sexta-feira, 18 de abril de 2014

Uma faca só lâmina

João Cabral de Melo Neto e o estilo da faca
Uma faca só lâmina



O poema “Uma faca só lâmina”, de João Cabral de Melo Neto, se compõe


de 348 versos, divididos em nove partes intituladas por letras maiúsculas de A a


precedidas por uma introdução e seguidas de um epílogo. Cada uma contém oito


quadras de rimas pares. Ele se constrói a partir de relações comparativas,


baseadas em três objetos: a bala, o relógio e a faca. O primeiro verso já indica


tratar-se de uma espécie de discurso interrompido. O leitor se depara com a


expressão “Assim como”, que provoca a sensação de continuação de uma fala


anterior. Outras expressões, “qual”, “igual a” aparecem no restante do poema e


perpetuam essa idéia. Ao mesmo tempo, pressupõe-se um diálogo e, portanto, a


existência de um interlocutor, devido ao “vossa anatomia” presente no verso 24






A dificuldade de falar sobre o objeto leva ao uso de uma série de


metáforas. Não se consegue descrever o objeto a partir dele próprio, então se


utilizam outros objetos para construir imagens a fim de tentar chegar até ele.


Embora se encontrem no lugar da coisa comparada, não a representa, são


insuficientes. Estabelecem-se comparações, relações, porém não se chega ao


objeto por meio delas, mas ele parece se esquivar, se esvair.


Seja bala, relógio,


Ou a lâmina colérica,


É contudo uma ausência


O que esse homem leva.






A indefinição do objeto se define pela ausência, talvez, por isso, a


dificuldade, por não se conhecer os limites da ausência. Em A, três estrofes se


iniciam pelos contraditórios versos “...o que não está/ nele está como...” É a


presença da ausência, paradoxo caracterizador, que habita tanto o corpo físico


quanto o espiritual. Haveria uma condição humana de ausência, capaz de garantir


universalidade a todos os homens.






Os casos exemplares da bala, que pesa, do relógio pulsante e da faca, que


corta, suprimem metaforicamente a coisa comparada, mas ao mesmo tempo é


designada por elas como ausente. Todas as imagens carregam significações


contraditórias. Ao invadir um corpo, uma bala torna-o mais pesado, mas o que se


agrega a esse corpo, na verdade, não pretende lhe acrescentar nada, pois está ali


para lhe tirar a vida. O relógio, que pulsa impiedosamente, parece querer lembrar


que a cada movimento retira mais um instante da vida do homem, que


irremediavelmente não mais voltará.


Apesar de fazer uso da “bala” e do “relógio”, a imagem mais próxima é a da


faca, mais especificamente da “faca que só tivesse lâmina”.


porque nenhum indica


essa ausência tão ávida


como a imagem da faca


que só tivesse lâmina


O próprio título da obra já demonstra essa carência, uma faca cujo cabo lhe


falta, daí a dificuldade de pegá-la. Como segurar uma faca com apenas a lâmina?


Como manuseá-la? Quem tentar segurá-la, certamente se cortará, pois ela é toda


corte, pronta para cortar e machucar o tempo todo, totalmente potência arisca


para ferir. E essa justamente é a sua natureza: do corte, da ferida impiedosa. A


parte B se dedica a descrevê-la pela essência que a caracteriza:


medra não do que come


porém do que jejua.






Ela não perde o corte por cortar, mas por não cortar. Traz em si essa


potência inegável, que precisa se manifestar para ser ela mesma com mais


intensidade, para se mostrar em toda a sua plenitude.


a lâmina despida


que cresce ao se gastar,


que quanto menos dorme


quanto menos sono há






Os versos componentes da parte C abordam o cuidado necessário com o


objeto, no manuseio dele, ou seja, quem o utiliza deve se assegurar de algumas


precauções. Contudo, “o importante é que a faca/ o seu ardor não perca”, há os


interessados na manutenção dessa faca só lâmina para que a madeira não a


corrompa. A madeira pode corromper, por ocupar o espaço que também poderia


ser lâmina e, assim, menos lâmina, menos corte. Também a madeira constitui o


local reservado para quem pretende segurar a faca, lembrando a responsabilidade


da mão que a direciona. A faca é potência de corte, mas sozinha ela não sai do


lugar. Todo poder de destruição que encerra depende da mão humana para vir à tona.






Mesmo parada, guarda a potência “talvez que não se apague/ e somente


adormeça” na “maré-baixa”. O fato de manter-se inativa não significa que assim


permanecerá.


(Porém quando a maré


já nem se espera mais,


eis que a faca ressurge


com todos seus cristais)


Seja bala, relógio ou faca está interiorizado, como mencionado na


introdução (“enterrada no corpo”, “submerso em algum corpo”) e reiterado em G


(“encerrado no corpo”). Não se pode retirar, faz parte do ser humano, lhe é


indissociável, próprio, e do qual ninguém pode privá-lo. Uma ausência que o


integra, da qual não se pode fugir, pois lhe é inerente (“leva às vezes na carne,


“leva no músculo”), justamente a ausência que torna o corpo “mais desperto”, dá


“maior impulso” ao homem.






Afinal, a insatisfação, o descontentamento, o inconformismo levam o


homem a se superar, a ir além daquilo que esperam dele, a ultrapassar os seus


próprios limites. O desejo incontrolável nasce da falta, de uma carência


insuportável. No entanto, satisfazer um desejo nunca lhe garante a plenitude, pois


essa falta permanente, essa incompletude inerente produz mais e mais desejos


em busca de realização. O homem nunca se dá por satisfeito, nunca está


completo, sempre lhe faltará algo. É essa falta que faz ele estar sempre em busca,


à procura de. Lidar com essa eterna insatisfação e incompletude fortalece o homem.


