domingo, 5 de agosto de 2012

Navio Negreiro e Outros Poemas

Assista ao vídeo sobre o Poema O Navio Negreiro clicando aqui!http://nitrocorpz.com/video/navio_negreiro_

ANÁLISE DE -  NAVIO NEGREIRO E OUTROS POEMAS



Antônio Frederico de CASTRO ALVES

            Nasceu, em 1847, na fazenda Cabaceiras, município de Muritiva, BA, e faleceu em Salvador em 1871, de tuberculose.
            Depois dos estudos preparatórios em Salvador, vai, em 1862, para Recife em cuja Faculdade de Direito ingressa em 1864, sendo colega do líder estudantil Tobias Barreto. Reforça a incipiente campanha liberal-abolicionista. Não se destaca pela aplicação aos estudos. Faz-se orador e poeta.
            Em 1868 chega a São Paulo, acompanhando a atriz Eugênia Câmara com quem vivia desde Recife. Em São Paulo torna-se aclamado orador e poeta.
            Numa caçada nos arredores de São Paulo, fere o calcanhar esquerdo. Sobrevém a gangrena. Amputam-lhe o pé. Ferido em sua vaidade e já tuberculose, volta à Bahia, em 1869, certo já de sua morte próxima.

OBRAS:  Espumas flutuantes (1870), A Cachoeira de Paulo Afonso (1876), Os Escravos (1883), Gonzaga ou A Revolução de Minas ( drama encenado na Bahia em 1867).
           
ASPECTOS:
A)    POETA SOCIAL: corajoso defensor dos princípios de liberdade, de justiça social, apologista do progresso, Castro Alves defendeu, com versos inflamados e ousadas figuras, os escravos, revelando corajosamente a miséria física e moral em que eram obrigados a viver. Citem-se as poesias: Vozes d’África, Navio negreiro, A mãe do cativo, A Cruz da estrada. Conhecido, por isso, como o poeta da abolição ou o poeta dos escravos.
Defendeu ainda o povo, esquecido, inculto e injustiçado (O Povo ao Poder) e o papel civilizador da imprensa (O livro e a América).
B)    POETA AMOROSO: Libertado já do clima do mal-do-século, Castro Alves é realista no amor. Não sonha com amadas impossíveis, vaporosas. Inspira-se nas mulheres que o cercam como Eugênia Câmara, Teresa e outras.
C)    POETA DA NATUREZA: Foi um excelente pintor da nossa natureza. Citem-se O Baile na Flor, Crepúsculo Sertanejo.

OS   ESCRAVOS



O Navio Negreiro
(Tragédia no mar)



'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.


'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...


'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.


Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!


Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!


Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!


Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................


Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!


Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.



II

 
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.


Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!


O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!


Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...



III

 
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!



IV

 
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...


Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!


E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...


Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!


No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."


E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


 
V

 
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!


Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais
que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...


São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...


São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.


Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
...Adeus, ó choça do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...


Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.


Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...


Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...



VI

 
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

 
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!



São Paulo, 18 de abril de 1869.
(O Poeta, nascido em 14.03.1847,
tinha apenas 22 anos de idade)





Navio negreiro



Hélio Pólvora



O poema Navio Negreiro pertence à fase de Os Escravos, que Castro Alves começou a compor em, ou por volta de 1865, quando ainda no Recife, tocado, sem dúvida, pela atmosfera libertária que empolgava a mocidade acadêmica. Mas,embora trazendo a data de 18 de abril de 1868, ele foi declamado antes, pelo Poeta, no Teatro São José, em São Paulo, no dia 7 de julho daquele ano, e com extraordinário êxito. E possível que Castro Alves o tivesse concluído ou revisto para a ocasião.

Tinhas o Poeta, então, 21 anos de idade. Apenas 21. Três anos depois, em 1871, estaria sob o que ele denominara "lájea fria" nos seus pressentimentos de morte, que eram constantes, persistentes e, iga-se logo, muito mais sinceros do que fazia crer a morbidez dos Românticos e, sobretudo, dos Simbolistas.

Passaram-se, pois, 128 anos sobre o poema famoso. É importante considerar-se um texto literário em relação ao fluir do tempo. O tempo tem, de todas, talvez a maior capacitação crítica: imprime à obra a pátina que a enobrece ou nela deixa o azinhavre que a corrói. No caso de Navio Negreiro, as estrofes grandiosas, grandiloqüentes, repassadas de ira, fervendo na justa indignação do Poeta, preservam o que em crítica literária se chama o espírito do tempo: ambiente, razões históricas, intenções do autor, correntes literárias. Mas, transcendendo o espírito do tempo, o poema castroalvino estabelece, como se verá mais adiante, uma ponte direta com a época atual.

