terça-feira, 31 de julho de 2012

vídeo a Alma encantadora das Ruas






Estou postando aqui,na íntegra o livro A Alma Encantadora das Ruas de João do Rio.Boa leitura!
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http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/alma_encantadora_das_ruas.pdf



Estudos sobre A alma encantadora das ruas, de João do Rio







A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

AUTOR
João do Rio – Paulo Barreto (pseudônimo literário: João do Rio), jornalista, cronista, contista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de agosto de 1881, e faleceu na mesma cidade em 23 de junho de 1921.
            Fez os estudos elementares e de humanidades com o pai. Aos 16 anos, ingressou na imprensa. Em 1918, estava no jornal Cidade do Rio, ao lado de José do Patrocínio e o seu grupo de colaboradores. Surgiu então o pseudônimo de João do Rio, com o qual se consagraria literariamente. Seguiram-se outras redações de jornais, e João do Rio se notabilizou como o primeiro homem da imprensa brasileira a ter o senso da reportagem moderna. Começou a publicar suas grandes reportagens, que tanto sucesso obtiveram no Rio e em todo o Brasil, entre as quais "As religiões no Rio" e o inquérito "Momento literário", ambos reunidos depois em livros ainda hoje de leitura proveitosa, sobretudo o segundo, pois constitui excelente fonte de informações acerca do movimento literário do final do século XIX no Brasil.
            Deixou obras de valor, sobretudo como cronista. Foi o criador da crônica social moderna. Como teatrólogo, teve grande êxito a sua peça A bela madame Vargas, representada pela primeira vez em 22 de outubro de 1912, no Teatro Municipal. Ao falecer, era diretor do diário A Pátria, que fundara em 1920.
            Obras: As religiões do Rio, reportagens (1905); Chic-chic, teatro (1906); A última noite, teatro (1907); O momento literário, inquérito (1907); A alma encantadora das ruas, crônicas (1908); Cinematógrafo, crônicas (1909); Dentro da noite, contos (1910); Vida vertiginosa, crônicas (1911); Os dias passam, crônicas (1909); A bela madame Vargas, teatro (1912); A profissão de Jacques Pedreira, novela (1913); Eva, teatro (1915); Crônicas e frases de Godofredo de Alencar (1916); No tempo de Wenceslau, crônicas (1916); A correspondência de uma estação de cura, romance (1918); Na conferência da paz, inquérito (1919); A mulher e os espelhos, contos (1919).

GÊNERO – crônicas.

COMENTÁRIO SOBRE A OBRA
            Publicada em 1908, a obra é composta por crônicas, individuais ou formando uma reportagem, que de forma sensível revelam um aspecto psicológico e obsessivo. Os textos de João do Rio primam por uma referência emocional. Ao descrever a realidade observada, investigada e descoberta por ele, enquanto repórter jornalístico, expõe o que vê com fortes tintas emotivas, demonstrando sentimentos que vão da docilidade à náusea.  

A RUA

            Na crônica “A rua” o emissor declara o seu amor pela rua. Define-a metalinguisticamente através de conceitos dicionarizados e poéticos, mas acrescenta que ela é mais do que eles apontam: as ruas têm alma, são entes vivos, pensam, têm idéias, filosofia e religião. Para ele a rua é a civilização da estrada, faz o indivíduo. Existe uma estética da rua, uma psicologia de construção e alinhamento. Porém, adverte o leitor que para compreender a rua é preciso ter espírito vagabundo, praticar a arte de flanar; inclusive, porque “a alma da rua só é  inteiramente sensível a horas tardias”. O cronista conclui dizendo que é impossível evitar a rua, ela é interminável, universal e possivelmente sobreviverá ao próprio universo em trevas.

O QUE SE VÊ NAS RUAS

Pequenas profissões
            O cigano, vendedor ambulante de calças e anéis, aparece como “ave de rapina” e o possível comprador como “vítima”. Além dessa, o Rio apresenta outras “pequenas profissões exóticas, produto da miséria”, profissões ignoradas: trapeiros sabidos, apanha-rótulos, selistas, ledoras de sorte,  ratoeiros, caçadores, marcadores (fazem tatuagens). Todos esses trabalhadores são apresentados através do diálogo entre Eduardo e o narrador. É o amigo que vai apresentando os tipos humanos e filosofando sobre eles. De certa forma, Eduardo tenta humanizar os malandros, já que para ele “a moral é uma questão de ponto de vista”. Trata-se de uma crônica de crítica social.



Os tatuadores
            Também aqui a crítica a aspectos sócio-econômicos se evidencia. A partir da abordagem de um menino tatuador a um rapaz, o narrador apresenta a definição da palavra tatuagem e parte para os significados que ela tem em diferentes culturas. A seguir apresenta os três casos de tatuagens no Rio: a dos negros (fetiche - o crucificado), a dos turcos religiosos (iniciais, corações, símbolos sagrados) e a das meretrizes e toda a classe baixa do Rio (que pintam de tudo, sereias, letras, cobras, Cristo...). Com o Madruga, chefe dos tatuadores, o narrador perambulou três meses observando tatuadores e tatuados. Tatuam-se soldados, marinheiros, vagabundos, criminosos, barregãs e portugueses. Tatuam-se porque é bonito e apresenta significados. Os lugares são as costas, as pernas, os braços, as mãos; no peito, figuras sagradas. Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas. Depois de muito observar, o narrador conclui que ser tatuador pode ser mais interessante que ser amanuense de secretaria.

Orações
Nesta crônica, a crítica está no âmbito religioso. Há oração para curar todos os males e pode ser feita até para santos inexistentes para o Papa. As orações acompanham o homem do parto ao túmulo. Pode ser feita diretamente a Deus, aos santos, ou a Deus através dos santos. Há orações para acabar com trovões e raios, para salvar e para matar, para o bem e para remediar o mal, para pedir e para agradecer. Há orações sem concordância pronominal... As orações tornam os vendedores supersticiosos..


Os urubus
            Através de um informante, o narrador toma conhecimento de uma classe de pessoas que vive às custas da dor e do sofrimento dos outros, provocados pelo luto. Os urubus, como são conhecidos, ofertam serviços funerários e agem com uma organização bem estruturada, que vai do acompanhamento dos casos graves e das mortes súbitas nos hospitais aos “reporters” que anotam todos os dados importantes dos pacientes. Estas pessoas estão o tempo todo nas ruas do Rio.

Os mercadores de livros e a leitura das ruas
            No Rio do início do século XX, os vendedores de livros perambulavam pelas ruas e vendiam os mesmos livros que eram vendidos no século anterior. Havia os que vendiam de porta em porta e os que apregoavam em voz alta nas ruas, e recitavam versos presentes nos livros que pretendiam vender. Critica o fato do homem não gostar de mudanças, mesmo na literatura, e repelir os textos de qualidade. Critica ainda a literatura lida nas penitenciárias, mal escrita, repleta de episódios trágicos e recheada de sentimentos inferiores. Qualquer novidade nesses textos representa tolice maior que a anterior.

A pintura das ruas
            Um amigo convida o narrador, que detesta tenores e pessoas célebres, para ver a pintura das ruas. Assombrado e hesitante, ele aceita o convite. Através das telas pintadas por pessoas anônimas e outras nem tanto, ele vai tomando conhecimento da cidade, de suas ruas, seus prédios. Começam pela arte popular, depois entram nas composições das marinhas. A seguir, visitam as grandes telas que a cidade ignora. Depois de ver a arte-reclamo e a social, veem a arte patriótica e ainda a arte romântica (repetitiva e infernal, segundo a opinião do amigo). O clímax se dá com a visão da tela do Xavier, artista humilde, que desdenha do sucesso, por medo de ter a tela retirada do seu país.

Tabuletas
            As tabuletas são o reclamo do mundo. Com humor e ironia, o autor critica os nomes das tabuletas, sua falta de nexo e impropriedade. Alega, no final, que o lado mais triste das tabuletas é a pobreza dos pintores.

Visões d’Ópio
            Um amigo informa ao narrador que mais triste que o vício do éter é o do ópio, e apresenta-lhe o que há entre a rua da Misericórdia e a rua D. Manuel. Paulatinamente, casa por casa, os chins são apresentados em graus crescentes de dependência da droga. O quadro final é tenebroso e provoca náuseas no visitante inexperiente.


Músicos ambulantes
            Os músicos ambulantes de tempos em tempos somem e depois reaparecem na cidade, aos bandos. A cidade é essencialmente musical. A música é divina e comove as almas. Alguns músicos até morrem pobres, mas quase todos enriquecem e levam uma vida quase lamentável. Há de pianos a realejos. Há os compositores de modinhas.

Velhos cocheiros
            O Braga leva o narrador ao passado ao recordar sua história de cocheiro, que conduziu barões, ministros, outras autoridades e nunca enriqueceu. Traz uma nostalgia da monarquia, dos seus tipos finos e bem trajados. Mas não é o cocheiro mais antigo da cidade. Bamba é.

Presepes
            Através dos presépios espalhados pela cidade, o narrador analisa o aspecto religioso da cidade. No centro pastoril, relembra Gil Vicente ao assistir a um Reisado em três atos. São vários os motivos que levam a fazer um presépio – da promessa ao simples desejo. O religioso e o profano se misturam nas tradições.

Como se ouve a missa do galo
            A missa do galo não tem hora para começar nem para acabar. Seja na Igreja de Santana ou na Catedral, há uma multidão para ouvi-la. Homens, mulheres, artistas, crianças, se aglomeram, pisam nos pés uns dos outros. Há quem goste e quem se entedie. Saindo desses lugares para Copacabana, percebe-se que lá a coisa não está diferente, para entrar na Igrejinha era uma luta. Porém, das dez mil pessoas que viram apenas um realmente adorava a Deus.

Cordões
            Nesta crônica o autor descreve o carnaval nas ruas do Rio. No Ouvidor era impossível andar. Numa esquina surgia o abre-alas. Alguns, como o narrador, fogem dos cordões. Para certas pessoas, eles são vida, alegria; para outras, loucura. São, no entanto, o núcleo da folia carioca. Há mais de duzentos da Urca ao Caju. O emissor não gosta do carnaval, dos cordões; um amigo admira e explica-lhe a ordem dos cordões. E o narrador conclui: “Oh! sim! ele tinha razão! O cordão é o carnaval, é o último elo das religiões pagãs, é bem o conservador do sagrado dia do deboche ritual; o cordão é a nossa alma ardente, luxuriosa, triste, meio escrava e revoltosa, babando lascívia pelas mulheres e querendo maravilhar, fanfarrona, meiga, bárbara, lamentável”.

TRÊS ASPECTOS DA MISÉRIA

As mariposas do luxo
            No período do crepúsculo, quando as mulheres operárias saem do trabalho e passam pela rua do Ouvidor, é que os contrastes se evidenciam. São mulheres pobres, sonhadoras, curiosas, observando os objetos de luxo que brilham nas vitrines, como mariposas em torno da luz.

Os trabalhadores de estiva
            Quando, às cinco horas da manhã, soava o apito da máquina, a vida dos trabalhadores começava. Abria-se o botequim. Para a polícia aqueles homens musculosos eram ferozes criaturas, mas o narrador os via diferente. Percebia-lhes algo de desilusão e angústia. São homens que fazem o serviço braçal nos armazéns do cais, nos navios e, para ganhar algo, trabalham pesado e muitas vezes falta-lhes o serviço. Homens de uma força de vontade incrível lutam por uma valorização da categoria e para serem considerados dignos pelo trabalho. Em um dia o narrador conheceu a vida dos trabalhadores de estiva.

