quarta-feira, 17 de agosto de 2011

" A última quimera"

A ÚLTIIMA QUIIMERA (1995)
DE ANA MIRANDA:: A FIIGURA DO POETA AUGUSTO
DOS ANJOS NO SEU PROCESSO DE IIDENTIIDADE
                                                                        Inajara Silva de Albuquerque
                                                                        (Graduanda – UNESP/Assis)
                                                                        Profa. Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti
                                                                        (Orientadora – UNESP/Assis)

As narrativas ficcionais sempre tiveram cunho histórico, desde a Antiguidade,
mas costuma-se localizar o nascimento do gênero romance histórico no início do
século XIX, durante o romantismo, como o romance Ivanhoé (1819), do escritor inglês
Walter Scott (1771-1832). Os romances de Scott tornaram-se modelos para outros
escritores, obedecendo à seguinte “fórmula”:

A ação do romance ocorre numa ação anterior ao presente do
escritor, tendo como pano de fundo um ambiente histórico
rigorosamente reconstruído, onde figuras históricas reais ajudam a
fixar a época [...] Sobre esse pano de fundo histórico situa-se a trama
fictícia, com personagens e fatos criados pelo autor. Tais fatos e
personagens não existiram na realidade, mas poderiam ter existido, já
que sua criação deve obedecer a mais estrita regra de
verossimilhança. (ESTEVES, 1998, p.129)

O gênero romance histórico chegou às Américas com bastante intensidade,
como uma espécie de epidemia, embora saibamos da complexidade que é discutir
história e literatura, visto que elas se relacionam quando se trata da evolução do
homem. Assim, podemos pensar no que a ficção e história podem refletir na vida atual
do homem contemporâneo, nos âmbitos sociais, culturais, políticos e econômicos,
sendo a busca de identidade a mais preocupante nos tempos atuais.
No Brasil o romance histórico, nos séculos XX e XXI, é representado por
alguns escritores, dentre os quais se destaca a grande autora contemporânea Ana
Miranda, que nasceu em Fortaleza, em 1951, cresceu em Brasília, mas reside na
cidade do Rio de Janeiro desde 1969. Alguns de seus romances históricos são: Boca
do inferno (1989), O retrato do rei (1991), Sem pecado (1993) e A última quimera
(1995), todos publicados pela Companhia das Letras.
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A última quimera é um romance histórico que narra a vida e a morte do poeta
paraibano Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1913), que encantou e
desencantou o público com suas palavras frias, estranhas, usando vocábulos
científicos. É chamado de “o poeta da morte” e tem como única obra um livro de
poemas de nome Eu (1912).1
O romance A última quimera, além de ser histórico, possibilita-nos pesquisar
o tema do duplo porque o narrador age como se fosse a personagem Augusto, já que
imita as suas ações num sentido amplo. Além disso, sabemos que a relação entre a
literatura e a psicanálise é importante para ambas as ciências cujo objetivo comum é
permeado pela interpretação:

Literatura e psicanálise se relacionam como um eu e seu outro,
encontram-se no projeto reiteradamente reinventado de retomar a
experiência e o desejo humanos em sua dimensão de significação, de
interpretação e de sentido. (SAMPAIO, 2002, p. 175).

A temática do duplo foi abordada de forma pioneira e muito completa por Otto
Rank (1914), em sua obra O duplo. Segundo Freud, “Ele penetrou nas ligações que o
duplo tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a
crença na alma e com o medo da morte”. (FREUD, 1976, p. 293).
Todas essas características são produzidas pelo duplo sendo que elas podem
ser positivas, isto é, resultantes de um processo de identificação entre o “eu” e seu
duplo, ou negativas – como forma de rejeição para com o duplo.
O narrador, em A última quimera, demonstra momentos de positividade em
relação ao poeta quando a dimensão está focada na vida poética e artística de
Augusto; porém, quando o assunto é Esther, mulher de Augusto, tudo muda e o lado
negativo assume a dianteira e o narrador não consegue deixar de criticar ou até
mesmo de sugerir que Augusto não foi bom enquanto marido.
O duplo estabelece sempre um compromisso entre o interior e o exterior do
sujeito em relação ao “eu” (positiva ou negativamente, como vimos) e por isso várias
são as discussões quando se trata do duplo. No artigo de Carla Cunha sobre o
assunto (2009), ela estabelece uma distinção de características a propósito do Duplo,
que pode ser endógeno, “estabelecendo a harmonia e cumplicidade entre o eu e o
1 Eu foi a obra que o poeta Augusto dos Anjos escreveu antes de morrer. Depois da sua morte o amigo
Órris Soares a reedita com os poemas que Augusto guardava; assim, desde então, várias são as edições,
como a obra intitulada Eu e outras poesias.115


