caráter passageiro da vida terrena se ordena à permanente beatitude quando o mundo aparece como cenário da peregrinação. Estranhamento e exílio constituem assim os modos de valoração da existência, cuja negatividade, vivida radicalmente, está no entanto suspensa ao sinal de eternidade manifestado no caráter transitório da morte de Cristo. A mediação nele realizada entre a morte passageira e a beatitude permanente mostra que a profundidade da angústia de ser mortal é condição da abertura transcendental ao ser eterno e à esperança de eternidade.
Esta abertura transcendental não teria sentido se não estivesse relacionada com um apelo que provém do fundo da morte, se não tivesse sido afirmada, em toda a sua ambigüidade, pelas duas direções que os braços de Cristo indicam na cruz, e pelo próprio paradoxo do Deus crucificado. Qual o estatuto desta referência? Qual dos lados privilegiar? Se há em Pascal a busca do “ponto fixo”, é duvidoso que haja o encontro, ao menos como algo ou uma direção definitivamente fixados. A encarnação manifesta na dupla natureza do Cristo a ambigüidade da condição humana. Mas a cruz manifesta a entre-referência insuperável dos elementos que se opõem, de tal modo que a visão do mistério do Deus crucificado é também o sentimento da incompreensibilidade da condição humana. Teologia e antropologia se complementam no âmbito do mistério. “(…) é um Cristo imolado, um Cristo vítima, um Cristo dividido, um Cristo na cruz que constitui a verdade fundamental a partir da qual se destaca a própria figura distendida do homem.” (10)
Criatura dividida, o homem está exilado de si mesmo. O escândalo da cruz revela o paradoxo e, por isto mesmo, não explica a duplicidade constitutiva da condição humana. Isto nos indica que não é numa hipotética conciliação dos dois estados da natureza humana que se situa a possibilidade de o homem vir a reunir-se a si mesmo. A imagem da salvação é a imagem da dupla condição: entre as duas direções que os braços apontam, Cristo eleva ao Pai o olhar suplicante do Filho e retorna aos homens a face misericordiosa de Pai. Esta outra duplicidade revela aos homens a dupla possibilidade de viver o exílio. Pode-se vivê-lo como dilaceramento da natureza ou como sentimento abissal da distância entre o homem e Deus, figurado na distancia entre o homem e si mesmo, entre a corrupção e a semelhança divina. A primeira escolha resulta na dor da separação; a segunda faz da vida o transe da solidão. É esta que, potencializada em Cristo, permite ao homem aceder ao mistério da ontologia de si mesmo, na paradoxal coincidência com a sua ambigüidade.

Franklin Leopoldo e Silva
professor do Departamento de Filosofia da USP
NOTAS
1 “O mistério de Jesus”. Este texto, desde a edição Faugère, costuma ser incluído entre os Pensamentos, embora talvez originalmente não fizesse parte do projeto da Apologia.
2 Os fragmentos são citados a partir da edição Lafuma (primeiro algarismo) e da edição Brunschvicg (segundo algarismo). Neste último caso foi utilizada a tradução brasileira de Sérgio Milliet (Nova Cultural, São Paulo, 1988).
3 Cf. Wiederkehr, D., Cristologia sistemática, in Mysterium salutis, org. de Johannes Feiner e Magnus Loehrer, tradução brasileira da Editora Vozes (Petrópolis, 1985, volume III/4, págs. 20 e ss.).
4 Idem, ibidem, pág. 33.
5 Idem, ibidem, pág.  36.
6 Idem, ibidem, pág. 57.
7 “C’est cependant au paroxysme du sacrifice que se parachève l’Incarnation quand Dieu s’anéantit en Jésus-Christ pour rencontrer le néant de l’homme. Si la mort du Christ est requise de cette union, c’est que l’homme n’a de communication avec Dieu que dans la reconnaissance de sa propre bassesse.” Magnard, P., Nature et histoire dans l’Apologétique de Pascal, Societé Les Belles Lettres, Paris, 1975, págs. 383-4.