Em volta tudo ganha


A vida mais intensa






Em meio à rotina, o lado mais cortante se revela. É preciso coragem para


se arriscar, aquilo que parece ruim, pode ser bom, depende do olhar, da vontade,


da disposição para se rasgar. Bala, relógio, faca paradas, imóveis, parecem


inofensivos, mas guardam a potência, como o homem. Basta um simples gesto


para afirmar a essência de cada uma delas, mas é necessária a atitude. No caso


do relógio, atitude em forma de reflexão (que também é ação), pensar sobre o que


se fez e o que se fará com o tempo disponível, como aproveitá-lo da melhor


maneira possível. Atitude sempre requer coragem. E pensar talvez seja o que


mais necessite disso, pois o pensamento leva o homem ao sofrimento, à angústia


de perceber os rumos que a vida tomou, ao assumir os sonhos desfeitos, as


desilusões inevitáveis.






Na parte H e no epílogo, o poema se refere explicitamente à linguagem. A


incapacidade da linguagem já se evidenciara nos primeiros versos, diante das


metáforas sempre insuficientes para se atingir o objeto. Agora se afirma a utilidade


das imagens citadas (bala, relógio, faca), pois o esforço da construção das


metáforas exige que o poeta vá além do uso cotidiano das palavras. Asfixiadas


“debaixo do pó”, “despercebidas” no dia-a-dia tornam-se “palavras extintas” “no


almoxarifado”. Para lhes dar vida novamente, é preciso recuperar a potência


oculta que as caracteriza, essência inerente sempre pronta a ser renovada.


Pois somente essa faca


dará a tal operário


olhos mais frescos para


o seu vocabulário.






A linguagem também trabalha com esse jogo de presença e ausência.


Diante do leitor, o poema está presente, mas para que se configure de forma mais


plena, requer que se leia o que está ausente e, ao mesmo tempo, presente na


ausência, nas entrelinhas dos versos. Quando a palavra se liberta do seu


referencial e, trabalhada poeticamente, contempla a ambigüidade, liberta-se das


amarras da linguagem e se faz mais linguagem. Ao rasgar a si mesma, revela-se


em toda a potência inerente de criação e, se recriando, reinventa o mundo ao


redor.






A transgressão linguística decorre justamente da capacidade


que tem o signo poético, movido pelo vigor da linguagem, de


querer ser e não apenas significar. Assim ele se configura


como um anti-signo e a ambiguidade se apresenta então,


como a marca no texto poético da ação libertadora da


linguagem. (SOARES, 1978, p.33)






Se “a criação poética é todo um trabalho de recriação e libertação”


(SOARES, 1978, p.64), todo o poema “Uma faca só lâmina” consiste numa


“dialética de aproximação a um objeto cuja própria natureza recusa a apreensão”.


(BARBOSA, 1975, p.149) O conflito dramático que alimenta a obra se baseia na


luta entre aquilo que se quer dizer e aquilo que pode ser dito. E, para poder dizer,


o poeta se utilizará de


O que em todas as facas


é a melhor qualidade:


a agudeza feroz,


certa eletricidade,


mais a violência limpa


que elas têm, tão exatas,


o gosto do deserto,


o estilo das facas.






O gosto do deserto, o estilo das facas é o estilo que norteia a própria


composição do poema. João Alexandre Barbosa considera que, na maior parte da


obra de João Cabral de Melo Neto, pode-se perceber o sentido de “imitação da

  1. forma”, ou seja, como o poeta aprende com os objetos uma maneira de imitar a


realidade. Isso ocorre com a imagem da “pedra”, em outros poemas, e aqui no


caso da “faca”. Essas imagens expressam a linguagem da carência e da dureza,


da secura, e estabelecem a relação de dependência entre a composição e a


comunicação, pois os objetos lhe ensinam como ler a realidade, que se torna a


estratégia pela qual é possível falar no poema. Aquela experiência única que


aparentemente não se deixa apreender provoca outra experiência única, o poema,


que se multiplica nas interpretações de cada leitor. O aprendizado dessa


linguagem da carência se configura como orientação aos procedimentos que


contribuem para a intensificação daquilo que o poema diz.






O esforço desse “querer dizer” converge numa espécie de conflito


dramático existente em “Uma faca só lâmina”: insistir no dizer mesmo diante de


toda a extrema dificuldade de se expressar. Isso levaria à afirmação de Escorel


(2001, p.131) de que “a essência do drama é o conflito entre pólos contrastantes”.


Na dramaticidade do fazer de João Cabral, convivem a subjetividade lírica e o


objetivismo social. Assim, o que o define como um “poeta essencialmente


dramático” é a interação dialética do sujeito que se projeta no objeto e do objeto


que se introjeta no sujeito.






Essa tendência dialética se afirma na luta dramática das tentativas de se


conseguir falar sobre um vazio, que se exprime numa sensação de discussão


entre as metáforas de “Uma faca só lâmina”. A própria seleção dos objetos já


consiste numa escolha subjetiva, portanto objetividade e subjetividade não


constituem conceitos tão estanques e opostos quanto supõe a visão lírica


tradicional.






Por isso, Secchin (1985, p.221), formula a hipótese da poesia do menos, na


qual Cabral amputa o excesso de significações pelo “desejo de que as ‘lições’ do


real emanem de processos localizáveis nas próprias coisas, e não dos


investimentos apriorísticos da subjetividade.” Contudo, também não ocorre a mera


substituição do “culto do eu” pelo “culto do objeto”, pois essa dicotomia ingênua


deve ser questionada. A explicação do eu só tem sentido se serve para valorizar o


coletivo, que se mescla à voz individual. Qualquer poeta não deve pretender se


fechar em si mesmo para se isolar, mas encontrar o que também fala sobre os


outros homens, o universal, a fim de permitir que os leitores leiam a si mesmos e


não o poeta.






A linguagem não pode com o instante primeiro da apreensão perceptiva.


Quando se usa a linguagem, ela não substitui a experiência original, que é única,


mas cria outra realidade, o próprio poema, a partir da experiência primeira.


e daí a lembrança


que vestiu tais imagens


e é muito mais intensa


do que pôde a linguagem,


e afinal à presença


da realidade, prima,


que gerou a lembrança


e ainda a gera, ainda,


por fim à realidade,


prima, e tão violenta


que ao tentar apreendê-la


toda imagem rebenta.