A fome negra
            A Fome Negra é um trecho na Ilha da Conceição onde fica um grande depósito de manganês. Nesta crônica o autor relata a atividade laboral dos trabalhadores das minas e do depósito de manganês. Os trabalhadores são vistos como autômatos, embrutecidos, sem idéias; são espanhóis e portugueses ingênuos, com o instinto de juntar dinheiro. Ignoram o Rio e vivem quase nus. O narrador entrevista estes homens e paga-lhes para obter a verdade. Eles se julgam fortes, mas são fracos. Mostram-se fortes, mas arrebentam em soluços de dor.


Sono calmo
            O narrador é convidado por um delegado para visitar os círculos infernais do Rio. À noite começam uma caça aos pivetes. Acompanhado pelo delegado e outras autoridades, visitou uma das casas onde dormia a pobreza da cidade, no submundo miserável. Cômodo por cômodo, avistavam pessoas deitadas pelas esteiras no chão, algumas nuas, outras vestidas, num misto de sujeira, fome, pobreza, promiscuidade. O ar abafado era de tampar o nariz. Os que ali se encontravam apresentavam um doloroso espetáculo provocado pela falta de fortuna, mas, segundo o delegado, entre eles há gatunos, assassinos e outros seres nojentos. A situação nos fundos era pior: dormiam ao redor das latrinas os pobres mendigos. Era uma “chaga lamentável” da cidade. O título é uma ironia feita à realidade vivida pelos pobres e abandonados enquanto dormiam.

As mulheres mendigas
            Essa crônica faz uma análise da mendicância nas ruas do Rio. Pouco a pouco vai desnudando a realidade das mulheres mendigas, a forma como atuam para convencer as pessoas, as falsas moléstias, as fantasias, o tom emocionante do pedido de esmola. Uma a uma as mulheres entrevistadas revelam suas histórias tristes.

Os que começam
            O texto critica a exploração das crianças pelos próprios pais e pelos malandros. Elas têm todas as idades, são meninos e meninas sujeitos a todos os crimes. Outra crítica presente no texto trata da felicidade dos inválidos com os defeitos que lhes garantem uma sobrevivência fácil. São jovens que preferem a cadeia ao asilo. Apresentam um caráter de moral invertida. Clamam sempre a Deus e usam o Seu nome para sensibilizar o interlocutor. O autor critica ainda a inoperância da polícia, que ignora a indústria da esmola infantil, a exploração lenta que ensina a roubar e prostituir, o caftismo. A fila de meninas exploradas é enorme, desde as cínicas às ingênuas e lindas. Em quatro dias interrogou noventa e seis garotos, desde pequenos a gatunos precoces.


ONDE ÀS VEZES TERMINA A RUA

Crimes de amor
            Podendo entrevistar qualquer detento, o narrador, segundo a sugestão do capitão Meira, detêm-se nos assassinos por amor. Nas prisões há quem confesse de forma afrontosa o crime e quem o nega, mas os crimes por amor são os mais confessáveis e normalmente não trazem no relato o tom de afronta. Os próprios criminosos narram seus crimes: o da Estrada Real, o do Catete, o do menino de dezoito anos, o de Herculana.

A galeria superior
            A galeria superior é habitada por uma aglomeração de presos hostis e de uma promiscuidade enojante. Há todo tipo de criminoso ali. O autor critica o sistema penitenciário do Rio, no início do século, numa crua demonstração para nós hoje de que pouco ou nada mudou. A detenção é mostrada como uma escola de perdições e degenerescências, um lugar sujo, apertado, que iguala diferentes pessoas e diferentes crimes, tornando todos que ali se encontram piores. A polícia é desorganizada, acusa.

O dia das visitas
            Este é o relato da ansiedade dos presos à espera do dia das visitas e também do desespero e da angústia dos visitantes à espera de receber um cartão de entrada. Descreve-se o tumulto     dos corredores, as frases, os gritos, as pragas. Os visitantes se atropelam, muitas vezes não se entendem e, ao final, saem como uma tropa desoladora, amiga do crime e do vício. A única visita que realmente conforta e é respeitada é a da Irmã Paula.

Versos de presos
            Em duas semanas o narrador colecionou versos que dariam um cancioneiro de cadeia. Após revelarem-se poetas, os presos passam a receber alguma louvação e são levemente poupados. Há poesias de todos os gêneros, textos fúnebres e sensuais. E muitos poemas de amor. Há também poetas de todos os tipos, até plagiários, simbolistas, heróicos e patriotas. Geralmente assinam seus textos com as iniciais de seus nomes e escrevem o nome entre parênteses, embaixo.


As quatro ideias capitais dos presos
            A primeira ideia, fundamental e definitiva, é que os presos preferem a monarquia. A segunda ideia é a crença em Deus, o que não significa regeneração. A terceira ideia, quase obsessiva, é a imprensa. O jornal é a história diária da vida em liberdade. A quarta ideia é a fuga, a liberdade.
            Baseando-se nessas ideias, o autor imagina a monarquia dos presos, abençoada por Deus, laureada pela imprensa e com a polícia na cadeia.

Mulheres detentas
            As mulheres presas são descritas segundo a fria realidade em que vivem. São na maioria mulatas ou negras e vivem em promiscuidade nos lúgubres cubículos. Os crimes cometidos são os mais variados, do infanticídio ao roubo. Algumas são reincidentes.

A MUSA DAS RUAS
           
Nesta crônica o autor celebra a musa inspiradora, a musa urbana, a cidade que levou poetas de todo o país a cantar a Vida. A musa que gerou a poesia, as modinhas, que seduziu as mais variadas damas, que criticou reis, servos e religiosos, é atemporal, e está em todos os lugares. Os grandes poetas são parnasianos, simbolistas, se elitizaram. Mas na cidade, nas ruas, surgem bardos ocasionais, satíricos e apaixonados. A musa tem críticos. E os versos são decorados, espalham-se, estão nos chopps, em todos os lugares. Para a musa basta o fato, o sucesso do dia, paixão e violão. A musa urbana é patriota e não gosta de mostrar os ódios aos de fora. É singela e conta os fatos mais banais do cotidiano e as novidades também. Seus versos são irônicos, líricos, desconsolados, tristes, zangados, idílicos, amorosos, descritivos, trocistas e idealistas. A musa é vagabunda.



Escrito durante o governo de Rodrigues Alves, A alma encantadora das ruas, talvez seja o livro mais conhecido de João do Rio. É seu terceiro livro e foi publicado em 1908 revelando um autor que apreendia a psicologia  urbana e o espírito da época com a mesma obsessão dos colecionadores. Ele saturava seus textos de reminiscências decadentistas, mas o olhar que fixava no presente era o de um observador deslumbrado, onde vê as novas relações sociais que se desenham no coração daquela seria mais tarde chamada a Cidade Maravilhosa. A obra conta a vida de uma cidade em transformação, na qual coabitam personagens e espaços que, ao mesmo tempo que sobrevivem, já não existem como antes.

No início do século, iluminada pelas primeiras luzes da modernidade, o Rio de Janeiro já se revelava, aos olhos mais sensíveis, como uma cidade multifacetada, fascinante, efervescente na democracia da ruas.

As crônicas de A Alma Encantadora das Ruas mostram o significado e a própria essência da rua na modernidade. O homem não é qualquer um, mas o que vive no espaço urbano. Numa relação dupla, a sociedade faz a rua e esta faz o indivíduo:

"Há suor humano na argamassa do seu calçamento."
"Oh! Sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos." (A rua)


A essência da identidade carioca já está presente nas linhas críticas e bem-humoradas deste João: a capacidade de criar soluções de sobrevivência, a paixão pela música, a riqueza do imaginário social, a espontaneidade da mistura cultural que constitui hoje a maior riqueza não apenas do Rio, mas de todo o Brasil.

O livro aborda questões alijadas da sociedade, como os trabalhadores, as cadeias e ladrões, unindo os fragmentos do Rio de Janeiro da época. As crônicas-reportagens da obra encenam o que mancha o projeto da cidade da virtude civilizada, que a ordem racional planejou (a cidade ideal); ganham o palco da escrita aspectos da antitética cidade do vício, símbolo e estigma dos males sociais.

Embora seu título lembre El alma encantadora de Paris (1902) do nicaraguense Enrique Gomez Carrillo, pela sua temática, está bem mais próximo de Les petites choses de Paris (1888) de Jean de Paris (pseudônimo do jornalista do Le Figaro Napoléon-Adrien Marx) e de Paris inconnu (1878) de Alexandre Privat d'Anglemont. É, no entanto, uma obra única e bem carioca, e não surpreende que tenha se transformado num clássico, enquanto os seus congêneres estrangeiros caíram no esquecimento, mesmo nos seus países de origem.

O que mais espanta nessa obra singular (talvez a mais interessante até hoje escrita sobre a cidade do Rio de Janeiro e sua população), mais ainda do que o brilhantismo do estilo, é a sua homogeneidade, ainda mais quando sabemos que é uma antologia de textos publicados anteriormente pelo autor entre 1904 e 1907 no jornal A Gazeta de Notícias e na revista Kosmos. No entanto, tudo flui tão naturalmente que temos a ilusão de estar lendo um livro escrito de um fôlego só.

A obra é dividida em cinco partes e inclui, na abertura e encerramento, duas conferências proferidas pelo autor em 1905: A rua, que tematiza o objeto das reportagens: o espaço público partilhado por todos, o espaço da diversidade, da diferença, “a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas” (para reportar as figurações da rua, elege a metáfora biológica do corpo, que permite ler a cidade como algo familiar e instantaneamente apreensível. A leitura apóia-se em pontos de referência concretamente miméticos, ou culturalmente ligados à tradição, em que o narrador se ancora em seus trajetos pelos meandros do corpo urbano), e A musa das ruas (anteriormente intitulada Modinhas e cantigas). As outras três partes são compostas basicamente de reportagens, magníficos exemplos desse gênero, que o autor praticamente introduziu no jornalismo  nacional. O que se vê nas ruas aborda as pequenas profissões dos biscateiros que perambulavam pelas ruas da cidade na virada do século: tatuadores, vendedores de livros e orações, músicos ambulantes, cocheiros, pintores de tabuletas de lojas comerciais e paisagens de parede de botequim; e também as festas populares da Missa do Galo, Dia de Reis e Carnaval. Dois desses textos (Visões d'ópio e Os cordões) extrapolam o gênero da reportagem e entram no da crônica. O mesmo podemos dizer de As mariposas do luxo, que abre a terceira parte, intitulada Três aspectos da miséria. Aqui aborda-se principalmente as condições de trabalho dos operários e a mendicância. As reportagens sobre o proletariado (Os trabalhadores da estiva e A fome negra) são pioneiras no assunto. A quarta parte, Onde às vezes acaba a ruacompõe-se de seis reportagens entre os presos da Casa de Detenção, que ainda hoje, mais de 90 depois, impressionam pela atualidade.