8 Santo Agostinho, Confissões, VII, 18. Tradução brasileira de Maria Luiza Amarante, Paulinas, São Paulo, 1984.
9 Santo Agostinho, A Cidade de Deus, IX, 15. Tradução brasileira de Oscar Paes Leme (Vozes, Petrópolis, 1991).
10 Magnard, P., ob. cit., pág. 379. A dramaticidade metafísica presente no evento redentor nos impede de ver em Cristo uma mediação hermenêutica, estritamente. Por certo o evento crístico abre a possibilidade, pela revelação, do conhecimento de Deus. Mas não se pode esquecer que a autorevelação de Deus ocorre neste caso como participação efetiva na historicidade trágica em que se explicita a opção humana pelo afastamento de Deus. Por isto não há como deixar de considerar insuficientes as considerações acerca do teor hermenêutico do evento redentor desenvolvidas por Force, P., Le problème herméneutique chez Pascal, Vrin, Paris,1989, pgs. 177-184.

 

O filósofo da existência


Kierkegaard surge como o herdeiro de Sócrates, Santo Agostinho e Pascal
 Alvaro Valls

Kierkegaard viveu 42 anos, quase sempre em Copenhague. Pensador urbano, convive mais com as pessoas do que com a natureza. Nasce em 1813, “ano em que muitos títulos sem valor foram lançados no mercado”. Sua obra, crítica do romantismo inconseqüente, da especulação solta e da religião de fachada, pode ser lida como Wittgenstein recomenda: é uma escada, que se deixa após a subida, pois a intenção, o que quer dizer, é que o indivíduo é responsável por sua existência, eterna.
Do pai herdou a melancolia. Mas seu mestre foi o poeta, professor de moral e filosofia antiga, Poul Martin Moller, que o ligou a Sócrates, Platão e Aristóteles e ao estudo da ironia e do humor, apoiou-o na crise religiosa, na recuperação das convicções, e era companheiro para um copo de vinho. Moller não gostava de Hegel. A dedicatória do Conceito de angústia situa o autor como seu herdeiro intelectual. Essencial foi ainda o noivado com Regina Olsen: mesmo após o rompimento, ela perpassa sua obra como a primeira ouvinte dos discursos.
Defende dissertação Sobre o conceito de ironia, constantemente referido a Sócrates. Pinta o irônico, num cálculo combinatório de Xenofonte, Platão e Aristófanes, até obter o retrato paradoxal do Sócrates histórico; e analisa a ironia romântica, de Fichte, Schlegel, Solger e Tieck. A banca, sem conferir a afirmação de que só a ironia de Sócrates se justificava historicamente, sem perguntar se o jargão hegeliano era uso ou abuso, aprova a tese sem pedir correções.
Vai a Berlim e perde a chance de escutar Trendelenburg, crítico da Lógica. Entusiasma-se quando Schelling fala da Realidade, mas logo se decepciona. Retorna com uma obra em dois volumes, um contendo uma visão hiper-romântica, a culminar no Diário do sedutor, e outro com o ensinamento de um juiz, casado e instalado em convicções éticas e religiosas, Guilherme. A teoria do Selv, na segunda parte de A alternativa, traduz o conhece-te a ti mesmo para a prática, daí o verbo que indica eleição: querer ser si mesmo.
 Surgem Dois discursos edificantes, talvez a verdadeira alternativa, entregue com a direita e recebida com a esquerda. A expectativa da fé lamenta, na virada de ano, que um humano não possa presentear o bem mais precioso. A relação volta à forma socrática: não há mestres entre os homens, só auxiliares. O segundo discurso lembra que tudo o que é bom vem do alto, do Pai das luzes. Um trata do tempo, o outro, do sentido dos entes. São seguidos por mais três, depois quatro discursos, e o mesmo se dá em 1844, chegando a oitenta. O que são discursos? Ensaios filosóficos com um mote bíblico, tão edificantes que “quase poderiam ser chamados sermões”, mas que não o são pois não têm a autoridade do ministro ordenado e só apelam à compreensão (não à revelação), refletem sobre o sentido da vida usando noções religiosas no condicional: se o ouvinte crê, busque as conseqüências.
Quem viu Guilherme definir uma ética de tipo cristão com base idealista, vê outro pseudônimo, Johannes de Silentio, poeta trovador metido a filósofo, dizer que é mais fácil entender Hegel que a performance de Abraão ao levar Isaac para o sacrifício. O Pai da fé não pode falar a verdade, como o exigia Kant, e se relaciona com um Absoluto que transcende a ética, contrariando o Sistema.
Surge mais um livro, A repetição, trazendo um conceito-chave, distinto da repetição mecânica, pois se trata de uma retomada, recomeço do mesmo em novas condições. Repetição não é reminiscência.