Alguns fizeram a Castro Alves a ressalva de ter escrito e declamado Navio Negreiro em plena efervescência republicana, quando já fora extinto o tráfico de escravos africanos para as lavouras do Brasil. De fato, a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o odioso comércio, fora promulgada antes, a 4 de setembro de 1850. Mas nós sabemos bem como são as leis no Brasil. Dizem que há leis, aqui, que pegam ou se anulam. Nunca nos faltaram leis, e muitas vezes leis bem intencionadas, mas lhes falece o instrumento fiscalizador. Afinal, não é a justiça da lei que lhe dita a eficácia e lhe impõe respeito e acatamento, mas, exatamente, a sua complementação — ou seja, as providências tomadas para que se faça cumprir a lei.

No caso da lei Eusébio de Queirós houve, provavelmente, mais idealismo do que esforço de aplicação. Tanto assim que, embora declarado extinto o tráfico, em 1850, foi necessária outra lei — a Nabuco de Araújo, de 5 de junho de 1854, portanto quatro anos após — para impedir que barcos negreiros continuassem a descarregar nas costas brasileiras. Se, naqueles quatro anos, o "brigue imundo" a que se refere Castro Alves não fora varrido dos mares, é de supor-se que ele continuasse em rota por mais anos, entre África e Brasil. Leis de proibição do tráfico, emanadas da Bahia, também foram desrespeitadas por algum tempo.
Todos nós sabemos que o fim da escravidão negra no Brasil foi obtido por etapas devido à resistência dos proprietários de latifúndios que temiam, naturalmente, o esvaziamento repentino da economia. Esses proprietários tinham assento majoritário nas Assembléias, confrontavam abertamente o Imperador ou, então, estavam nelas representados pelos deputados e senadores que eles elegiam. Veja-se que, entre a Lei Eusébio de Queirós e a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 1888, decorrem 38 anos de acesa campanha abolicionista. Se a Marinha Britânica, com todo o seu poderio, com o domínio que tinha dos oceanos, mostrava-se incapaz de conter o comércio negreiro, o que esperar-se da ação repressora da nossa Marinha imperial ?

Com certeza o "veleiro brigue", no dizer do Poeta, continuou a navegar com a sua carga de homens seqüestrados nos porões. Evaristo de Morais, citado por Jorge Amado no ABC de Castro Alves, vê os barcos de escravos ainda em atividade plena no momento em que Castro Alves os fulmina com a sua ira condoreira. Sim, o Poeta desconhecia pormenores do comércio que, se utilizados, imprimiriam ao Poema uma verdade por assim dizer documental. O baiano Édison Carneiro, em posfácio à edição de Navio Negreiro pela Livraria progresso Editora, de Salvador, em 1959, enumerou alguns equívocos, entre os quais o da cena no convés, que Castro Alves pintou com mão pesada, igualando-se nas vergastadas dos versos aos chicotes dos marinheiros, por esquecer-se ou ignorar que no convés os negros africanos revivesciam das crueldades nos porões.
Mas são pormenores que não comprometem a beleza, a majestade, a fúria do poema. Navio Negreiro é um poema historicamente atual. Não somos ingênuos ao ponto de supor que a escravidão do homem pelo homem esteja extinta. Ela assumiu aspectos novos, não tão ostensivos, naturalmente, como no passado, porém velados, ou semivelados. Voltaremos a este ponto daqui a pouco.

De todos os Estados brasileiros, a Bahia, que até 1870, pelo menos, comandava a economia brasileira, foi o que recebeu o maior contingente de braços negros. É natural que, em pleno movimento abolicionista, quando os republicanos se utilizavam do tema como bandeira de luta, Castro Alves o assumisse. Já lembramos que a composição de Os Escravos foi iniciada no Recife, em 1865. Um dos poemas desta série, e que datava de 1863, falava no "sangue escravo que nodoa o chão". Poucos anos depois, em São Paulo, o Poeta seria atraído para a batalha entre monarquistas e republicanos. Surge, no estridor dessa batalha, o Navio Negreiro. De composição posterior são Vozes d’África. Não houve repentismo, não houve adesão de última hora, não houve oportunismo poético da parte de Castro Alves. Houve, isto sim, um compromisso anterior, amadurecido na sua consciência de Poeta libertário, de Poeta que, conforme anotou Jamil Almansur Haddad, foi o pregoeiro não apenas da Liberdade, no singular, mas de todas elas: a liberdade política, a liberdade social e até mesmo a liberdade sexual.



* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Com o subtítulo de "Tragédia no Mar", o poema Navio Negreiro é produto direto da escola romântica de conteúdo liberal. É um poema comprometido com uma idéia em movimento, uma ideia-força que ainda perdura. O teme é realista na sua pungente atualidade, a forma que o reveste segue, porém, o modelo romântico calcado no discurso que se dirige mais ao ouvido, sem aquela densidade e simplicidade de efeitos que marcaria algumas peças castroalvinas de sua fase derradeira. Poeta cênico quando seguia o vôo do condor, Castro Alves descortinava cenários, descrevia horizontes com uma imaginação plástica. Eis porque o baiano Hildon Rocha observou que, nele, eloqüência e poesia se misturavam, "prevalecendo a primeira
nos momentos de improvisação e circunstância".

Mas, diremos nós, há no Navio Negreiro, além da estilística fônica que arrebata, uma força motriz que transcende os efeitos, às vezes fáceis, da retórica, os moldes transitórios da semântica, para ficar bailando sob forma daquela "selvagem, livre poesia" a que se referiu o Poeta baiano. Eis, portanto, a nossa conclusão: a poética do cantor dos escravos está presa à palavra, depende do fluxo encantatório da palavra, e, no entanto, preserva uma essencialidade que a transfigura, projeta e despoja, fazendo-a valer não somente pela imagem m si mesma, mas também pelo que a imagística vem a representar na sua metamorfose artística.

‘Stamos em pleno mar...

O Poeta, claro está, dirige-se a um auditório. Na sua função de criador e ao mesmo tempo apresentador da cena, pretende traçá-la, esquematizar o cenário, como se assomasse ao palco próprio dos acontecimentos que irá denunciar. O poema começa, pois, descritivo — e a afirmação inicial, reiterada nas próximas três estrofes, pretende reforçar, na sua enfatização estilística, uma atmosfera de sugestão poderosa.

...Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;

Esta comparação, primeira metáfora do poema, é perfeita. Parece até que o Poeta pretende renunciar ao descritivo a fim de realizar o poema mergulhado no seu cerne, de dentro para fora, a partir de suas vezes intrínsecas. O luar seria "uma dourada borboleta" porque visto, como se a esvoaçar, do brigue em movimento, a subir e descer sobre as ondas. Mas a interiorização da perspectiva não tarda a se desfazer nos veros de ação. As vagas correm. Os astros saltam. O mar "acende as ardentias". O brigue corre. O Poeta, da sua órbita privilegiada, vê e descreve.

A primeira parte de Navio Negreiro contém onze estrofes compostas em quartetos eruditos, com dois versos rimados,
decassilábicos. A intenção de Castro Alves foi mostrar as duas imensidades — o oceano e o firmamento, que "ali se estreitam
num abraço insano". A onisciência do Poeta cede lugar, pela primeira vez, à interrogação, à dúvida, na quinta estrofe:

Donde vem ? onde vai ? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço ?

Este será o primeiro toque de mistério, a sugestão que há de inquietar o auditório. O quadro panteísta impressiona pela
plasticidade. Ao referir-se à "música suave" das vagas, à "doce h armonia da brisa", à orquestra do mar e ao sibilar dos ventos nas cordas, o Poeta cria nesse enleio do homem com a Natureza as condições que lhe acentuam, a partir da quarta parte, a indignação. As três primeiras partes constituem, assim, uma antítese, provavelmente deliberada, das três seguintes. A poética castroalvina assenta muito no jogo das antíteses. Há um constante paralelismo de idéias e imagens, e esse paralelismo foi acentuado por Eugênio Gomes quanto à composição de Navio Negreiro. O leitor é levado a deduzir que o quadro grandioso descrito no proêmio do poema não pode permitir a nódoa infamante, "este borrão" que é o brigue negreiro.

Albatroz ! Albatroz ! Dá-me estas asas.

O recurso, tão habitual na poemática clássica, do apelo às musas, às entidades, encontra aqui uma variante. Castro Alves socorre-se do albatroz a fim de inquirir, mais de perto, o motivo por que o "barco ligeiro" foge "do pávido poeta". Todo o horror da cena é entrevisto, de inopino, na terceira parte do poema, constituída de uma única estrofe — uma sextilha em versos dodecassilábicos. Ainda antes, na segunda parte, em décimas de redondilha maior, com rimas alternadas, Castro Alves insiste no objetivo do contraste, ao cantar o fado e a glória dos marinheiros de todo o mundo:

Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu !...