Em nenhum outro livro a cidade do Rio de Janeiro aparece tão nitidamente, a ponto de dizermos que nele, a cidade é a protagonista da cena. E, mais importante, nesta obra vemos o amadurecimento da linguagem de João do Rio, a ponto de dizermos que um novo estilo literário é criado. Neste caso, a forma como o escritor capta e procura descrever a cidade, certamente representa aspecto fundamental para a compreensão deste amadurecimento estilístico. Em outras palavras, a cidade, em sua estrutura e em seus níveis de sociabilidade, influencia a criação de um novo estilo literário: o ritmo das crônicas ganha agilidade e variedade, a dicção se aproxima do prosaico para conservar o lirismo (um modo de realçar o que há de “encantador” nas ruas). Neste livro, vemos João do Rio como o escritor que, reunindo as qualidades do flâneur ("Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] Flanar é a distinção de perambular com inteligência [...] O flâneur [...] acaba com a idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio [...]. E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete [...]. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas") e do dandy, se sente seduzido pelo mundo que as ruas lhe oferecem, onde nasce um tipo de sentimento inteiramente novo e arrebatador, que carece de compreensão e vivência: o mundo encantador das ruas.

As crônicas-reportagens de A Alma Encantadora das Ruas são na verdade convites para acompanhar João do Rio em suas perambulações pelas ruas do Rio de Janeiro, são convites à “flanar” juntamente com ele, através de seu estilo, por sua visão de mundo. Um passeio poético pela “decadência exuberante” da capital da República.
Convidado a “flanar” com o narrador, o leitor penetra nos fragmentos da cidade, cuja almaconfigura um mosaico irredutível e imiscível, no qual o tipo urbano não é um simples produto de sua variedade mas a essência que a constitui. O que intriga ainda hoje ao ler estas páginas, não é perceber a acuidade de seu Autor, o modo como capta certas particularidades do momento histórico que o inspirou, mas perceber que tais particularidades são transformadas em linguagem literária, em estilo de escrita - traço que garante o prestígio de João do Rio.

Texto escolhido:

A RUA

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:

Je suis la rue, femme éternellement verte,
Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte
Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis
Que ce pénible monde est monde, je la suis...


(Eu sou a rua, mulher eternamente verde jamais encontrei outra carreira aberta senão a de ser a rua e, por todo o tempo; desde que este penoso mundo é mundo, eu a sou...)

A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: "Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia." E Domingos Vieira, citando as Ordenações: "Estradas e rua pruvicas antigamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas." A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações...

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarès ou em Amsterdã, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não paga ao Tamagno para ouvir berros atenorados de leão avaro, nem à velha Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário. Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado todo o conforto humano. Dá-Ihe luz, luxo, bem-estar, comodidade e até impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues e todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam e lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, e quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões - tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os anjos...

A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’oiro que se faz lama e torna a ser poeira - a rua criou o garoto!

Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia  da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível; é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes - a arte de flanar: É fatigante o exercício?

Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti, de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja...

[...]










A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS






AUTOR




João Paulo Alberto Coelho Barreto – João do Rio – Rio de Janeiro (RJ), 1892 – Rio de Janeiro (RJ), 1921.
Jornalista e eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1910.
Escreveu vinte livros – contos, crônicas, romances. Vivia nas ruas do Rio de Janeiro e conhecia tanto o submundo quanto as altas rodas da sociedade carioca.






CARACTERÍSTICAS DO AUTOR




Funde literatura e jornalismo investigativo num texto marcado pelo lirismo e capacidade de observação.
O autor escreve suas crônicas na suposição de exista mesmo a tal ‘alma encantadora das ruas’ e esperando compreender sua psicologia e seu mistério.
Percebemos que o autor estabelece uma contraposição clara entre o espaço da rua e o da casa. Se nesta prevalece a ordem e o equilíbrio, na rua destaca-se o imprevisto e o caos.
As crônicas foram escritas ao tempo do Presidente Rodrigues Alves quando o Rio era Capital Federal. Nesse período, o prefeito Pereira Passos civilizava a cidade.
Os textos estão carregados de seres desumanizados que sobrevivem em pensões, cadeias, depósitos de carvão. Estão mutilados pelo crime e pela miséria.
Apesar disso, o autor abre espaço para o lirismo, as tradições populares, os cordões carnavalescos.










A DIVISÃO DA OBRA




O livro é composto por 27 crônicas divididas em cinco blocos e inclui, na abertura e encerramento, duas conferências proferidas pelo autor em 1905.
1 – A rua. Aqui, o autor afirma, em uma crônica, que a rua é ‘agasalhadora da miséria’ e personifica esse espaço, faz analogias entre a rua e o ser humano.
2 – O que se vê nas ruas. São treze crônicas abordando pequenas profissões. Há vendedores de roupas, ciganos que lêem sorte e até catadores de ratos da época da campanha empreendida por Oswaldo Cruz pelo saneamento da cidade. Outras crônicas trazem os empresários da morte (os papa-defuntos), a comicidade das tabuletas (como Açougue Celestial), os fumadores de ópio; há, ainda, textos sobre o Natal, os cocheiros e músicos ambulantes.
3 – Três aspectos da miséria. Seis crônicas sobre mulheres, crianças e operários que mendigam. A sensibilidade do autor fica evidente em textos como ‘As mariposas do Luxo’ que aborda o desejo de mulheres simples diante das vitrines da rua do Ouvidor. Em ‘Sono calmo’ expõe o sofrimento de pessoas dormindo em pensões como animais, verdadeiros ‘entulhos humanos’.
4 – Onde termina a rua. Seis crônicas sobre a situação dos presos em cadeias sem condições de recuperar os detentos. Os textos falam sobre ‘Os crimes de amor’, ‘A galeria superior’, ‘O dia de visitas’, ‘Os versos dos presos’.
5 – Musa das ruas. É uma reportagem sobre versos populares. O cronista valoriza o lirismo do povo ao mesmo tempo em que faz críticas aos parnasianos e simbolistas. O romântico Álvares de Azevedo é elogiado pelo autor.


EXERCÍCIOS

OS QUE COMEÇAM...

Não há decerto exploração mais dolorosa que a das crianças. Os homens, as mulheres ainda pantomimam a miséria para lucro próprio. As crianças são lançadas no ofício torpe pelos pais, por criaturas indignas, e crescem com o vício adaptando a curvilínea e acovardada alma da mendicidade malandra. Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três, garotos amarelos de um lustro de idade e moçoilas púberes sujeitas a todas as passividades. Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas para o crime de amanhã, para a prostituição em grande escala. Há no Rio um número considerável de pobrezinhos sacrificados, petizes que andam a guiar senhoras falsamente cegas, punguistas sem proteção, paralíticos, amputados, escrofulosos, gatunos de sacola, apanhadores de pontas de cigarros, crias de famílias necessitadas, simples vagabundos à espera de complacências escabrosas, um mundo vário, o olhar de crime, o broto das árvores que irão obumbrar as galerias da Detenção, todo um exército de desbriados e de bandidos, de prostitutas futuras, galopando pela cidade à cata do pão para os exploradores. Interrogados, mentem a princípio, negando; depois exageram as falcatruas e acabam a chorar, contando que são o sustento de uma súcia de criminosos que a polícia não persegue.


A metade desse bando conhece as leis do prefeito, os delegados de polícia e acompanha o movimento da política indígena, oposicionista e vendo em cada homem importante uma roubalheira. São em geral os mendigos claramente defeituosos a que falta uma perna, um braço.


A perda que os tornou inválidos é uma espécie de felicidade, a indolência e o sustento garantidos.


À beira das calçadas o dia inteiro têm tempo de se tornarem homens e de ler os jornais. Fazem tudo isso com vagar. Quando um ponto se torna insustentável vão para outros, e há entre eles relações, morféias que se ligam às úlceras, olhos em pus que olham com ternura companheiros sem braços, e todos guardando a data do desastre que os mutilou, que os fez entrar para a nova vida com a saudade da vida passada. (RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1987.)






1 - Os homens, as mulheres ainda pantomimam a miséria para lucro próprio. Com esta afirmação, João do Rio atribui aos adultos a seguinte atitude diante da miséria:


(A) acomodam-se por considerarem a miséria inevitável


(B) fingem que são miseráveis para viver confortavelmente


(C) continuam a encenar a miséria para tirar proveito dela


(D) se sentem recompensados por viverem como miseráveis


2 - Segundo João do Rio, o maior desejo dessa população é conseguir meios de se manter no ócio. A frase do texto que melhor caracteriza este ponto de vista do autor é:


(A) “Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas para o crime de amanhã, para a prostituição em grande escala.”


(B) “A metade desse bando conhece as leis do prefeito, os delegados de polícia e acompanha o movimento da política indígena,”


(C) “A perda que os tornou inválidos é uma espécie de felicidade, a indolência e o sustento garantidos.”


(D) “À beira das calçadas o dia inteiro têm tempo de se tornarem homens e de ler os jornais.”


3 - Chama-se de progressão à forma de organização textual caracterizada pela ordenação temporal das informações. O trecho do texto que está organizado internamente como progressão é:


(A) “Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três,“


(B) “Há no Rio um número considerável de pobrezinhos sacrificados, petizes que andam a guiar senhoras falsamente cegas,”


(C) “Interrogados, mentem a princípio, negando; depois exageram as falcatruas e acabam a chorar,”


(D) “São em geral os mendigos claramente defeituosos a que falta uma perna, um braço.”


4 - Em Interrogados, mentem a princípio, negando; o particípio e o gerúndio assinalam circunstâncias adverbiais do fato expresso em mentem. A circunstância denotada pelo particípio e a indicada pelo gerúndio significam respectivamente:

(A) tempo e modo


(B) causa e proporção


(C) concessão e finalidade


(D) comparação e conseqüência


Respostas

5 - A atualidade do tema e a linguagem da crônica de João do Rio demonstram a vinculação desse gênero ao jornalismo. Um dos fatores que contribuíram para o reconhecimento da crônica como gênero literário no Brasil é:

(A) os escritores menores publicavam crônicas nos jornais que superavam as de autores consagrados.


(B) os criadores da prosa de ficção reescreviam seus textos em linguagem acessível aos leitores de jornais.


(C) os cronistas focalizavam os problemas sociais e urbanos, enquanto os romancistas se abstinham de tema dessa natureza.


(D) os poetas e os romancistas brasileiros renomados dedicavam-se também a escrever crônicas sobre a cidade e seus problemas, em jornais.


Respostas


1 – c


2 – c


3 – c


4 – a


5 – d

A Alma Encantadora das Ruas



Estou postando aqui,na íntegra o livro Alma encantadora das Ruas de  João do Rio.Boa leitura!

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/alma_encantadora_das_ruas.pdf



ESTUDOS SOBRE  A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

AUTOR
João do Rio – Paulo Barreto (pseudônimo literário: João do Rio), jornalista, cronista, contista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de agosto de 1881, e faleceu na mesma cidade em 23 de junho de 1921.
            Fez os estudos elementares e de humanidades com o pai. Aos 16 anos, ingressou na imprensa. Em 1918, estava no jornal Cidade do Rio, ao lado de José do Patrocínio e o seu grupo de colaboradores. Surgiu então o pseudônimo de João do Rio, com o qual se consagraria literariamente. Seguiram-se outras redações de jornais, e João do Rio se notabilizou como o primeiro homem da imprensa brasileira a ter o senso da reportagem moderna. Começou a publicar suas grandes reportagens, que tanto sucesso obtiveram no Rio e em todo o Brasil, entre as quais "As religiões no Rio" e o inquérito "Momento literário", ambos reunidos depois em livros ainda hoje de leitura proveitosa, sobretudo o segundo, pois constitui excelente fonte de informações acerca do movimento literário do final do século XIX no Brasil.
            Deixou obras de valor, sobretudo como cronista. Foi o criador da crônica social moderna. Como teatrólogo, teve grande êxito a sua peça A bela madame Vargas, representada pela primeira vez em 22 de outubro de 1912, no Teatro Municipal. Ao falecer, era diretor do diário A Pátria, que fundara em 1920.
            Obras: As religiões do Rio, reportagens (1905); Chic-chic, teatro (1906); A última noite, teatro (1907); O momento literário, inquérito (1907); A alma encantadora das ruas, crônicas (1908); Cinematógrafo, crônicas (1909); Dentro da noite, contos (1910); Vida vertiginosa, crônicas (1911); Os dias passam, crônicas (1909); A bela madame Vargas, teatro (1912); A profissão de Jacques Pedreira, novela (1913); Eva, teatro (1915); Crônicas e frases de Godofredo de Alencar (1916); No tempo de Wenceslau, crônicas (1916); A correspondência de uma estação de cura, romance (1918); Na conferência da paz, inquérito (1919); A mulher e os espelhos, contos (1919).