Migalhas filosóficas tem estilo algébrico. Climacus não quer convencer: traça dois modelos que por hipótese devem ser opostos; o socrático (platônico), é seguido por muitos filósofos até Hegel. O homem está na verdade, a verdade no homem, a questão é recordá-la. O tempo não tem significado decisivo, o mestre não passa de auxiliar. O modelo B não tem nome, mas pressupõe homem e verdade separados, de modo que o Mestre e o instante do encontro adquirem valor absoluto. Encontrar ou não a verdade torna-se questão existencial. O Mestre seria um fato absoluto, história que transcende os tempos.
Kierkegaard personifica os problemas: Don Juan, Fausto, o Judeu errante e Abraão. Haufniensis, no Conceito de angústia, fala de Adão e dos homens posteriores. Estuda a liberdade como condição de possibilidade do que os teólogos chamam pecado. Pode haver um pecado hereditário? Como deve ser uma liberdade capaz de pôr o pecado? Qual a função da angústia no processo individual e histórico? A antropologia dialética interpreta o homem como fruto de uma síntese de tempo e eternidade, de finitude e infinitude.
Nos Estádios no caminho da vida, a estrutura quádrupla prevista virou tríplice: estética, ética e religiosa. Daí a tendência de ler o pensamento de Kierkegaard na chave de uma teoria de três estádios, que não é estrutural na obra, tanto que alguns dos principais títulos abstraem do esquema, que aliás poderia ser binário (estético x ético-religioso) ou até quaternário (religiosidade paradoxal como quarto estádio). Estádio lembra percurso, etapa, não se trata de estágios. O divertido prefácio de Hilarius Bogbinder (o encadernador que edita), justifica a miscelânea: In vino veritas narra um banquete onde se discute a mulher, a beleza e o amor, em perspectiva estética; Considerações sobre o matrimônio, por um esposo, de Guilherme, traem agora uma moral convencional, mais estóica que cristã, pois só interessa vencer o tempo; enfim, Culpado? – Não-culpado? tem uma parte retratando um ex-noivo a tentar descobrir o significado religioso de seu destino, e outra com as reflexões de seu psicólogo Frater Taciturnus.
Climacus elabora o longo Postscriptum final não-científico às Migalhas filosóficas (o que mais influenciou Sartre). Após elogios a Lessing, tira conseqüências do modelo “não-socrático” das Migalhas. O problema aparece em vestimenta histórica, discute-se o significado do fenômeno do cristianismo. Como um pensador existente vem a relacionar-se com o cristianismo e sua pretensão absoluta? Deve poder dizer sim ou não. Daí a noção do pensador subjetivo. Só na subjetividade há verdade e inverdade. Verdade é verdade para alguém. E também é prática: edifica, constrói sobre fundamentos. Distinto do avulso, reproduzido na multidão, o indivíduo verdadeiro é único “diante de Deus” e “redator responsável” da existência. Climacus não consegue ser cristão, devido ao paradoxo do cristianismo, que continua “escândalo para os judeus e loucura para os pagãos”.
Alguns dos mais belos livros surgirão na outra metade dos anos 1840, que Henri Vergote chamou de segundo percurso. O autor repete ali seus grandes temas e, se os desenvolve filosoficamente, o faz a partir de pressupostos do dogma cristão (ética segunda). Os Discursos edificantes em vários espíritos têm três partes. O maior deles, Pureza de coração (querer uma só coisa, contra o coração dividido que só quer até certo ponto), é um quadro de crítica social da idade de ouro da burguesia culta que rodeia o Bispo Mynster e busca aos domingos uma hora de recolhimento nas suas sábias palavras. A segunda parte do livro traz três discursos sobre as aves do céu e os lírios do campo, com enfoque estético, ético e religioso. A boa nova aparece nos sete discursos da terceira parte, Evangelho dos sofrimentos, tão atuais na época de Schopenhauer e Nietzsche quanto na nossa.
De 1847 são também As obras do amor, com duas séries de considerações cristãs em forma de discurso. A primeira analisa o mandamento “Tu deves amar o teu próximo”. Cada um desses termos é estudado num longo texto sem rodapé. Já a segunda série interpreta e comenta os versos do “Hino à caridade”, da epístola aos Coríntios.
Michael Theunissen, em Heidelberg, considerava um testamento espiritual A doença para a morte, traduzido como O desespero humano. A má tradução se deve também ao método negativo do pseudônimo Anticlimacus, que percorre as formas de desespero para chegar ao estado de um eu que assume a si mesmo, fundando-se transparentemente no poder que o pôs. O livro define o saber cristão como solícito, cuidadoso, “como a fala do médico à cabeceira do paciente”. O cuidado (Sorge, em Heidegger) orienta a realização das sínteses que constituem o ser humano.