outro” num aspecto interior e, por outro ângulo, o duplo exógeno, que surge não
necessariamente a partir do “eu”. Podemos notar que o narrador tem dentro de si os
dois aspectos já que a formação do duplo surgiu tanto interiormente quanto
exteriormente, mas observa-se que os dois conceitos se condensam formando um só.
Walter Benjamin caracteriza três estágios evolutivos por que passa a história
do narrador. Primeiro estágio: os narradores clássicos, cuja função é dar ao seu
ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência; Segundo: o narrador do
romance, cuja função passou a ser a de não mais poder falar de maneira exemplar ao
seu leitor; Terceiro: o narrador que é jornalista, ou seja, aquele que só transmite pelo
narrar a informação. A literatura pós-moderna existe para falar da pobreza da
experiência, mas também da pobreza da palavra escrita enquanto processo de
comunicação. A passividade prazerosa e o imobilismo crítico são posturas
fundamentais do homem contemporâneo, ainda e sempre mero espectador ou de
ações vividas ou de ações ensaiadas e representadas.
Não é por acaso que o tema do duplo é essencial para a literatura e, mais do
que isso, numa obra contemporânea onde uma das abordagens é a falta de identidade
ou a busca de uma. O duplo é interpretado pelo que é o “real” e o ficcional no discurso
do narrador em relação à personagem de ficção Augusto, ou seja: de quem são os
pensamentos e as ações? Do narrador ou do poeta? Existe também a dialética entre o
que é história e o que é ficção na própria obra em relação à personagem histórica.
Veja-se, por exemplo, o trecho em que se insinua uma relação de incesto entre o
poeta e sua irmã:

Francisca e Augusto dormiam juntos, numa rede, abraçados, às
escondidas dos pais. Apesar de saber disso, e dos longos passeios a
cavalo do casal de irmãos, e dos banhos que tomavam juntos, jamais
suspeitei de sentimentos incestuosos entre eles. Porém alguns anos
mais tarde encontrei casualmente na rua o doutor Cão, que me disse
ter sérias suspeitas de que Augusto engravidara sua irmã, quando
ainda moravam no engenho. Francisca teria feito um aborto.
(MIRANDA, 1995, p. 142).

Convém lembrar que, em seus primórdios, as diferenças entre a literatura e a
história não eram marcadas como passaram a ser:
Houve um período em que simplesmente o discurso da literatura se
confundia com o discurso da história. Parte da história da civilização
Grega, por exemplo, se conta através dos versos de Homero, que
canta a história grega. (ESTEVES, 1998, p.126).
A imagem da personagem Augusto dos Anjos é extremamente representada
pelo discurso duplo do narrador, sendo que a “colagem” dos poemas e das cartas que
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a mãe escrevia para o poeta também aparece demonstrando a “autenticidade” da
narrativa, e as ações “reais” do poeta. A este propósito, considere-se o que afirma
Lacan:
Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no
sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a
transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem
– cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente
indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago. (LACAN, 1998, p.96).


Ao identificar o outro como imagem nós podemos compreender que há uma
relação entre o reflexo de um espelho e a teoria de duplicação do “eu” para se formar
o outro. Eis um exemplo: O filho do homem numa idade em que, por um curto espaço
de tempo, é superado em inteligência instrumental pelo chimpanzé que já reconhece
obstante como tal sua imagem no espelho. Portanto, os estudos de Lacan sobre a
formação do eu mostram como buscamos nossa identidade desde os primeiros
momentos de vida, e o outro sempre é o espelho em que procuramos nossa imagem,
um reflexo a ser imitado, porém o indivíduo escolhe a quem deseja se assemelhar
sendo isso um grande perigo para a formação do caráter.
O enredo do romance ocorre da seguinte forma: ele é dividido em cinco
partes, sendo a primeira intitulada “Rio de Janeiro 12 de novembro 1914”; em seguida
temos “A viagem”; “Leopoldina-MG”; “De volta para o Rio de Janeiro” e “Epílogo”.
Durante a viagem realizada percebemos no discurso do narrador como ele é obcecado
pelo poeta e por Esther, mulher de Augusto. Por isso o poema “Versos Íntimos”
aparece muitas vezes ao longo do romance, isto é, quando o foco do discurso estiver
direcionado a Esther: “Como estará ela? Tiro do bolso um fósforo e acendo meu
cigarro”. (MIRANDA, 1995, p.15).
Certamente Augusto dos Anjos foi o Espelho ou a imagem que o narrador
teve, já que fica evidente o fascínio pelo poeta. O discurso narrado é sempre
representado pelo Duplo. Eis um exemplo:
Reuni todos os meus manuscritos [...] derramei querosene sobre as
folhas manuscritas, sentindo que meu peito se separava. Ali estavam
minhas lembranças, minhas misérias, meus sofrimentos de amor,
meu ódio, minhas esperanças, meu erotismo, minhas paixões, meus
segredos, os sonetos escritos às mulheres que amei, que desejei,
cada um com um título de nome: Zolina, Marion Cirne, Camila. Ali
estavam os meus poemas às prostitutas do Senhor dos Passos que
eu admirava de longe, apaixonado, logo que cheguei da Paraíba: o
meu Eu. Ali estava toda a minha vida (MIRANDA, 1995, p. 42).117