Conclusão


Seja “poesia do menos” ou “imitação da forma”, independentemente de


conceitos teóricos, a poética cabralina simultaneamente constrói a sua própria


ética, que permeia toda a obra e, também, se faz presente em “Uma faca só


lâmina”.


Para Benedito Nunes (1974, p.171), a imagem da “pedra”, que contém “o


ideal ético de resistência fria, de dureza obstinada e agressividade”, se transforma


na lâmina da faca. Se a pedra conserva uma resistência moral, a faca guarda em


sua natureza cortante, aguda, penetrante e agressiva uma inquietação torturante.


A edição das Poesias Completas, de 1968, traz o subtítulo que não


constava na publicação original de 1956, em Duas Águas, “(ou: a serventia das


idéias fixas)”. Uma “ideia fixa” corresponde a um desejo obsessivo, que se


consolida pelo não agir, que se refaz de forma permanente, justamente porque


não se concretizou, “seu modo de ser é um não-ser ativo” (NUNES, 1974, p.101),


que se nutre da própria carência.


Em uma faca composta apenas de lâmina basta encostar para se dar o


corte, porque tal como se alimenta uma ideia fixa a cada dia, a lâmina guarda uma


ausência torturante dentro de si, potência pronta para se manifestar num simples


gesto. Da mesma forma, a visão ética severa, que acompanha a poética do


esvaziamento, serve não para esvaziar o homem, mas para mostrar como a falta


produz o desejo que move o ser humano, capaz de colocar em atividade o que se


mantém aparentemente inativo, porém conserva sua potência destruidora intacta


pronta para se manifestar a qualquer momento. Em Cabral, a carência e a


ausência geram produtividade, o esvaziamento constitui parte do processo para a


plenitude do ser.


Quanto mais longe se vai na literatura, mais adiante se vai no próprio


homem. A poesia é ambígua e contraditória, porque o próprio homem também é


um ser essencialmente ambíguo e contraditório. Portanto, sempre há algo a ser


explorado no reverso do que se mostra.










Roberta da Costa de Sousa, mestranda em Teoria da Literatura



terça-feira, 8 de abril de 2014

Capitães da Areia - Jorge Amado

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Análise da obra

Publicado em 1937, Capitães da Areia é o sexto romance de Jorge Amado, um dos mais famosos e traduzidos escritores brasileiros do século 20. No prefácio ao livro, escreve o romancista que, com essa obra, encerra o ciclo de "os romances da Bahia".

A narrativa, de cunho realista, gira em torno das peripécias de um grupo de "meninos de rua" que sobrevive de furtos e pequenas trapaças. Por viverem em um trapiche velho e abandonado (uma espécie de armazém à beira do cais), os garotos do bando, liderados por Pedro Bala, são conhecidos pela má fama de "capitães da areia". É lá, no trapiche abandonado, que Pedro Bala, órfão, (o pai foi morto à bala por liderar uma greve, daí a alcunha do garoto, enquanto a mãe tem o paradeiro desconhecido) se refugia com seu grupo.

A história é conduzida em função dos destinos individuais de cada integrante do bando. Assim, Jorge Amado ilustra a marginalização definitiva de uns (por exemplo: Sem-Pernas e Volta Seca) e a desalienação de outros, como Professor, Pirulito e Pedro Bala. Este, tomando consciência das injustiças sociais, ao final do romance, torna-se líder (tal como o pai), lutando ao lado dos trabalhadores grevistas. Pirulito, devido à vocação, descrita desde o início do romance, torna-se frade capuchinho, justificando a incansável luta de padre José Pedro em resgatar aqueles jovens da marginalidade. Padre José Pedro é uma das poucas personagens adultas, juntamente com a mãe-de-santo Don'Aninha, a se aproximar do grupo marginalizado.

Apresentação de algumas personagens

A personagem Pedro Bala é apresentada da seguinte forma pelo narrador: "É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia Pedro Bala. Desde cedo foi chamado assim, desde seus cinco anos. Hoje tem 15 anos. Há dez que vagabundeia nas ruas da Bahia. Nunca soube de sua mãe, seu pai morrera de um balaço. Ele ficou sozinho e empregou anos em conhecer a cidade. Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos os seus becos" (p. 21). Era loiro, 15 anos, tinha um talho no rosto, provocado por uma briga com o antigo chefe do bando, Raimundo, na disputa pela sua liderança. E, apesar de não participar de todas as cenas, Pedro Bala irá servir como linha condutora de toda a história, dando um caráter coesivo aos diversos quadros que são apresentados ao longo da narrativa.

O grupo liderado por Pedro Bala beirava o número de cem e era composto por:


  • João Grande, o "negro bom", nos dizeres do próprio Pedro Bala: "Engajou com 9 anos nos Capitães da Areia, quando o Caboclo ainda era o chefe e o grupo pouco conhecido, pois o Caboclo não gostava de se arriscar. Cedo João Grande se fez um dos chefes" (p. 23);
  • Volta Seca, que tinha ódio das autoridades e o desejo de se tornar cangaceiro (posteriormente integra-se ao grupo de Lampião, transformando-se em um frio e sanguinário assassino);
  • Professor, que recebe este apelido por gostar de ler e desenhar. Assim o narrador o apresenta: "João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tomara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os todos numa ânsia que era quase febre" (p. 25).
  • Gato, sujeito conquistador, vive entre as prostitutas, com seu jeito malandro atrai uma delas: Dalva;
  • Sem-Pernas, garoto deficiente de uma perna, que serve de espião para o grupo. Fazia-se de órfão desamparado para ser acolhido pelas famílias e, assim, com a confiança destas, conhecia cada ponto estratégico de suas residências, retransmitindo tais informações ao grupo. É em uma dessas casas que Sem-Pernas é bem acolhido por um casal que perdera o filho pequeno. Nesse episódio a personagem vive um grande conflito: sente remorsos por ter de roubar aqueles que lhe acolheram com a um filho, ficando, dessa forma, dividido entre passar as informações da casa para os companheiros e ser leal à família. Decide-se por manter-se fiel aos "Capitães da Areia";
  • Pirulito, "magro e muito alto, uma cara seca, meio amarelada, os olhos encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha" (p. 28). Era o único do grupo que tinha vocação religiosa, embora pertencesse aos Capitães da Areia;
  • Dora, a única mulher do grupo, tinha quatorze anos, era muito simples, dócil e bonita. Representará para os Capitães da Areia a figura da madre protetora, que dará colo, carinho e atenção, e também, a figura da irmã que para eles até então inexistia. Já para Pedro Bala, Dora será a "noiva" e a "esposa". Morre ardendo em febre e seu corpo é levado ao mar, onde será "sepultado" com a ajuda de padre José Pedro, que, mais uma vez indo contra a lei e a moral estabelecidas, decide ajudar os meninos do Trapiche. Dora será uma personagem de fundamental importância na construção da lógica do romance. Será por sua causa que Pedro Bala, apaixonado, iniciará sua transformação e tomada de consciência rumo à ação política e.social.