GÊNERO – crônicas.

COMENTÁRIO SOBRE A OBRA
            Publicada em 1908, a obra é composta por crônicas, individuais ou formando uma reportagem, que de forma sensível revelam um aspecto psicológico e obsessivo. Os textos de João do Rio primam por uma referência emocional. Ao descrever a realidade observada, investigada e descoberta por ele, enquanto repórter jornalístico, expõe o que vê com fortes tintas emotivas, demonstrando sentimentos que vão da docilidade à náusea.  

A RUA

            Na crônica “A rua” o emissor declara o seu amor pela rua. Define-a metalinguisticamente através de conceitos dicionarizados e poéticos, mas acrescenta que ela é mais do que eles apontam: as ruas têm alma, são entes vivos, pensam, têm idéias, filosofia e religião. Para ele a rua é a civilização da estrada, faz o indivíduo. Existe uma estética da rua, uma psicologia de construção e alinhamento. Porém, adverte o leitor que para compreender a rua é preciso ter espírito vagabundo, praticar a arte de flanar; inclusive, porque “a alma da rua só é  inteiramente sensível a horas tardias”. O cronista conclui dizendo que é impossível evitar a rua, ela é interminável, universal e possivelmente sobreviverá ao próprio universo em trevas.

O QUE SE VÊ NAS RUAS

Pequenas profissões
            O cigano, vendedor ambulante de calças e anéis, aparece como “ave de rapina” e o possível comprador como “vítima”. Além dessa, o Rio apresenta outras “pequenas profissões exóticas, produto da miséria”, profissões ignoradas: trapeiros sabidos, apanha-rótulos, selistas, ledoras de sorte,  ratoeiros, caçadores, marcadores (fazem tatuagens). Todos esses trabalhadores são apresentados através do diálogo entre Eduardo e o narrador. É o amigo que vai apresentando os tipos humanos e filosofando sobre eles. De certa forma, Eduardo tenta humanizar os malandros, já que para ele “a moral é uma questão de ponto de vista”. Trata-se de uma crônica de crítica social.



Os tatuadores
            Também aqui a crítica a aspectos sócio-econômicos se evidencia. A partir da abordagem de um menino tatuador a um rapaz, o narrador apresenta a definição da palavra tatuagem e parte para os significados que ela tem em diferentes culturas. A seguir apresenta os três casos de tatuagens no Rio: a dos negros (fetiche - o crucificado), a dos turcos religiosos (iniciais, corações, símbolos sagrados) e a das meretrizes e toda a classe baixa do Rio (que pintam de tudo, sereias, letras, cobras, Cristo...). Com o Madruga, chefe dos tatuadores, o narrador perambulou três meses observando tatuadores e tatuados. Tatuam-se soldados, marinheiros, vagabundos, criminosos, barregãs e portugueses. Tatuam-se porque é bonito e apresenta significados. Os lugares são as costas, as pernas, os braços, as mãos; no peito, figuras sagradas. Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas. Depois de muito observar, o narrador conclui que ser tatuador pode ser mais interessante que ser amanuense de secretaria.

Orações
Nesta crônica, a crítica está no âmbito religioso. Há oração para curar todos os males e pode ser feita até para santos inexistentes para o Papa. As orações acompanham o homem do parto ao túmulo. Pode ser feita diretamente a Deus, aos santos, ou a Deus através dos santos. Há orações para acabar com trovões e raios, para salvar e para matar, para o bem e para remediar o mal, para pedir e para agradecer. Há orações sem concordância pronominal... As orações tornam os vendedores supersticiosos..


Os urubus
            Através de um informante, o narrador toma conhecimento de uma classe de pessoas que vive às custas da dor e do sofrimento dos outros, provocados pelo luto. Os urubus, como são conhecidos, ofertam serviços funerários e agem com uma organização bem estruturada, que vai do acompanhamento dos casos graves e das mortes súbitas nos hospitais aos “reporters” que anotam todos os dados importantes dos pacientes. Estas pessoas estão o tempo todo nas ruas do Rio.

Os mercadores de livros e a leitura das ruas
            No Rio do início do século XX, os vendedores de livros perambulavam pelas ruas e vendiam os mesmos livros que eram vendidos no século anterior. Havia os que vendiam de porta em porta e os que apregoavam em voz alta nas ruas, e recitavam versos presentes nos livros que pretendiam vender. Critica o fato do homem não gostar de mudanças, mesmo na literatura, e repelir os textos de qualidade. Critica ainda a literatura lida nas penitenciárias, mal escrita, repleta de episódios trágicos e recheada de sentimentos inferiores. Qualquer novidade nesses textos representa tolice maior que a anterior.

A pintura das ruas
            Um amigo convida o narrador, que detesta tenores e pessoas célebres, para ver a pintura das ruas. Assombrado e hesitante, ele aceita o convite. Através das telas pintadas por pessoas anônimas e outras nem tanto, ele vai tomando conhecimento da cidade, de suas ruas, seus prédios. Começam pela arte popular, depois entram nas composições das marinhas. A seguir, visitam as grandes telas que a cidade ignora. Depois de ver a arte-reclamo e a social, veem a arte patriótica e ainda a arte romântica (repetitiva e infernal, segundo a opinião do amigo). O clímax se dá com a visão da tela do Xavier, artista humilde, que desdenha do sucesso, por medo de ter a tela retirada do seu país.

Tabuletas
            As tabuletas são o reclamo do mundo. Com humor e ironia, o autor critica os nomes das tabuletas, sua falta de nexo e impropriedade. Alega, no final, que o lado mais triste das tabuletas é a pobreza dos pintores.

Visões d’Ópio
            Um amigo informa ao narrador que mais triste que o vício do éter é o do ópio, e apresenta-lhe o que há entre a rua da Misericórdia e a rua D. Manuel. Paulatinamente, casa por casa, os chins são apresentados em graus crescentes de dependência da droga. O quadro final é tenebroso e provoca náuseas no visitante inexperiente.


Músicos ambulantes
            Os músicos ambulantes de tempos em tempos somem e depois reaparecem na cidade, aos bandos. A cidade é essencialmente musical. A música é divina e comove as almas. Alguns músicos até morrem pobres, mas quase todos enriquecem e levam uma vida quase lamentável. Há de pianos a realejos. Há os compositores de modinhas.

Velhos cocheiros
            O Braga leva o narrador ao passado ao recordar sua história de cocheiro, que conduziu barões, ministros, outras autoridades e nunca enriqueceu. Traz uma nostalgia da monarquia, dos seus tipos finos e bem trajados. Mas não é o cocheiro mais antigo da cidade. Bamba é.

Presepes
            Através dos presépios espalhados pela cidade, o narrador analisa o aspecto religioso da cidade. No centro pastoril, relembra Gil Vicente ao assistir a um Reisado em três atos. São vários os motivos que levam a fazer um presépio – da promessa ao simples desejo. O religioso e o profano se misturam nas tradições.

Como se ouve a missa do galo
            A missa do galo não tem hora para começar nem para acabar. Seja na Igreja de Santana ou na Catedral, há uma multidão para ouvi-la. Homens, mulheres, artistas, crianças, se aglomeram, pisam nos pés uns dos outros. Há quem goste e quem se entedie. Saindo desses lugares para Copacabana, percebe-se que lá a coisa não está diferente, para entrar na Igrejinha era uma luta. Porém, das dez mil pessoas que viram apenas um realmente adorava a Deus.

Cordões
            Nesta crônica o autor descreve o carnaval nas ruas do Rio. No Ouvidor era impossível andar. Numa esquina surgia o abre-alas. Alguns, como o narrador, fogem dos cordões. Para certas pessoas, eles são vida, alegria; para outras, loucura. São, no entanto, o núcleo da folia carioca. Há mais de duzentos da Urca ao Caju. O emissor não gosta do carnaval, dos cordões; um amigo admira e explica-lhe a ordem dos cordões. E o narrador conclui: “Oh! sim! ele tinha razão! O cordão é o carnaval, é o último elo das religiões pagãs, é bem o conservador do sagrado dia do deboche ritual; o cordão é a nossa alma ardente, luxuriosa, triste, meio escrava e revoltosa, babando lascívia pelas mulheres e querendo maravilhar, fanfarrona, meiga, bárbara, lamentável”.

TRÊS ASPECTOS DA MISÉRIA

As mariposas do luxo
            No período do crepúsculo, quando as mulheres operárias saem do trabalho e passam pela rua do Ouvidor, é que os contrastes se evidenciam. São mulheres pobres, sonhadoras, curiosas, observando os objetos de luxo que brilham nas vitrines, como mariposas em torno da luz.

Os trabalhadores de estiva
            Quando, às cinco horas da manhã, soava o apito da máquina, a vida dos trabalhadores começava. Abria-se o botequim. Para a polícia aqueles homens musculosos eram ferozes criaturas, mas o narrador os via diferente. Percebia-lhes algo de desilusão e angústia. São homens que fazem o serviço braçal nos armazéns do cais, nos navios e, para ganhar algo, trabalham pesado e muitas vezes falta-lhes o serviço. Homens de uma força de vontade incrível lutam por uma valorização da categoria e para serem considerados dignos pelo trabalho. Em um dia o narrador conheceu a vida dos trabalhadores de estiva.

A fome negra
            A Fome Negra é um trecho na Ilha da Conceição onde fica um grande depósito de manganês. Nesta crônica o autor relata a atividade laboral dos trabalhadores das minas e do depósito de manganês. Os trabalhadores são vistos como autômatos, embrutecidos, sem idéias; são espanhóis e portugueses ingênuos, com o instinto de juntar dinheiro. Ignoram o Rio e vivem quase nus. O narrador entrevista estes homens e paga-lhes para obter a verdade. Eles se julgam fortes, mas são fracos. Mostram-se fortes, mas arrebentam em soluços de dor.


Sono calmo
            O narrador é convidado por um delegado para visitar os círculos infernais do Rio. À noite começam uma caça aos pivetes. Acompanhado pelo delegado e outras autoridades, visitou uma das casas onde dormia a pobreza da cidade, no submundo miserável. Cômodo por cômodo, avistavam pessoas deitadas pelas esteiras no chão, algumas nuas, outras vestidas, num misto de sujeira, fome, pobreza, promiscuidade. O ar abafado era de tampar o nariz. Os que ali se encontravam apresentavam um doloroso espetáculo provocado pela falta de fortuna, mas, segundo o delegado, entre eles há gatunos, assassinos e outros seres nojentos. A situação nos fundos era pior: dormiam ao redor das latrinas os pobres mendigos. Era uma “chaga lamentável” da cidade. O título é uma ironia feita à realidade vivida pelos pobres e abandonados enquanto dormiam.