Diante desse trecho observamos a forma dualista pela qual o narrador
demonstra semelhança com o próprio poeta, mas, se a priori a função do narrador é
narrar, por que ele aparece como se fosse Augusto narrando, assumindo seu perfil em
determinadas partes do romance? Esse é o típico narrador pós-moderno que vai ser
questionado, segundo o crítico Silviano Santiago, nos seguintes termos:
“Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Ou
seja: é aquele que narra ações a partir da experiência que tem delas,
ou é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que passou
a ter delas por tê-las observado em outro?”. No primeiro caso, o
narrador transmite uma vivência; no segundo caso, ele passa uma
informação sobre a outra pessoa. Pode-se narrar uma ação dentro,
ou fora dela. (SANTIAGO, 1989, p.35).


Concllusões

Justifica-se, assim, pesquisar a obra A última quimera (1995), de Ana
Miranda, pela importância de tematizar o duplo na literatura contemporânea brasileira,
tal como observamos anteriormente. Além disso, autora é conceituada pela crítica, tem
livros publicados em dezessete países, recebeu o prêmio Jabuti em 1990. A última
quimera recebeu o prêmio da Biblioteca Nacional Brasileira, e merecidamente, pois
conta a história de um dos poetas mais originais que a nossa literatura já teve. O
romance é também uma “colagem” dos poemas do poeta simbolista. A narrativa
suscita a identificação de trechos de Eu e outras poesias e a reflexão sobre a função
que eles desempenham na unidade da narrativa. É interessante pesquisar A última
quimera, pois há simultaneamente duas obras, uma dentro da outra, ou seja, o próprio
romance como ficção literária e a obra de Augusto dos Anjos Eu e outras poesias
como ficção da ficção do romance, onde relacionamos a história e a ficção como
questionamento.
A possibilidade de estudar o duplo no romance A última quimera é devida à
relação que existe entre a Literatura e a Psicanálise como procedimentos de
subjetivação e da interpretação. O uso da psicanálise na obra não é um diagnóstico
médico, pois os elementos imaginários são reconstruídos pela linguagem a partir de
um mundo real. Ou, em outros termos, “Hoje a psicanálise e a literatura se misturam:
há vários textos escritos por não analistas onde conceitos analíticos são utilizados
para fazer crítica literária. Da mesma forma, várias coletâneas, escritas por analistas,
abordam questões literárias” (CHNAIDEMAN, 1989, p.23).
O duplo tem como um dos pontos de vista a imortalidade. Podemos pensar
que a obra do poeta e ele mesmo “revivem” dentro do romance enquanto substância,
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um retorno do “Eu” contemporâneo. Raymundo Magalhães Jr., na obra Poesia e Vida
de Augusto dos Anjos, comenta o seguinte: “Desde então se alargou de tal modo o
interesse pela obra de Augusto dos Anjos que são incontáveis os ensaios e até livros
inteiros consagrados ao estudo de sua obra” (MAGALHÃES JR., 1977, p. 317).
Trabalhar, enfim, diretamente com a obra Eu e outras poesias de Augusto dos
Anjos ou o romance de Ana Miranda, A última quimera, é um modo pelo qual a obra
do poeta não viva de fato, mas que pelo menos sobreviva pela imortalidade, através
de mais um trabalho escrito sobre o poeta.

Refferênciias biiblliiográffiicas
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martin Claret, 2006.
CHNAIDERMAN, Miriam. Passeando entre a psicanálise e a literatura. In: Ensaios de
psicanálise e semiótica. São Paulo: Escuta, 1989.
ESTEVES, Antonio. (org.) Estudos de Literatura e Lingüística. São Paulo: Arte &
Ciência, 1998.
ESTEVES, Antonio & CARLOS, Ana Maria. Ficção e História: leituras de romances
contemporâneos. São Paulo: UNESP Publicações, 2007.
LACAN, Jacques. O estádio do espelho na formação do eu. In: ______. Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MAGALHÃES Jr., Raimundo. Poesia e vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977.
MIRANDA, ANA. A última quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: ______. Nas malhas das letras.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.