O emprego metonímico para a apresentação das personagens

Uma forma bastante usual nas narrativas é o narrador apresentar as personagens por meio da descrição de suas características físicas e psicológicas. E nisso, como pudemos ver acima, o romance de Jorge Amado vale-se da metonímia, figura de linguagem que consiste em tomar a parte para representar o todo.

Devido a esse recurso estilístico, temos a impressão de que "a qualidade ou o defeito principal de cada personagem se estendesse e dominasse todo o indivíduo, servindo-lhe de emblema e, em muitos casos, determinando-lhe toda a ação", conforme afirma o prof. Álvaro Cardoso Gomes (em Roteiro de Leitura: Capitães da Areia, Ática, 1996).


Estrutura da narrativa

O romance é divido em três partes, que são subdivididas em capítulos de variadas extensões, ora longos, ora curtos. O prólogo "Cartas à Redação" precede às partes subdivididas do romance. Com ele, o autor cria um artifício que nos leva a acreditar na veracidade dos fatos que a voz, em terceira pessoa, irá narrar sobre os "capitães da areia".

Esse recurso utilizado por Jorge Amado trata-se de um expediente bastante comum e antigo ao gênero romance - que remonta ao início do Romantismo, período em que o gênero será delineado na sua forma moderna e, praticamente, obtém alcance mundial -, de modo que era bastante usual iniciar a narrativa pela afirmação de que a história era a transcrição de um velho manuscrito.

No caso da obra do autor baiano, trata-se de um recurso de caráter missivista-jornalístico, em que aparece uma sucessão de cartas dirigidas à redação do Jornal da Tarde, após a publicação, por parte deste, de uma reportagem em que tratava do assalto das crianças à casa de um abastado comerciante de um dos bairros mais ricos da cidade. Tal expediente - o das cartas e reportagens - , fornece à história um alto grau de verossimilhança. Na segunda parte do romance, por exemplo, o narrador, de forma indireta, nos dá notícia do destino de algumas personagens por meio de reportagens.

O clímax da primeira parte do romance é dividido em dois momentos. O primeiro dá-se quando os meninos se envolvem com um carrossel mambembe que chegou à cidade, deixando em evidência a verdadeira condição de cada um deles, isto é, toda a meninice que existia por detrás daquele embrutecimento causado pela miséria em que viviam: "Mas o carrossel girava com as crianças bem vestidas e aos poucos os olhos dos Capitães da Areia se voltaram para ele e estavam cheios de desejos de andar nos cavalos, de girar com as luzes. Eram crianças, sim - pensou o padre." (p. 73).

O segundo momento será quando a varíola ataca a cidade, matando um deles (Almiro): "E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama." (p. 133). Padre José Pedro tentando ajudá-los vai contra a lei e é chamado às falas pelo arcebispado.


Ruptura com certas convenções do romance tradicional

Já afirmou o prof. Álvaro Cardoso Gomes (em Roteiro de Leitura: Capitães da Areia, Ática, 1996) que Capitães da Areia é diferente dos demais romances de Jorge Amado não apenas por causa da temática, mas também em virtude de sua estrutura sui generis.

A rigor, diz Álvaro Gomes, podemos dizer que o romance não tem propriamente um enredo, porque modernamente o autor preferiu a montagem de Capitães da Areia por meio de quadros mais ou menos independentes, ao invés da estrutura convencional em que há uma rigorosa organização dos fatos e relações causais entre os eventos narrados.


Visão paradoxalmente lírico-comunista

Jorge Amado é conhecido por ser um escritor que cria narradores que aderem às causas das personagens mais necessitadas, excluídas. Escolhendo essa forma de criar histórias, através de narradores que tomam partido pelos mais fracos, Jorge Amado, claramente, reflete os princípios ideológicos da esquerda, pois, conforme já afirmado anteriormente, na época em que escreveu o romance, o autor pertencia aos quadros do Partido Comunista. Dessa forma, o narrador, aqui, funciona como uma espécie de delegado do autor.

D'Onófrio (em Poemas e narrativas: estruturas, Duas Cidades, São Paulo, 1978) afirma que, na arte narrativa, o narrador nunca é o autor, mas um papel inventado pelo autor; é uma personagem de ficção em que o autor se metaformoseia. Mesmo nos casos limites, diz D'Onófrio, do uso da própria vida para fins artísticos, num poema ou num romance escrito em primeira pessoa e com a utilização de dados biográficos da pessoa do autor, quem nos dirige a palavra só pode ser um ser ficcional.

No caso do narrador de Capitães da Areia há muitos traços da personalidade de Jorge Amado, que, na época, era ativista político. No entanto, jamais poderíamos afirmar que o narrador é o próprio Jorge Amado. Sendo assim, a melhor forma de entender essa relação narrador-autor será a de delegação deste para com aquele.


Diálogo com o poema "Bandido Negro", de Castro Alves

O texto que segue abaixo é a epígrafe e as duas primeiras estrofes do poema "Bandido Negro" do poeta romântico, também baiano, Castro Alves:

BANDIDO NEGRO
Castro Alves

Corre, corre, sangue do cativo
Cai, cai, orvalho de sangue
Germina, cresce, colheita vingadora
A ti, segador a ti. Está madura
Aguça tua foice, aguça, aguça tua foice.