As mulheres mendigas
            Essa crônica faz uma análise da mendicância nas ruas do Rio. Pouco a pouco vai desnudando a realidade das mulheres mendigas, a forma como atuam para convencer as pessoas, as falsas moléstias, as fantasias, o tom emocionante do pedido de esmola. Uma a uma as mulheres entrevistadas revelam suas histórias tristes.

Os que começam
            O texto critica a exploração das crianças pelos próprios pais e pelos malandros. Elas têm todas as idades, são meninos e meninas sujeitos a todos os crimes. Outra crítica presente no texto trata da felicidade dos inválidos com os defeitos que lhes garantem uma sobrevivência fácil. São jovens que preferem a cadeia ao asilo. Apresentam um caráter de moral invertida. Clamam sempre a Deus e usam o Seu nome para sensibilizar o interlocutor. O autor critica ainda a inoperância da polícia, que ignora a indústria da esmola infantil, a exploração lenta que ensina a roubar e prostituir, o caftismo. A fila de meninas exploradas é enorme, desde as cínicas às ingênuas e lindas. Em quatro dias interrogou noventa e seis garotos, desde pequenos a gatunos precoces.


ONDE ÀS VEZES TERMINA A RUA

Crimes de amor
            Podendo entrevistar qualquer detento, o narrador, segundo a sugestão do capitão Meira, detêm-se nos assassinos por amor. Nas prisões há quem confesse de forma afrontosa o crime e quem o nega, mas os crimes por amor são os mais confessáveis e normalmente não trazem no relato o tom de afronta. Os próprios criminosos narram seus crimes: o da Estrada Real, o do Catete, o do menino de dezoito anos, o de Herculana.

A galeria superior
            A galeria superior é habitada por uma aglomeração de presos hostis e de uma promiscuidade enojante. Há todo tipo de criminoso ali. O autor critica o sistema penitenciário do Rio, no início do século, numa crua demonstração para nós hoje de que pouco ou nada mudou. A detenção é mostrada como uma escola de perdições e degenerescências, um lugar sujo, apertado, que iguala diferentes pessoas e diferentes crimes, tornando todos que ali se encontram piores. A polícia é desorganizada, acusa.

O dia das visitas
            Este é o relato da ansiedade dos presos à espera do dia das visitas e também do desespero e da angústia dos visitantes à espera de receber um cartão de entrada. Descreve-se o tumulto     dos corredores, as frases, os gritos, as pragas. Os visitantes se atropelam, muitas vezes não se entendem e, ao final, saem como uma tropa desoladora, amiga do crime e do vício. A única visita que realmente conforta e é respeitada é a da Irmã Paula.

Versos de presos
            Em duas semanas o narrador colecionou versos que dariam um cancioneiro de cadeia. Após revelarem-se poetas, os presos passam a receber alguma louvação e são levemente poupados. Há poesias de todos os gêneros, textos fúnebres e sensuais. E muitos poemas de amor. Há também poetas de todos os tipos, até plagiários, simbolistas, heróicos e patriotas. Geralmente assinam seus textos com as iniciais de seus nomes e escrevem o nome entre parênteses, embaixo.


As quatro ideias capitais dos presos
            A primeira ideia, fundamental e definitiva, é que os presos preferem a monarquia. A segunda ideia é a crença em Deus, o que não significa regeneração. A terceira ideia, quase obsessiva, é a imprensa. O jornal é a história diária da vida em liberdade. A quarta ideia é a fuga, a liberdade.
            Baseando-se nessas ideias, o autor imagina a monarquia dos presos, abençoada por Deus, laureada pela imprensa e com a polícia na cadeia.

Mulheres detentas
            As mulheres presas são descritas segundo a fria realidade em que vivem. São na maioria mulatas ou negras e vivem em promiscuidade nos lúgubres cubículos. Os crimes cometidos são os mais variados, do infanticídio ao roubo. Algumas são reincidentes.

A MUSA DAS RUAS
           
Nesta crônica o autor celebra a musa inspiradora, a musa urbana, a cidade que levou poetas de todo o país a cantar a Vida. A musa que gerou a poesia, as modinhas, que seduziu as mais variadas damas, que criticou reis, servos e religiosos, é atemporal, e está em todos os lugares. Os grandes poetas são parnasianos, simbolistas, se elitizaram. Mas na cidade, nas ruas, surgem bardos ocasionais, satíricos e apaixonados. A musa tem críticos. E os versos são decorados, espalham-se, estão nos chopps, em todos os lugares. Para a musa basta o fato, o sucesso do dia, paixão e violão. A musa urbana é patriota e não gosta de mostrar os ódios aos de fora. É singela e conta os fatos mais banais do cotidiano e as novidades também. Seus versos são irônicos, líricos, desconsolados, tristes, zangados, idílicos, amorosos, descritivos, trocistas e idealistas. A musa é vagabunda.




A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

 
A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

AUTOR

  • João Paulo Alberto Coelho Barreto – João do Rio – Rio de Janeiro (RJ), 1892 – Rio de Janeiro (RJ), 1921.
  • Jornalista e eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1910.
  • Escreveu vinte livros – contos, crônicas, romances. Vivia nas ruas do Rio de Janeiro e conhecia tanto o submundo quanto as altas rodas da sociedade carioca.

CARACTERÍSTICAS DO AUTOR

  • Funde literatura e jornalismo investigativo num texto marcado pelo lirismo e capacidade de observação.
  • O autor escreve suas crônicas na suposição de exista mesmo a tal ‘alma encantadora das ruas’ e esperando compreender sua psicologia e seu mistério.
  • Percebemos que o autor estabelece uma contraposição clara entre o espaço da rua e o da casa. Se nesta prevalece a ordem e o equilíbrio, na rua destaca-se o imprevisto e o caos.
  • As crônicas foram escritas ao tempo do Presidente Rodrigues Alves quando o Rio era Capital Federal. Nesse período, o prefeito Pereira Passos civilizava a cidade.
  • Os textos estão carregados de seres desumanizados que sobrevivem em pensões, cadeias, depósitos de carvão. Estão mutilados pelo crime e pela miséria.
  • Apesar disso, o autor abre espaço para o lirismo, as tradições populares, os cordões carnavalescos.


A DIVISÃO DA OBRA

  • O livro é composto por 27 crônicas divididas em cinco blocos e inclui, na abertura e encerramento, duas conferências proferidas pelo autor em 1905.
  • 1 – A rua. Aqui, o autor afirma, em uma crônica, que a rua é ‘agasalhadora da miséria’ e personifica esse espaço, faz analogias entre a rua e o ser humano.
  • – O que se vê nas ruas. São treze crônicas abordando pequenas profissões. Há vendedores de roupas, ciganos que lêem sorte e até catadores de ratos da época da campanha empreendida por Oswaldo Cruz pelo saneamento da cidade. Outras crônicas trazem os empresários da morte (os papa-defuntos), a comicidade das tabuletas (como Açougue Celestial), os fumadores de ópio; há, ainda, textos sobre o Natal, os cocheiros e músicos ambulantes.
  • – Três aspectos da miséria. Seis crônicas sobre mulheres, crianças e operários que mendigam. A sensibilidade do autor fica evidente em textos como ‘As mariposas do Luxo’ que aborda o desejo de mulheres simples diante das vitrines da rua do Ouvidor. Em ‘Sono calmo’ expõe o sofrimento de pessoas dormindo em pensões como animais, verdadeiros ‘entulhos humanos’.
  • – Onde termina a rua. Seis crônicas sobre a situação dos presos em cadeias sem condições de recuperar os detentos. Os textos falam sobre ‘Os crimes de amor’, ‘A galeria superior’, ‘O dia de visitas’, ‘Os versos dos presos’.
  • – Musa das ruas. É uma reportagem sobre versos populares. O cronista valoriza o lirismo do povo ao mesmo tempo em que faz críticas aos parnasianos e simbolistas. O romântico Álvares de Azevedo é elogiado pelo autor.


EXERCÍCIOS

OS QUE COMEÇAM...

Não há decerto exploração mais dolorosa que a das crianças. Os homens, as mulheres ainda pantomimam a miséria para lucro próprio. As crianças são lançadas no ofício torpe pelos pais, por criaturas indignas, e crescem com o vício adaptando a curvilínea e acovardada alma da mendicidade malandra. Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três, garotos amarelos de um lustro de idade e moçoilas púberes sujeitas a todas as passividades. Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas para o crime de amanhã, para a prostituição em grande escala. Há no Rio um número considerável de pobrezinhos sacrificados, petizes que andam a guiar senhoras falsamente cegas, punguistas sem proteção, paralíticos, amputados, escrofulosos, gatunos de sacola, apanhadores de pontas de cigarros, crias de famílias necessitadas, simples vagabundos à espera de complacências escabrosas, um mundo vário, o olhar de crime, o broto das árvores que irão obumbrar as galerias da Detenção, todo um exército de desbriados e de bandidos, de prostitutas futuras, galopando pela cidade à cata do pão para os exploradores. Interrogados, mentem a princípio, negando; depois exageram as falcatruas e acabam a chorar, contando que são o sustento de uma súcia de criminosos que a polícia não persegue.
A metade desse bando conhece as leis do prefeito, os delegados de polícia e acompanha o movimento da política indígena, oposicionista e vendo em cada homem importante uma roubalheira. São em geral os mendigos claramente defeituosos a que falta uma perna, um braço.
A perda que os tornou inválidos é uma espécie de felicidade, a indolência e o sustento garantidos.
À beira das calçadas o dia inteiro têm tempo de se tornarem homens e de ler os jornais. Fazem tudo isso com vagar. Quando um ponto se torna insustentável vão para outros, e há entre eles relações, morféias que se ligam às úlceras, olhos em pus que olham com ternura companheiros sem braços, e todos guardando a data do desastre que os mutilou, que os fez entrar para a nova vida com a saudade da vida passada. (RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1987.)

1 - Os homens, as mulheres ainda pantomimam a miséria para lucro próprio.  Com esta afirmação, João do Rio atribui aos adultos a seguinte atitude diante da miséria:

(A) acomodam-se por considerarem a miséria inevitável
(B) fingem que são miseráveis para viver confortavelmente
(C) continuam a encenar a miséria para tirar proveito dela
(D) se sentem recompensados por viverem como miseráveis

2 - Segundo João do Rio, o maior desejo dessa população é conseguir meios de se manter no ócio. A frase do texto que melhor caracteriza este ponto de vista do autor é:

(A) “Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas para o crime de amanhã, para a prostituição em grande escala.”
(B) “A metade desse bando conhece as leis do prefeito, os delegados de polícia e acompanha o movimento da política indígena,”
(C) “A perda que os tornou inválidos é uma espécie de felicidade, a indolência e o sustento garantidos.”
(D) “À beira das calçadas o dia inteiro têm tempo de se tornarem homens e de ler os jornais.”

3 - Chama-se de progressão à forma de organização textual caracterizada pela ordenação temporal das informações. O trecho do texto que está organizado internamente como progressão é:

(A) “Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três,“
(B) “Há no Rio um número considerável de pobrezinhos sacrificados, petizes que andam a guiar senhoras falsamente cegas,”
(C) “Interrogados, mentem a princípio, negando; depois exageram as falcatruas e acabam a chorar,”
(D) “São em geral os mendigos claramente defeituosos a que falta uma perna, um braço.”