Surge A escola de cristianismo. A obra, que enfurece o bispo, parte da idéia de que quem convida não é o Cristo Rei, mas o servo humilde de Javé. O ouvinte está livre para um sim ou não: fé ou escândalo. Anticlimacus lançara o conceito de testemunha da verdade. Sempre o interessou a verdade vivida, no seguimento de quem disse: “eu sou a verdade, o caminho e a vida”. Mas se a cristandade é ilusão e ninguém se pauta pelo crístico, medite-se sobre a figura do mártir, que morre humilhado. Há um abismo entre a vida cristã real e “o cristianismo do N.T.”. Morre Mynster, pregador da corte, é enterrado “com banda de música” e Kierkegaard silencia, mas Martensen qualifica o falecido de “uma das testemunhas da verdade, das verdadeiras testemunhas da verdade”, e a reiteração passou da conta. O polemista planeja o combate que só explode meses depois. A polêmica começa suave, em tom jocoso, no artigo: “O bispo Mynster foi uma testemunha da verdade, uma das verdadeiras testemunhas da verdade. – Isto é verdade?
Atuando na tradição irônica, arma nas ruas da capital o palco da luta contra a igreja. Em artigos e panfletos distingue cristianismo do Novo Testamento, cristandade (falsa) e “cristicidade”, conceito filosófico, quando essência e aparência se afastam. O combate é socrático: se os outros ficam nas premissas e não tiram as conclusões, tira conclusões sem explicitar as premissas.
Morre incomodando. O sobrinho interrompe as cerimônias do enterro com um artigo do tio que diz: na Dinamarca um pensador é enterrado como cristão mesmo que afirmasse não o ser. “Digo e tenho de dizer que não sou cristão”, consta num texto póstumo. Socrático: se todos o são, devo dizer que não o sou.
Que se faz com um autor incômodo e brilhante? Tomam-se medidas defensivas: a recepção ignora três quartos da obra, os Diários, a Dissertação (plataforma metodológica) e a polêmica, para torná-lo um autor interessante, aceitável em salões e academias. Resta uma obra insípida e vem a última lenda: que esconde nos pseudonímicos o que revela nos veronímicos. O Mestre da ironia não é só inocente, é inofensivo.
Vergote e Politis captam as idéias centrais: sentido, repetição, ironia, cristicidade, amor ao próximo, existência, salto, instante. Ele próprio salientava uma categoria decisiva: “Nunca li na Escritura este mandamento: amarás a multidão; e menos ainda este: na vida ética e religiosa, reconhecerás na multidão o tribunal da ‘verdade’.” Recusa o egoísmo, mas o próximo, que devemos amar, é um indivíduo. “Para mim, como pensador e não pessoalmente, a questão do Indivíduo é decisiva entre todas.” “O ‘Indivíduo’ pode significar o homem único entre todos, e também cada qual, toda a gente.” Se o primeiro sentido é o essencial, há quem o confunda com “o Único” de Stirner. Tisseau traduz com maiúscula e distingue Indivíduo de indivíduo. Kierkegaard não temia a ambigüidade: “Só um jovem poderia lembrar-se de evitar completamente todo mal-entendido quando se trata de empreender alguma coisa.” Ser homem individual é a condição de toda religiosidade; impossível edificar ou ser edificado en masse. “Se tivesse de pedir que me pusessem uma inscrição no túmulo, não quereria outra senão esta: ‘Foi o Indivíduo’”.
Kierkegaard questiona os hegelianos e usa a maiêutica de modo original. Seu jeito de levar a sério fenômenos como tédio, angústia e desespero, sua busca do sentido da vida e do papel que sua existência deve desempenhar, mais o esforço por impedir as fugas pelo romantismo e pelo idealismo sem compromisso com a moral, fazem dele um filósofo da existência, herdeiro de Sócrates, Agostinho e Pascal. Antecipa muito do pensamento de Heidegger, mas só Jaspers confessa a dívida. É fácil vê-lo por trás de Sartre (até no uso da literatura e na panfletagem nas ruas), mas marcou Adorno, na defesa do não-idêntico, e Wittgenstein. Na literatura, acompanha Dostoiévski, Kafka e Camus, e hoje Max Frisch explora seus temas. Sua marca em Barth é conhecida, mas também está no coração da teologia de Tillich.
Alvaro Valls é Professor do Departamento de Filosofia da UNISINOS e atual presidente da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia)

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