(E. SUE - Canto dos Filhos de Agar)

Trema a terra de susto aterrada...
Minha égua veloz, desgrenhada,
Negra, escura nas lapas voou.
Trema o céu ... ó ruína! ó desgraça!
Porque o negro bandido é quem passa,
Porque o negro bandido bradou:

Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.

Para os propósitos aqui estabelecidos, deteremo-nos apenas ao título: "Bandido", aqui, pode ser entendido como herói ao estilo Robin Hood, que é movido pela injustiça, por isso quer fazer justiça pelas próprias mãos. Já o adjetivo "Negro", propositalmente está sendo empregado pelo poeta de forma ambígua: tanto pode designar o negro cativo, quanto pode referir-se ao cavaleiro da vingança, que usa capa negra. A vingança, nesse caso, é uma realização tanto pessoal quanto social - e, para ser realizada, precisa de extensão narrativa (embora tenhamos extraído apenas as primeiras linhas do poema, devido ao nosso objetivo para essa aula, saiba que o poema é longo: contém 16 estrofes).

De forma análoga ao poeta romântico do século 19, seu conterrâneo, Jorge Amado, valendo-se de um tom poético, irá narrar em Capitães da Areia, se assim podemos dizer, a vingança desses jovens excluídos pela sociedade, abandonados à própria sorte. E aqui não são apenas os negros, outrora escravos (como no poema de Castro Alves), que se levantarão contra essa sociedade burguesa, mas também, os pobres, brancos e mestiços.

No poema de Castro Alves há uma espécie de desabafo das vozes escravas reprimidas, uma espécie de reivindicação por justiça, que é feita pelas próprias mãos do Bandido Negro, assim, também são os meninos do trapiche, que, num gesto de desabafo, clamam por justiça, por estarem à margem de uma sociedade que não os reconhece.

Por isso, partem para fazer justiça com as próprias mãos. Por isso, num plano mais geral, existe o conflito desses jovens com a sociedade, com o status quo, isto é, com a ordem estabelecida. E a forma de criar o conflito será roubando desta sociedade seu "sossego", praticando os mais diversos atos ilícitos, como roubar, estuprar etc.


Crítica impassível em torno de sua obra

Tida pela crítica como uma das criações ficcionistas mais populares do Brasil, a obra de Jorge Amado tem-se caracterizado, como já se disse, pela adesão afetiva do narrador aos fatos que relata. Normalmente, seus comentadores o opõem a Graciliano Ramos, que, no mesmo período, observou criticamente o real.

Um dos maiores problemas de Jorge Amado foi, segundo seus críticos, o de aceitar sem profundidade o universo psicológico de suas personagens. É nesse sentido que muitos classificam sua obra como fazendo parte de um populismo literário, inclusive seus romances de ênfase política e social, como é o caso de Capitães da Areia.

É nesse sentido que Alfredo Bosi afirma que o populismo literário (incluindo o de Jorge Amado) é uma mistura de equívocos, e o maior deles, diz Bosi, será por certo o de se passar por arte revolucionária.

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Romanceiro da Inconfidência - Cecília Meireles




A obra Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, foi publicado em 1953, e escrito na década de 1940 quando sua autora, então jornalista, chegou a Ouro Preto, com a finalidade de documentar os eventos de uma Semana Santa. Assim, envolvida pela “voz irreprimível dos fantasmas”, conforme
dissera, passou a reescrever, de forma poética, os episódios marcantes da Inconfidência Mineira, destacando, evidentemente, o martírio de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, personagem principal da obra.
O Romanceiro é formado por um conjunto de romances , poemas curtos de caráter narrativo e/ou lírico, destinados ao canto e transmitidos oralmente por trovadores e que permaneceram na memória coletiva popular. Expressão poética específica do passado ibérico: saída técnica para dar maior autenticidade e força evocativa ao episódio histórico.
Seus autores, em regra geral, ficaram anônimos. Os romanceiros eram conhecidos na Espanha e em Portugal desde o século XV e tinham várias funções: informação, diversão, estímulo agrícola, doutrinamento político e religioso.