4 - Em Interrogados, mentem a princípio, negando; o particípio e o gerúndio assinalam circunstâncias adverbiais do fato expresso em mentem. A circunstância denotada pelo particípio e a indicada pelo gerúndio significam respectivamente:

(A) tempo e modo
(B) causa e proporção
(C) concessão e finalidade
(D) comparação e conseqüência
Respostas

5 - A atualidade do tema e a linguagem da crônica de João do Rio demonstram a vinculação desse gênero ao jornalismo. Um dos fatores que contribuíram para o reconhecimento da crônica como gênero literário no Brasil é:

(A) os escritores menores publicavam crônicas nos jornais que superavam as de autores consagrados.
(B) os criadores da prosa de ficção reescreviam seus textos em linguagem acessível aos leitores de jornais.
(C) os cronistas focalizavam os problemas sociais e urbanos, enquanto os romancistas se abstinham de tema dessa natureza.
(D) os poetas e os romancistas brasileiros renomados dedicavam-se também a escrever crônicas sobre a cidade e seus problemas, em jornais.

Respostas

1 – c
2 – c
3 – c
4 – a
5 – d

A alma encantadora das ruas, de João do Rio

Escrito durante o governo de Rodrigues Alves, A alma encantadora das ruas, talvez seja o livro mais conhecido de João do Rio. É seu terceiro livro e foi publicado em 1908 revelando um autor que apreendia a psicologia  urbana e o espírito da época com a mesma obsessão dos colecionadores. Ele saturava seus textos de reminiscências decadentistas, mas o olhar que fixava no presente era o de um observador deslumbrado, onde vê as novas relações sociais que se desenham no coração daquela seria mais tarde chamada a Cidade Maravilhosa. A obra conta a vida de uma cidade em transformação, na qual coabitam personagens e espaços que, ao mesmo tempo que sobrevivem, já não existem como antes.

No início do século, iluminada pelas primeiras luzes da modernidade, o Rio de Janeiro já se revelava, aos olhos mais sensíveis, como uma cidade multifacetada, fascinante, efervescente na democracia da ruas.

As crônicas de A Alma Encantadora das Ruas mostram o significado e a própria essência da rua na modernidade. O homem não é qualquer um, mas o que vive no espaço urbano. Numa relação dupla, a sociedade faz a rua e esta faz o indivíduo:

"Há suor humano na argamassa do seu calçamento."
"Oh! Sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos." (A rua)


A essência da identidade carioca já está presente nas linhas críticas e bem-humoradas deste João: a capacidade de criar soluções de sobrevivência, a paixão pela música, a riqueza do imaginário social, a espontaneidade da mistura cultural que constitui hoje a maior riqueza não apenas do Rio, mas de todo o Brasil.

O livro aborda questões alijadas da sociedade, como os trabalhadores, as cadeias e ladrões, unindo os fragmentos do Rio de Janeiro da época. As crônicas-reportagens da obra encenam o que mancha o projeto da cidade da virtude civilizada, que a ordem racional planejou (a cidade ideal); ganham o palco da escrita aspectos da antitética cidade do vício, símbolo e estigma dos males sociais.

Embora seu título lembre El alma encantadora de Paris (1902) do nicaraguense Enrique Gomez Carrillo, pela sua temática, está bem mais próximo de Les petites choses de Paris (1888) de Jean de Paris (pseudônimo do jornalista do Le Figaro Napoléon-Adrien Marx) e de Paris inconnu (1878) de Alexandre Privat d'Anglemont. É, no entanto, uma obra única e bem carioca, e não surpreende que tenha se transformado num clássico, enquanto os seus congêneres estrangeiros caíram no esquecimento, mesmo nos seus países de origem.

O que mais espanta nessa obra singular (talvez a mais interessante até hoje escrita sobre a cidade do Rio de Janeiro e sua população), mais ainda do que o brilhantismo do estilo, é a sua homogeneidade, ainda mais quando sabemos que é uma antologia de textos publicados anteriormente pelo autor entre 1904 e 1907 no jornal A Gazeta de Notícias e na revista Kosmos. No entanto, tudo flui tão naturalmente que temos a ilusão de estar lendo um livro escrito de um fôlego só.

A obra é dividida em cinco partes e inclui, na abertura e encerramento, duas conferências proferidas pelo autor em 1905: A rua, que tematiza o objeto das reportagens: o espaço público partilhado por todos, o espaço da diversidade, da diferença, “a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas” (para reportar as figurações da rua, elege a metáfora biológica do corpo, que permite ler a cidade como algo familiar e instantaneamente apreensível. A leitura apóia-se em pontos de referência concretamente miméticos, ou culturalmente ligados à tradição, em que o narrador se ancora em seus trajetos pelos meandros do corpo urbano), e A musa das ruas (anteriormente intitulada Modinhas e cantigas). As outras três partes são compostas basicamente de reportagens, magníficos exemplos desse gênero, que o autor praticamente introduziu no jornalismo  nacional. O que se vê nas ruas aborda as pequenas profissões dos biscateiros que perambulavam pelas ruas da cidade na virada do século: tatuadores, vendedores de livros e orações, músicos ambulantes, cocheiros, pintores de tabuletas de lojas comerciais e paisagens de parede de botequim; e também as festas populares da Missa do Galo, Dia de Reis e Carnaval. Dois desses textos (Visões d'ópio e Os cordões) extrapolam o gênero da reportagem e entram no da crônica. O mesmo podemos dizer de As mariposas do luxo, que abre a terceira parte, intitulada Três aspectos da miséria. Aqui aborda-se principalmente as condições de trabalho dos operários e a mendicância. As reportagens sobre o proletariado (Os trabalhadores da estiva e A fome negra) são pioneiras no assunto. A quarta parte, Onde às vezes acaba a ruacompõe-se de seis reportagens entre os presos da Casa de Detenção, que ainda hoje, mais de 90 depois, impressionam pela atualidade.

Em nenhum outro livro a cidade do Rio de Janeiro aparece tão nitidamente, a ponto de dizermos que nele, a cidade é a protagonista da cena. E, mais importante, nesta obra vemos o amadurecimento da linguagem de João do Rio, a ponto de dizermos que um novo estilo literário é criado. Neste caso, a forma como o escritor capta e procura descrever a cidade, certamente representa aspecto fundamental para a compreensão deste amadurecimento estilístico. Em outras palavras, a cidade, em sua estrutura e em seus níveis de sociabilidade, influencia a criação de um novo estilo literário: o ritmo das crônicas ganha agilidade e variedade, a dicção se aproxima do prosaico para conservar o lirismo (um modo de realçar o que há de “encantador” nas ruas). Neste livro, vemos João do Rio como o escritor que, reunindo as qualidades do flâneur ("Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] Flanar é a distinção de perambular com inteligência [...] O flâneur [...] acaba com a idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio [...]. E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete [...]. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas") e do dandy, se sente seduzido pelo mundo que as ruas lhe oferecem, onde nasce um tipo de sentimento inteiramente novo e arrebatador, que carece de compreensão e vivência: o mundo encantador das ruas.

As crônicas-reportagens de A Alma Encantadora das Ruas são na verdade convites para acompanhar João do Rio em suas perambulações pelas ruas do Rio de Janeiro, são convites à “flanar” juntamente com ele, através de seu estilo, por sua visão de mundo. Um passeio poético pela “decadência exuberante” da capital da República.
Convidado a “flanar” com o narrador, o leitor penetra nos fragmentos da cidade, cuja almaconfigura um mosaico irredutível e imiscível, no qual o tipo urbano não é um simples produto de sua variedade mas a essência que a constitui. O que intriga ainda hoje ao ler estas páginas, não é perceber a acuidade de seu Autor, o modo como capta certas particularidades do momento histórico que o inspirou, mas perceber que tais particularidades são transformadas em linguagem literária, em estilo de escrita - traço que garante o prestígio de João do Rio.

Texto escolhido:

A RUA

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:

Je suis la rue, femme éternellement verte,
Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte
Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis
Que ce pénible monde est monde, je la suis...


(Eu sou a rua, mulher eternamente verde jamais encontrei outra carreira aberta senão a de ser a rua e, por todo o tempo; desde que este penoso mundo é mundo, eu a sou...)

A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: "Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia." E Domingos Vieira, citando as Ordenações: "Estradas e rua pruvicas antigamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas." A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações...

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarès ou em Amsterdã, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não paga ao Tamagno para ouvir berros atenorados de leão avaro, nem à velha Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário. Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado todo o conforto humano. Dá-Ihe luz, luxo, bem-estar, comodidade e até impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues e todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam e lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, e quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões - tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os anjos...

A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’oiro que se faz lama e torna a ser poeira - a rua criou o garoto!

Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia  da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível; é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes - a arte de flanar: É fatigante o exercício?

Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti, de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja...

[...]

(A alma encantadora das ruas, 1908.)

O BEBÊ DE TARLATANA ROSA

- Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? O carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou de luxúrias atrozes. Um carnaval sem aventura não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura. .

E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã, gozando a nossa curiosidade.

Havia no gabinete o barão Belfort, Anatolio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis autêntico parecia absorto:

- É uma aventura alegre? indagou Maria.

- Conforme os temperamentos.

- Suja?

- Pavorosa ao menos.

- De dia?

- Não. Pela madrugada.

- Mas, homem de Deus, conta! - suplicava Anatolio. - Olha que está adoecendo a Maria.

Heitor pegou um largo trago à cigarreta.

- Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ância e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente com uma...

- Nem com um, - atalhou Anatolio.

- Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a porneia da cidade, saio como na Finícia saíam os navegadores para a procissão da Primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodita.

- Muito bonito! - ciciou Maria de Flor.

- Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andamos de automóvel a percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champanhe aos clubs de jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do Recreio. "Nossa Senhora! disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias dos pedaços mais esconsos da rua de S. Jorge, um cheiro atroz, rolos constantes..." - Que tem isso? Não vamos juntos?

Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era uma desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparramando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros da ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos em frascos d’álcool, que têm as perdidas de certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel de arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parava diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê de tartalana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável. Quando ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem feito, tão acertado, que foi preciso observar para verificá-lo falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse num suspiro: - Ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e ser sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma freqüentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear no clube mais chic e mais secante da cidade.

- E o bebê?

- O bebê ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao lado do chauffeur, no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e uma voz rouca dizer: "para pagar o de ontem." Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda tive tempo de indagar: onde vais hoje?

- A toda parte! - respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.

- Estava perseguindo-te! - comentou Maria de Flor.

Talvez fosse um homem... - soprou desconfiado o amável Anatolio.

- Não interrompam o Heitor! - fez o barão, estendendo a mão.

Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, sorriu, continuou:

- Não o vi mais nessa noite, e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e caí no mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele e todos os maus instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. É o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil, a honra um cacetação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente.

Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.

- A quem dizes!... - suspirou Maria de Flor.

- Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada!

- É quando se fica mais nervoso!

- Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda a gente, e saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos de bengala, caíam em sombras - sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços... E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo largo do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do Interior, quando o vi, parado, o bebê de tarlatana rosa.

Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei. - "Os bons amigos sempre se encontram"- disse. O bebê sorriu sem dizer palavra. - Estás esperando alguém? - Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. - Vens comigo? - Onde? - Indagou a sua voz áspera e rouca. - Onde quiseres! - Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.

- Por pouco...

- Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com a sua voz arfante e lúbrica: - "Aqui não!" Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases do amor não se conversa. Não trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado o jardim. Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua, escura e sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís de Camões, ficamos bem em baixo das sombras espessas do Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a treva espancada um pouco pela luz de combustões distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vício naquela austeridade da noite. - Então, vamos? Indaguei. - Para onde? - Para a tua casa. - Ah! não, em casa não podes... - Então por aí. - Entrar, sair, despir-me. Não sou disso! - Que queres tu, filha? É impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. - Que tem? - Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara. - Que máscara? - O nariz.- Ah! Sim! E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.

Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia mal. - Tira o nariz! - Ela segredou: Não! Não! Custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela carne de chama.

O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal estar curioso, um estado de inibição esquisito. - Que diabo! Não vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada. - Disfarça sim! - Não! Procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu; o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente - uma caveira com carne...

Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. - Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? aproveito. Fosse tu que quiseste...

Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da Luxuria... Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semi treva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo o mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo em febre.

Quando parei à porta de casa para tiver, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tartalana rosa...

Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatolio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a campainha para que o criado trouxesse refrigerantes, e resumiu:

- Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.

E foi sentar-se ao piano.
A rua no imaginário social (Resumo)
A importância de analisarmos a espacialidade da rua está no fato de podermos identificar a dimensão da vida cotidiana presente em suas formas, uma vez que ela representa a espacialidade das relações sociais. Para alguns a rua é simplesmente passagem, enquanto outros vêem na rua mais que um itinerário. Para nós, a rua revela-se como palco de contínuos acontecimentos, em movimento constante, por isso nela a vida social se manifesta. A rua nos revela formas de apropriações e temporalidades, pois guarda em si esta “vivacidade”.

Palavras-chave: rua - paisagem urbana - sociedade


The street in the social imaginary (Abstract)

The importance of analyzing the spaciality of street is in the fact that we can identify the dimension of daily life present in its forms, since it represents the spaciality of social relations. To some people the street is simply scenery, while others see in the street more than itinerary. To us, the street reveals itself as stage of continuous events, in constant movement. Thus social life shows up in it. The street reveals to us forms of appropriations and temporalities, for it carries in itself this vivacity.      

Keywords: street  - urban scenery  - society



A Rua e Suas Significações

O estudo das ruas se apresenta com relevância em muitos aspectos, principalmente porque não se pode conceber uma cidade sem as mesmas. Os múltiplos encontros realizados nas cidades são mantidos e alimentados pelas trocas, que estabelecem as relações sociais. A rua, então, passa a ser, por excelência, o grande palco das sucessivas cenas e dramas, enfim, lócus das diversas representações da sociedade.

Algumas abordagens teóricas

Para determinadas pessoas, a rua é mais que um simples passar de transeuntes, ela possui uma “alma encantadora”, como nos informa João do Rio, que com seu potencial literário descreveu o amor que sentia pelas ruas, revelando de maneira sutil seus movimentos. Para ele, a rua não é um simples alinhamento de fachadas, ela é agasalhadora da miséria, é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. A rua é generosa, é transformadora de línguas, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa. (1995: 4)

Na visão dos arquitetos e urbanistas, por exemplo, as ruas ligam os múltiplos pontos de interesse particular ou semipúblico, formando o que Santos chama de uma rede de canais livres e de propriedades coletivas. Se não existissem, não haveria troca de espécie alguma, pois servem de suporte ao deslocamento de pessoas, veículos, mercadorias, informações (1988:91). O autor nos fala ainda das multiplicidades da rua com suas inúmeras funções e apropriações como suporte não só da arquitetura, que por si só é obra das relações humanas, mas também como local de encontro.

Para alguns autores da Geografia, a rua é vista como uma dimensão concreta da espacialidade das relações sociais num determinado momento histórico, mais do que isso, nas ruas se tornam perceptíveis às formas de apropriação, nelas se afloram as diferenças e as contradições que envolvem o cotidiano, enfim, as ruas se revelam como elemento importante de análise da sociedade.

Segundo Carlos (1996:88), no transcurso de um dia é possível presenciar que as Ruas da cidade são tomadas por passos com ritmos diferenciados, com destinos diferentes. A autora afirma que as ruas guardam múltiplas dimensões, portanto, podem ter o sentido de passagem; o sentido de fim em si mesmas quando seu uso se volta para a realização da mercadoria; o de mercado, onde camelôs e feiras reúnem pessoas; o de festa; o de reivindicação; o de apropriação como território e, finalmente, o sentido de encontro.

Lefebvre (1999), em seu livro A Revolução Urbana, apresenta argumentos favoráveis e contrários à dinâmica da rua. Em sua análise, o autor afirma que a rua é mais que um lugar de passagem e circulação. Ele argumenta que com a invasão dos automóveis destruiu-se toda a vida social e urbana, impedindo que a rua fosse o local do encontro. Para ele, o encontro espontâneo proporcionava sentido à vida urbana. Ao elaborar seus argumentos contrários sobre a rua, Lefebvre questiona o tipo de encontro que ali poderia ser estabelecido. Segundo o autor, uma vez que o indivíduo caminha lado a lado com o outro, não existe o encontro. A rua, nesse aspecto converte-se numa rede organizada pelo/para o consumo.

A rua e a evolução de seu significado social

Anterior à era contemporânea, os logradouros públicos podem ter sido evitados pela aristocracia, para darem lugar às classes menos favorecidas, uma vez que a estratificação social sempre existiu. Porém não se podia impedir que as pessoas se movimentassem em espaços públicos.

É a partir da retificação das ruas, projetadas por meio das ações urbanísticas a fim de atenderem às novas necessidades das cidades, que as mesmas passaram, então, a ser “obra” da classe dominante sendo por ela utilizadas.

Para Saldanha, a rua possui a mesma essência da praça, sendo aberta, ela é épica e histórica. Em sua análise sobre a rua, o autor aponta que:

(...) a vivência da praça por parte das classes altas terá sido sempre diversa da vivência por parte das classes baixas: a construção mesma dos “logradouros” foi sempre obra das classes dominantes. (1993:22)

Nesse sentido, passaram a ser construídas com determinados propósitos: como local de festejos e cerimônias, pois tinham como função servir de espaço público, onde era comum a convivência social, por onde as pessoas passeavam tranqüilamente e faziam dela um espaço de lazer.

A rua, então, se apresenta como o resultado da contradição entre o público e o privado. Todavia, é importante que se esclareça sob qual concepção compreendemos o público e o privado. Segundo Sennett (1993), o público e o privado sofreram alterações em seu significado, desde a antiga Roma até a era moderna. Mas foi no século XVIII que os padrões modernos passaram a referenciar as duas dimensões da vida social.

O autor ressalta o espaço público como algo desprovido de sentido, uma vez que arquitetos projetam edifícios e se preocupam apenas com a estética e a visibilidade, fazendo com que algumas ruas do centro se transformem em local de passagem.  Isso resume o que o Sennett chama de “supressão do espaço vivo”, quando o mesmo destina-se à passagem, e não à permanência.

Nesse contexto, a rua aparecerá como forma de passeio público e lazer. No século XVIII, surgem os famosos cafés e mais tarde os bares. Porém, o espaço público ainda era considerado um espaço morto, por estar iniciando o processo de movimentação, ou seja, ainda era um espaço vazio.

Na realidade, à medida que o processo de modernização foi se desenvolvendo, ocorreu uma certa supressão do espaço público, visto que esse espaço destinava-se cada vez mais à passagem, e não à permanência. Criou-se, assim, o paradoxo do espaço público ao longo dos anos.

Como elucida Benjamin (1989: 35), por volta do século XIX, surgiu uma relação entre o flâneur e as ruas quando aspirava-se, simbolicamente, à sua conquista:

A rua se torna moradia para o Flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês (...).

Para situarmos melhor a problemática da função das ruas, devemos ressaltar a interferência que os automóveis passaram a exercer, a partir do início do século XX, nas vias públicas, pois não é possível observarmos e conhecermos as ruas dentro de veículos. Estes nos oferecem “liberdade” de movimento, mas, ao mesmo tempo, tiram a liberdade de movimento de quem deseja passar e conhecer as ruas da cidade.


Recorrendo mais uma vez a Sennett (1993: 28):

(...) as ruas da cidade adquirem então uma função peculiar: permitir a movimentação; se elas constrangem demais a movimentação, por meio de semáforos, contramão etc., os motoristas se zangam ou ficam nervosos (...).

Portanto, a movimentação dos automóveis provoca um efeito contraditório no espaço público, em especial no espaço da rua urbana. Com essa contradição, o espaço perde seu sentido.

O termo “cosmopolita”, derivado do público urbano, surgiu mediante os novos hábitos de se “estar em público”. Associado ao público urbano, cosmopolita, tem como significado em Sennett um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em situações sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar (1993:31). Assim sendo, o cosmopolita é um homem público, no sentido de ter uma vida que é passada fora da família e dos amigos íntimos, onde a cidade seria o centro das relações públicas.

Em sua análise, Sennett (1993:32) afirma que o homem moderno perdeu a oportunidade da experimentação que as ruas lhe ofereciam por trocar o simples caminhar pela correria dos automóveis.

Quanto à definição de modernidade, acordamos com Hansen (2000), ao afirmar que ela encerra em si a valorização de elementos subjetivos e da razão, no que tange aos parâmetros sociais, políticos, culturais e cognitivos. Isso justifica a criação de instituições que, além de gerenciarem a vida da sociedade, legitimam ações movidas pela racionalidade.

Como elucida Harvey (1992), a modernidade envolve uma série de rupturas com todas e quaisquer condições históricas precedentes, portanto, é caracterizada por um interminável processo de interrupções e fragmentações internas. Mas, na realidade, a compreensão e a visão moderna do mundo está estruturada em diferentes modelos de racionalidade, por isso, os conflitos (diferenças) surgem nos arranjos espaciais.

Para o geógrafo Yázigi (2000), após as transformações urbanísticas estruturais em todo o sistema viário e o aumento da frota nacional de veículos, as ruas passaram a ser espaço destinado ao automóvel. Os zoneamentos atuais nas cidades marcam as funções e usos do espaço, influenciando diretamente na vida dos pedestres.

Com a modernidade, mudanças comportamentais chegaram à cidade. Tais mudanças interferiram de forma negativa na relação da sociedade com a rua, principalmente a partir de 1960, quando ocorreu o retorno da intimidade para os interiores, priorizando-se mais os salões, os clubes e centros esportivos em detrimento da rua como espaço público.

A era contemporânea trouxe consigo benefícios e desequilíbrios ao contribuir com a cisão do espaço público. As ruas e calçadas deixaram de ser espaço de divertimento. Nesse contexto, surgem a televisão, o telefone e a ampliação dos problemas sociais, como a violência. Todos esses fatores correlacionados contribuíram, direta ou indiretamente, para o “esvaziamento” das ruas.

As ruas das grandes cidades foram transformadas num espaço tumultuado, onde centenas de pessoas de todas as classes e situações passam correndo umas pelas outras, sem ao menos se olharem. As ruas das grandes cidades deixaram de ser espaço de passeio e lazer para converter-se em espaço de indiferença.



A rua e suas apropriações



A rua como extensão da casa



Da Matta (2000:15), em seu livro A Casa & a Rua, trabalha Casa e Rua como duas “categorias sociológicas”:



Quando digo então que “casa” e “rua” são categorias sociológicas para os brasileiros, estou afirmando que, entre nós estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de possibilidade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas.



A relativização que Da Matta (2000) propõe entre o espaço da casa e da rua gira em torno da concepção do “espaço moral”. A moral e os bons costumes estavam associados ao espaço da casa. Esta representava - e representa até hoje - o espaço íntimo e privativo da sociedade brasileira desde a época colonial. Na casa se poderia ter opinião, chamar a atenção, ter expressão; atos que, na rua, seriam condenados.