A temática remete o leitor à época da Inconfidência Mineira (1789), daí o caráter nacionalista e histórico da obra. Associando verdade histórica, tradições e lendas, e utilizando a técnica ibérica dos romances populares, a poetisa recria a atmosfera da Vila Rica (hoje Ouro Preto) dos Inconfidentes. A mineração, as rivalidades e contendas, os altos impostos cobrados pela Coroa, a conscientização de alguns intelectuais e letrados, os ideais de liberdade, as Academias e as tendências arcádicas renascem, ao mesmo tempo em que se faz a defesa dos oprimidos. A autora conta a história da tentativa de libertação do Brasil ocorrida em Minas Gerais no século XVIII. O título obedece a uma terminologia própria dos romances espanhóis medievais – época em que a palavra “romance” aplicava-se também a obras em verso.
No Romanceiro, o elemento histórico é bastante forte, como já citado. Contudo, o que a autora tenta recuperar é menos os fatos históricos em si, e mais o ambiente e as sensações envolvidas na revolta. Assim, cada elemento histórico adquire um valor simbólico: a busca do ouro representa a ambição e a cobiça; a conspiração esconde a esperança e o fracasso; as prisões dos envolvidos são focalizadas como situações de medo; o degredo é visto como momento de perda e saudade; e as punições finais mostram todo o desengano da derrota política.
Portanto, não há essa preocupação de focalizar essencialmente o fato histórico que envolveu os inconfidentes, a obra vai muito além do próprio tempo que tematiza. A poetisa não se afastou do seu conhecido estilo, composto de atmosferas fugidias e imprecisas, e preocupada com o registro das sensações, com o clima predominante no momento da revolta, de incertezas e de medo. É o que está além da realidade, invisível e, quase sempre, intransponível para aqueles que não são dotados de sensibilidade poética.
A obra caracteriza-se como uma obra lírica, de reflexão, mas com um contexto épico, narrativo, firmemente apoiado no fato histórico. Em 1789, inspirados pelas idéias iluministas européias e pela independência dos Estados Unidos (1776), alguns homens tentam organizar um movimento para libertar a colônia brasileira de sua metrópole portuguesa. A colônia sofria pesada carga tributária sobre o ouro extraído das Minas Gerais deixava os que viviam dessa renda cada vez mais descontentes. Assim, donos de minas, profissionais liberais – entre os quais alguns poetas árcades – e outros começaram a conspirar contra Portugal. Contudo, o movimento é delatado (Joaquim Silvério dos Reis e outros) e os envolvidos, presos. Alguns são condenados ao exílio (Moçambique e Angola), e o único a ser executado, na forca, e depois esquartejado, é Tiradentes, em 21 de abril de 1792.
COMPOSIÇÃO DA OBRA
Há um fio narrativo que passa através dos vários romances que compõem o Romanceiro, sem que a ação se sobreponha à reflexão. Alguns cortes permitem a mudança de ambientes ou de figuras que permitem ao narrador surgir diante do público e anunciar-lhe nova situação dramática.
Há três estruturas que se alternam no poema:
  • Romances - a obra apresenta-se estruturada em 85 romances, além de outros poemas, como os que retratam os cenários. Total de 95 textos. Em sua composição, é utilizada principalmente a medida velha, ou seja, a redondilha menor, verso de cinco sílabas poéticas (pentassílabo) e, predominantemente, a redondilha maior, verso de sete sílabas (heptassílabo), além de versos mais curtos, tercetos, quadras, sextilhas, refrões e versos decassílabos. Os romances não são dispostos na seqüência cronológica dos acontecimentos; ora aparecem isolados, ora constituem-se em verdadeiros ciclos (o de Chica da Silva, o do Alferes, o de Gonzaga, o da Morte de Tiradentes, o de Gonzaga no exílio, o de Bárbara Heliodora, o da Rainha D. Maria);
  • Cenários- situam os ambientes, marcando as mudanças de atmosfera e localizando os acontecimentos: Imaginária serenata e Retrato de Marília.
  • Falas - representam uma intervenção do poeta-narrador, tecendo comentários e levando o leitor à reflexão dos fatos referidos: Fala inicial, uma Fala à antiga Vila Rica, uma Fala aos pusilânimes, uma Fala à comarca do Rio das Mortes e pela Fala aos inconfidentes mortos.
A obra pertence ao Modernismo – Geração de 30. Na definição da própria autora, é uma narrativa rimada, onde Cecília Meireles retoma uma forma poética de tradição ibérica, denominada romance (composição de caráter popular, escrita em redondilha), para reconstruir o episódio da Inconfidência Mineira e extrair, de um fato passado, datado, limitado geográfica e cronologicamente, valores que são eternos e significativos para a formação da consciência de um povo. A própria autora afirmou tratar-se de "uma história feita de coisas eternas e irredutíveis: de ouro, amor, liberdade, traições...". A poesia de Cecília é caracterizada aqui, como no resto de sua obra, por um tom lírico e intimista. A crítica observou que não é possível estabelecer uma divisão rigorosa da matéria tratada por Cecília Meireles. O romanceiro avança ou faz regredir uma perspectiva, além dos poemas transitórios, feitos de considerações de momento, verdadeiros parênteses ou interpolações da poetisa (alguns desses poemas não recebem o título de “romance”). Não há consenso, mas seguindo o crítico Darcy Damasceno e outros estudiosos, é possível verse um plano geral de composição:
  • Primeira parte: a “Fala Inicial”, o primeiro “Cenário” e os romances I — XX.
  • Segunda parte: Romances XXI — XLVII.
  • Terceira parte: Romances XLVIII — LXIV.
  • Quarta parte: Romances LXV — LXXX.
  • Quinta parte: Romances LXXXI — LXXXV, mais a Fala aos Inconfidentes Mortos.
São versos escritos em redondilha maior (verso heptassílabo = sete sílabas poéticas). Sem rimas externas regulares (versos brancos), e a exploração da camada sonora, através de aliterações e assonâncias, conferem à Fala Inicial um tom enfático, declaratório, reforçado pelas exclamações e interrogações. Existe musicalidade nos versos, uso de símbolos e apelos sensoriais, características comuns na poesia neo-simbolista. A herança simbolista e o espiritualismo: um ar de mistério, de crença no imaterial, no extraterreno, perpassa todo o poema. O culto do etéreo, das palavras aéreas marca a ânsia de dar forma ao informe. Expressões como: atroz labirinto de esquecimento, mistério, esquema sobre-humano, silenciosas vertentes, inexplicáveis torrentes instauram um halo espiritualista de crença no imaterial.
"Descem fantasmas dos morros,
vêm almas dos cemitérios:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro"

Aqui vemos o ciclo do ouro retratando a busca incansável por ouro e o resultado disso: cobiça, vaidade, ganância, violência, roubo, prisões.
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos
Eis o retrato da violência!

O tom evocativo: o mergulho no passado, no atroz labirinto do tempo, nas ressonâncias incansáveis de Vila Rica revela a ânsia da procura de um significado para os fatos:
Ó meio-dia confuso
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?

É como se a poetisa, evocando Tiradentes na força, questionasse a casa do martírio. Foi a ambição do ouro? Foi o sonho de liberdade que iluminou aquela gente?
O tom inquiridor: o clima de mistério e ansiedade, as lacunas históricas incontornáveis e a busca de um sentido para os fatos projetam-se nas interrogativas que surgem a cada momento.
Revelando o mistério que envolve até hoje o "embuçado" e a morte de Cláudio Manuel da Costa, o Romance XXXVIII é composto só de interrogações. O embuçado teria sido um mensageiro mascarado, disfarçado, que viera para tentar salvar Cláudio Manuel da Costa:
Homem ou mulher? Quem soube?
Veio por si? Foi mandado?
A que horas foi? De que noite?
Visto ou sonhado?