Enquanto a rua possui oposição, representada pela fluidez e movimento, nela se encontram os indivíduos anônimos, vigorando também nesse espaço o discurso da impessoalidade, onde os segmentos dominantes, como elucida Da Matta, tendem a tomar o código da rua para produzirem a fala totalizada, a qual baseia-se em mecanismo impessoal, simbolizado: pelo modo de produção; luta de classe; subversão da ordem, enfim, a lógica do capitalismo. Nessa concepção o foco está somente nas leis, e não nos indivíduos.



Para Da Matta (2000), na rua é possível sermos desrespeitados por aqueles que representam a “autoridade”, pois somos vistos por eles como “subcidadãos”. Por não termos voz na condição de “subcidadãos”, apresentamos um comportamento “dúbio” ao jogarmos o lixo e sujarmos ruas e calçadas, sem cerimônia, e ao desobedecermos às regras de trânsito.



Na verdade, não recriamos na rua o mesmo espaço caseiro e familiar, não vemos a rua como espaço público, no sentido de: pertence a todos, espaço comum, de todos. Como adverte Da Matta (2000), a nossa sociedade tem uma cidadania em casa, outra no centro religioso e outra na rua.



Segundo o autor, determinadas expressões marcam a distinção entre casa e rua: “vá para a rua!”; “vá para o olho da rua!”; “estou na rua da amargura!”, essas expressões, denotam rompimento e solidão. Mandar alguém ir para “o olho da rua” significa rompimento e deixar alguém “na rua da amargura” significa solidão, desproteção, estar sujeito às normas vigentes da rua.



Sabemos que essa concepção da rua e da casa é herança da nossa origem colonial, pois o que permeia hoje as duas concepções teve inicio com as regras (normas) estabelecidas e legitimadas pela sociedade colonial, de base escravista. Normas estas relacionadas a atitudes, gestos, roupas, enfim, papéis sociais aceitos pela sociedade da época.



Essas regras estabeleciam o comportamento da sociedade e sua relação com o espaço da rua, as quais estavam de acordo com os valores daquela época. Por isso, os viajantes que retrataram a cidade do Rio de Janeiro, na época colonial, mostraram muito bem o espaço da rua designado aos negros, aos ambulantes e aos escravos-de-ganho, pois esses eram vistos como insolentes.



Da Matta (2000), ao abordar a casa e a rua como categorias sociológicas, não as faz como oposição absoluta, visto que as mesmas se reproduzem mutuamente, pois também na rua há espaços ocupados no sentido da casa, onde determinados grupos sociais vivem como “se estivessem em casa”. Mas, o que nos motiva a estudar a rua, é o fato de a mesma admitir as diferenças.



Percebemos a importância das ruas antigas no contexto da cidade do Rio de Janeiro, quando lemos algo a respeito das mesmas, sob a ótica dos viajantes que por lá estiveram e registraram suas impressões. Nelas, notamos a presença dos vendedores ambulantes que, a princípio, nos parece que foram os que mais circularam pelo Rio Antigo. Segundo Chambelain (s/d: 97), são comuns no Rio de Janeiro vendedores ambulantes, que batem de porta em porta, visitando os arredores até várias léguas de distância, oferecendo mercadorias de toda sorte.



Dentre os vendedores ambulantes que percorreram as ruas do Rio Antigo, estavam – no primeiro momento – os escravos-de-ganho. Mais tarde vieram os imigrantes: franceses, ingleses, italianos, árabes e judeus.



A forma-aparência das casas estava de acordo com o momento histórico e com o alinhamento das ruas e, segundo Chambelain, apresentava-se da seguinte forma:



A maioria das casas, especialmente as dos arrabaldes da cidade, possuem um só pavimento, com portas e janelas de gelosia, chamadas rótulas, muito apropriadas para a entrada de ar (...) ou que sem dúvida contribuem para manter os aposentos frescos enquanto que os moradores podem observar tudo o que se passa na rua – vantagem de não pouca importância para os brasileiros (s/d: 99).



Nas análises de gravuras, notamos o código de valores da época colonial através da forma-aparência das casas. As janelas serviam como mediação entre o espaço da casa e o espaço da rua. A rótula nas portas e as janelas amplas possibilitavam ver de dentro de casa o que se passava no espaço da rua. A princípio, as ruas nos parecem um espaço inteiramente público – no sentido de estar à vista de todos.



Segundo Hermann Burmeister (apud Da Matta, 2000), consta que pelas ruas do Rio havia mais gente de cor negra circulando, maltrapilhas ou seminuas do que gente branca com trajes convenientes. Mais adiante, o mesmo autor continua sua narração, dizendo que as ruas da cidade do Rio de Janeiro estavam entregues a capoeiras, vagabundos e gente de todo tipo.



Ao fazermos uma análise das informações mencionadas, podemos concluir: a rua no período colonial era espaço dos ambulantes, e não da sociedade, principalmente das mulheres. Esse fato reafirma a suposição da função da rua, anterior ao século XX, como espaço apenas de passagem para alguns e espaço do comércio e de permanência para outros.



Flanando pela rua



A importância do caminhar está, principalmente, no fato de se poder escolher por e para onde ir. O pedestre cria seu próprio espaço de enunciação e, desta forma, desconsidera a ordem espacial estabelecida, que condiciona e só nos permite conhecer caminhos lícitos.



Certeau (2000:176) nos fala, de forma poética, da importância dos passos que chama de um estilo de apreensão táctil de apropriação cinética. O caminhar forma mapas urbanos, transcrevem-se no espaço seus traços, moldam o espaço. O autor ressalta a importância da trajetória, dos passantes.



O ato de caminhar vai além das representações gráficas, pois Certeau (2000) encontra em tal ato a primeira definição de espaço de enunciação. Para ele, a enunciação do pedestre apresenta três características que se distinguem no sistema espacial: o presente, o descontínuo, o “fático”. Assim sendo, cabe ao caminhante atualizar, mudar, legitimar, desconsiderar, transformar, escolher, criar caminhos, de acordo com sua necessidade e sua vontade.



O exemplo dos atalhos representa todas as possibilidades do caminhante, visto que é ele quem o escolhe. Portanto, a caminhada privilegia ou não, muda ou deixa de lado, quando possível, elementos espaciais, podendo criar algo descontínuo.



Assim, o ir para lá ou acolá instaura uma articulação conjuntiva e disjuntiva de lugares. Para Certeau, (2000:177) o espaço geométrico dos urbanistas e dos arquitetos parece valer como o “sentido próprio” construído pelos gramáticos e pelos lingüistas, visando a dispor de um nível normal e normativo ao qual se podem referir os desvios e variações do “figurado”.



O autor afirma ainda que o espaço alterado se transforma em singularidades aumentadas e em “ilhotas separadas”, criando-se um “fraseado espacial” de tipo antológico e elíptico, em vez de um espaço coerente e totalizador.



A importância de se percorrer as ruas, como espaço público, está no fato de através delas, ser possível conhecermos a cidade. Visto que a cidade se inscreve, nos seus muros, nas suas ruas. Mas essa escrita nunca acaba. O livro não se completa e contém muitas páginas em branco, ou rasgadas percursos e discursos acompanham-se e jamais coincidem (Lefebvre 1999:114). Portanto, como já dissemos, somente quando percorremos a cidade nos surge à possibilidade de conhecê-la, pois na forma-aparência está o discurso urbanístico cristalizado.



Certeau (2000:179), ao abordar a retórica da caminhada, faz menção ao estilo e ao uso. Segundo ele, o estilo manifesta o plano simbólico, conota o singular e o uso define o fenômeno social, ou seja, remete a uma norma.



O estilo e o uso estão relacionados com a forma-conteúdo, pois a forma trata de uma disposição espacial e o conteúdo nos remete ao uso. A forma urbana tende a romper os limites que tentam aprisioná-la. Esses limites fazem parte do discurso do espaço público.



Segundo Canevacci (1993:22), a cidade apresenta enfoque polifônico e pode ser “lida” e interpretada de acordo com os olhares que se lançam sobre ela.



O autor acrescenta que:



Um edifício “se comunica” por meio de muitas linguagens, não somente com o observador mas principalmente com a própria cidade na sua complexidade: a tarefa do observador é tentar compreender os discursos “bloqueados” nas estruturas arquitetônicas, mas vividos pela mobilidade das percepções que envolvem numa interação inquieta os vários espectadores com diferentes papéis que desempenham..



As pessoas que circulam pelas ruas da cidade e lançam seu olhar sobre a mesma, na condição de espectador, fazem uma interpretação singular por conta da suabagagem experimental e teórica. Caso haja “comunicação”, o espectador pode mudar o sentido das formas de acordo com os signos e valores atribuídos no tempo e no espaço.



Como nos esclarece Canevacci, dependendo da percepção do espectador, pode ocorrer uma comunicação entre um edifício e a sensibilidade de um cidadão que elabora percursos absolutamente subjetivos e imprevisíveis (1993: 22). Ou seja, cada pessoa pode escolher um caminho, de acordo com o horário que lhe for conveniente e até mesmo pelo fluxo diário, enfim, cada pessoa pode elaborar seu próprio itinerário urbano.

Essa escolha pode estar relacionada com a forma ou até com o conteúdo. Uma arquitetura mais antiga ou contemporânea, assim como o seu uso pode atrair a circulação de pedestres que para lá se dirigem, de acordo com seus interesses.



Canevacci (1993:22), em sua abordagem, afirma: cada forma arquitetônica tem o poder inexaurível de comunicar-se através de todo o aparelho perceptivo-emotivo e racional as memórias biográficas elaboram mapas urbanos invisíveis, por isso o autor afirma ser a comunicação urbana um diálogo, retirando desta a visão restritamente unidirecional.



Lynch (1999:1), ao falar da importância da imagem, nos esclarece que não somente as partes físicas da cidade (as formas) são importantes, mas também os elementos móveis (as pessoas) e suas atividades, pois estão todos inseridos na dinâmica da cidade. Nesse sentido, as pessoas são mais do que meros observadores do espetáculo são parte dele. O autor traduz a imagem como combinação de todos os sentidos.



Para identificar-se o ambiente, necessariamente tem que usar os sentidos, assim como outros indicadores como: mapas, placas de sinalização nas ruas, sinais de trânsito, placas de itinerário de ônibus etc. Lynch (1999) segue em sua análise, ressaltando a importância da orientação, no sentido de equilíbrio e bem-estar. O estar perdido nos remete à angústia.



No processo de orientação, o quadro mental nos possibilita suporte não só quanto à posição geográfica, mas quanto ao equilíbrio emocional. Portanto, existe forte ligação entre o ambiente e o observador, pois o mesmo seleciona, organiza e atribui significado a tudo que vê. Nessa acepção, afirma o autor que a imagem de uma determinada realidade pode variar significativamente entre observadores diferentes (1999:7).



Sendo assim, poderíamos ressaltar que a trajetória passa a ter valor e significado quando há o despertar do passante, quando ele se abre ao desconhecido, quando ele observa a cidade utilizando o aparelho perceptivo-emotivo e racional. Só então ele poderá construir sua memória biográfica da cidade, pois para elaborar mapas invisíveis, utilizando o cognitivo, é preciso despertar o olhar e perceber a “comunicação” que está presente no urbano, por este motivo ressaltamos a importância das ruas neste contexto.






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