A dualidade: reflete a ambivalência ou ambigüidade que caracterizam as ações do homem - herói e traidor, ódio e amor, punhal e flor, bons e maus, riqueza e miséria. Observe, na Fala Inicial:
amores x ódios (v.4);
intrigas de ouro e de sonho; (v.19);
culpado x inocente (v.22);
castigo x perdão (v.24),
coroas x machados (v.31);
mentira x verdade (v.32);
ruínas x exaltação (v.43).
Ganham relevo as passagens que refletem a dualidade entre a justiça e a tirania, entre a liberdade e a opressão:
Em baixo e em cima da terra
o ouro um dia vai secar.
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem sabe não presta, fica vivo,
quem é bom, mandam matar.
(Romance V)
Ai, terras negras d´África,
portos de desespero...
- quem parte, já vai cativo;
- quem chega, vem por desterro.
(Romance LXVII)
Neste fragmento, a autora tece considerações de como foi composto seu Romanceiro da Inconfidência. A este respeito, ela aborda os limites entre a criação literária e a História, mostrando os limites e as relações entre ambas:
(...)
Assim, a primeira tentação, diante do tema insigne, e conhecendo-se tanto quanto possível, através dos documentos do tempo, seus pensamentos e sua fala seria reconstruir a tragédia na forma dramática em que foi vivida, redistribuindo a cada figura o seu verdadeiro papel. Mas se isso bastasse, os documentos oficiais com seus interrogatórios e respostas, suas cartas, sentenças e defesas realizariam a obra de arte ambicionada, e os fantasmas sossegariam, satisfeitos. Nesse ponto descobrem-se as distâncias que separam o registro histórico da invenção poética: o primeiro fixa determinadas verdades que servem à explicação dos fatos; a segunda, porém, anima essas verdades de uma força emocional que não apenas comunica fatos, mas obriga o leitor a participar intensamente deles, arrastado no seu mecanismo de símbolos, com as mais inesperadas repercussões. Ainda que se soubessem todas as palavras de cada figura da Inconfidência, nem assim se poderia fazer com o seu simples registro uma composição da arte. A obra de arte não é feita de tudo mas apenas de algumas coisas essenciais. A busca desse essencial expressivo é que constitui o trabalho do artista. Ele poderá dizer a mesma verdade do historiador, porém de outra maneira. Seus caminhos são outros, para atingir a comunicação. Há um problema de palavras. Um problema de ritmos. Um problema de composição. Grande parte de tudo isso se realiza, decerto, sem inteira consciência do artista. É a decorrência natural da sua constituição, da sua personalidade por isso, tão difícil s·e torna quase sempre a um criador explicar a própria criação. Quanto mais subjetiva seja ela, maior a dificuldade de explicá-la é quase impossível chorar e perceber nitidamente o caminho das lágrimas, desde as suas raízes até os olhos. No caso, porém, de um poema de mais objetividade, como o "Romanceiro", muitas coisas podem ser explicadas, porque foram aprendidas, à proporção que ele se foi compondo.
Digo "que ele se foi compondo" e não "que foi sendo composto", pois, na verdade, uma das coisas que pude observar melhor que nunca, ao realizálo, foi a maneira por que um tema encontra sozinho ou sozinho impõe seu ritmo, sua sonoridade, seu desenvolvimento, sua medida.
O "Romanceiro" foi construído tão sem normas preestabelecidas, tão à mercê de sua expressão natural que cada poema procurou a forma condizente com sua mensagem. Há metros curtos e longos; poemas rimados e sem rima, ou com rima assonante o que permite maior fluidez à narrativa. Há poemas em que a rima aflora em intervalos regulares, outros em que ela aparece, desaparece e reaparece, apenas quando sua presença é ardentemente necessária. Trata-se, em todo caso, de um "Romanceiro", isto é, de uma narrativa rimada, um romance: não é um "cancioneiro" o que implicaria o sentido mais lírico da composição cantada.
Nesse ponto, já ficara ultrapassada a idéia de uma composição dramática. Impossível distribuir a cada personagem seu verdadeiro papel: seria atribuirlhes, por vezes, pensamentos e sentimentos incompatíveis com a sua psicologia, e dar-lhes uma linguagem que não podemos reconstituir com suficiente perfeição.
O "Romanceiro" teria a vantagem de ser narrativo e lírico; de entremear a possível linguagem da época à dos nossos dias; de, não podendo reconstituir inteiramente as cenas, também não as deformar inteiramente; de preservar aquela autenticidade que ajusta à verdade histórica o halo das tradições e da lenda.
A voz irreprimível dos fantasmas, que todos os artistas conhecem, vibra, porém, com certa docilidade, e submete-se à aprovação do poeta, como se, realmente, a cada instante lhe pedisse para ajustar seu timbre à audição do público. Porque há obras que existem apenas para o artista, desinteressadas de transmissão; outras que exigem essa transmissão e esperam que o artista se ponha a seu serviço, para alcançá-la.
O "Romanceiro" é desta segunda espécie. Por isso, a parte "pessoal" que nele se encontre, é uma simples intervenção para favorecer o desenvolvimento do tema: aqui, o artista apenas vigia a narrativa que parece desenvolver-se por si, independente e certa do que quer. Os "cenários" são intervenções para marcar os ambientes respectivos, exatamente como numa indicação dramática. E se o artista se permite alguma reflexão sobre o que vai acontecendo, é como espectador que comenta, entre outros comentadores imaginários, ou cronista que observa, entre outros que estão observando o que confere ao livro uma simultaneidade que se procurou assinalar até pela disposição gráfica dos versos, e pela diferença dos tipos de impressão.

(...).”
INTERTEXTUALIDADE
"Exaltação a Tiradentes" - samba-enredo da Escola de Samba Império Serrano, em 1949, de Mano Décio da Viola, Penteado e Stanislaw Silva:
Joaquim José da Silva Xavier
Morreu a vinte e um de abril
Pela independência do Brasil
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais
Joaquim José da Silva Xavier
Era o nome de Tiradentes
Foi sacrifica...do pela nossa liberda.....de
Este grande herói

Filme Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade (1972). A Inconfidência Mineira - conspiração independentista do século dezoito, em Minas Gerais, centro das riquezas coloniais. Do grupo, faziam parte poetas e nobres, incluindo o padre e o coronel da guarnição. O dentista Tiradentes é torturado, para que
divulgue a sua participação, na conjura contra a coroa portuguesa; os cúmplices já haviam confessado, negando responsabilidades próprias. Tiradentes é o único a assumir-se plenamente, sendo condenado à morte. Baseado em "Autos da Devassa" de Tomás Antonio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto. E "Romanceiro da Inconfidência" de Cecília Meireles. Enunciação de flashes cinematográficos.
Museu da Inconfidência - No museu é retratada a Inconfidência Mineira (1789), movimento pela Independência do Brasil baseado na Independência Americana, e que não teve sucesso, devido a sua delação. O Museu possui objetos do final do século XVIII (travas da forca de Tiradentes), utilizados por inconfidentes, ou do cotidiano dos trabalhadores e civis da cidade. O museu se localiza na praça Tiradentes, em frente ao monumento a Joaquim José da Silva Xavier, principal e mais famoso ativista da Inconfidência.

Créditos: Prof. Jorge Alberto, Colégio Procampus




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r.ucg.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5628/material/CecÃ%C2%ADlia Meireles - Romanceiro da Inconfidência [Rev][1].pdf

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Lista de obras do PAES 2014



Literatura: travessias e territorialidades na ficção

A equipe de Literatura da COTEC/UNIMONTES, seguindo tendência estabelecida em
vestibulares anteriores, traz à cena discussões sobre territorialidades, espaços – geográficos,
urbanos, étnicos e culturais – representados pela literatura, pelo cinema e pela música. A
forma como a arte lê as espacialidades ajuda a refletir sobre as experiências humanas, os
conflitos subjacentes às travessias e aos intercâmbios culturais. Além disso, indagar sobre os
lugares que constituem nossa história é modo de refletir sobre as relações do homem com o
outro, com seus lugares de morada e de trânsito e com o contexto cultural que o circunda. O
modo como os processos urbanos e de ocupação do espaço é figurativizado na literatura
contemporânea e em outras mídias; os espaços rurais e imaginários; as poéticas do
espaço;arquitetura e representações sociais e literárias da linguagem; a metaforização das
espacialidades nos textos literários; figurações artísticas contemporâneas; a desterritorialização
e o exílio são temas encenados nas obras indicadas para o Programa de Avaliação Seriada para
Acesso ao Ensino Superior da UNIMONTES. São obras que nos desfiam a pensar sobre a
flexibilização dos paradigmas que envolvem os conceitos de travessia e territorialidades tão
discutidos na contemporaneidade.
Obras selecionadas:

1ª Etapa:
Filme Os Inconfidentes, direção de Joaquim Pedro de Andrade (Brasil/Itália, 1972, 100
minutos)
Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles (qualquer edição)
Capitães de Areia, Jorge Amado (qualquer edição)
Poema: “Infância”, Carlos Drummond de Andrade
Música: “Meu Guri”, Chico Buarque de Holanda
Nessa etapa, as territorialidades expandem-se historicamente, contemplando as ansiedades
ideológicas do período neoclássico brasileiro, além de permitirem refletir sobre o momento
político atual. As obras que exploram a infância propiciam um olhar sobre as projeções da
criança em espaços e tempos diferenciados, deslocando-se da ideia clichê da infância idílica e
romantizada.

2ª Etapa:
Poemas: “Canção do exílio”, Gonçalves Dias; “Canção do exílio”, Murilo Mendes; “Nova
Canção do exílio”, Carlos Drummond de Andrade; “Canção do exílio facilitada”, José Paulo
Paes; “Lisboa Aventuras”, de José Paulo Paes; “Canção do Exílio”- Casimiro de Abreu;
“Jogos florais I e II”, Antônio Carlos de Brito (Cacaso)
Música: “Sabiá”, de Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Holanda
Contos Escolhidos, Machado de Assis. Editora Martin Claret
Casa de Pensão, Aluísio Azevedo (qualquer edição)
Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus
A segunda etapa, que privilegia as obras do Romantismo e do Realismo no Brasil, aponta para
uma reflexão sobre os temas do exílio, nos vários diálogos encetados a partir da paradigmática
“Canção do exílio”, poema romântico de Gonçalves Dias. As comparações permitem evocar as
significações que emergem dos lugares de afastamento, geográficos ou ideológicos, que
representam as diásporas e os sujeitos em trânsito. Os romances Casa de Pensão e Quarto
dedespejo, embora pertencentes a épocas distintas, evocam o lugar (pensão e favela) como
ponto de partida para a manifestação do sujeito à margem da sociedade, com suas
especificidades. Os contos machadianos, por sua vez, perfuram a aparente fixidez dos espaços
sociais, a partir de um olhar crítico e reflexivo.

3ª Etapa:
Passaporte para a China: crônicas de viagem. Lygia Fagundes Telles. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011
Passaporte. Fernando Bonassi. São Paulo: Cosac Naify, 2001
• Contos: “Felicidade Clandestina”, Clarice Lispector; “A menina de lá” e “Soroco, sua
mãe, sua filha”, de João Guimarães Rosa (esses últimos integram o livro Primeiras
estórias. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira)
• Filme: A menina que roubava livros
• Alguma literatura: crônicas. João Caetano Canela
As travessias, as viagens, os deslocamentos estão contemplados nas obras de Lygia Fagundes Telles e Fernando Bonassi, inclusive na exploração da espacialidade da folha em branco, que
brinca com as sugestões entre o livro e o passaporte. A mistura de gêneros textuais, de
lugares, de culturas compõe o tema das duas obras. Os contos de Clarice Lispector e
Guimarães Rosa evocam a juventude e a leitura como experiência transformadora e
provocadora de novas realidades. O livro de João Caetano Canela apresenta uma concepção
do espaço norte mineiro em diálogo com as territorialidades universais.