A cesura entre a contemplação plácida, satisfeita, e a descoberta brutal do brigue, fermenta a indignação. A quarta parte, em estrofes heterométricas, combinando alexandrinos com hexassílabos,presta-se admiravelmente ao verso direto, cortante e afiado, que fulge, no ar, em lampejos de ira concentrada, quais estalos de chicote:

Era um quadro dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho
Em sangue a se banhar.

As palavras, sobretudo os adjetivos, valem pela carga emotiva. Parecem varadas de luz, como os vitrais. São palavras-objeto, usadas com todo o impacto semântico. Elas refulgem, prismáticas e cromáticas, na sua função de espelhos. O enleio fonético, sendo imediato, acentua a musicalidade. De tão audíveis, as palavras parecem conter em si mesmas, na sua identidade imediata, de superfície, os transportes do poema. Carecem ainda, é verdade, da revalorização semântica, da música interior, da densidade de idéia que Castro Alves iria obter mais tarde, em "Crepúsculo Sertanejo" e outros quadros de A Cachoeira de Paulo Afonso, conforme anotação de Eugênio Gomes que subscrevemos. E, no entanto, aquelas palavras, entregues à sua força imanente, apoiadas na grandiloqüência do discurso, comunicam em cheio a poesia. Pouco importa que estejamos avisados contra a sedução fácil, o repentismo, o barroquismo de efeito externo. O contágio vence a vacina das prevenções. Observou, a esse respeito, o poeta Godofredo Filho, na introdução à edição de 1959 de Navio Negreiro pela Livraria Progresso Editora, de Salvador: "... as relações de sua linguagem ordenam-se à base de uma dinâmica que, em determinados estágios, ele já não poderá controlar. Os sintagmas, progressivos, como que se projetam em espiral".

A quinta parte, em décimas de redondilha maior, com rima variada, acentua o exercício de indignação. O poema passa do motivo às conseqüências. A declamação procura sensibilizar mais ainda as consciências, através da imprecação e da apóstrofe. O Poeta interpela o Deus dos desgraçados. Apela para a fúria das tempestades, noites e astros. Convoca o tufão a varrer dos mares o brigue dos horrores:

Quem são estes desgraçados
Que não encontram m vós
Mais que o rir calmo da turbas
Que excita a fúria do algoz ?


Encontram-se nessas estâncias alguns dos mais conhecidos — e conseqüentemente admirados — versos da poética de língua portuguesa. Ainda que a África seja, ali, uma vaga ressonância, sem maior documentação geográfica, a imaginação se precipita espumejante nas suas ardentias. E, mais uma vez, na capacidade de motivar e comover, o Poeta exerce a predominância dos sentidos, força uma aceitação imediata. É que a sua oratória também se embebe de subjetividades. No fervor de suas causas, na exaltação do temperamento libertário, o Poeta pôs toda a alma e firmou, então, a arquitetura do poema.

A última parte de Navio Negreiro, em oitavas heróicas, decassílabos camonianos, ajusta-se aos açoites finais da
indignação de Castro Alves na montagem de dois quadros díspares — o canto da Natureza não conspurcada, a poluição do mar pelo barco de escravos — e, entre um e outro, o hemistíquio de suas interrogações. Novamente aí, no majestoso final, estão alguns dos versos mais encantatórios e flamejantes da escola que Castro Alves personificou no Brasil:

Meu Deus ! Meu Deus ! mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia ?
(...)
Auriverde pendão da minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança.


Este final, concebido em forma de estuário, é uma peroração. Ao conclamar os heróis do Novo Mundo, o Poeta deixa no ar, de chofre, toda a carga emotiva do discurso. Os ecos ressoam. Estão predestinados a se reproduzirem nos contrafortes da nossa sensibilidade.




* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Definitivamente, a obra literária não é um ato isolado de criação. Mais importante do que o que dizer é o como dizer. No mais, predomina a rotina de idéias. Navio Negreiro, com um tema e uma temática tão sedutores, há de ter também as suas fontes paradigmáticas. Josué Montello citou uma: em Estampas Literárias, de 1956 (Organização Simões, Rio de Janeiro), ele admite que o poeta Guilherme Braga, autor de Heras e Violetas, volume lançado em 1869, no Porto, teria influenciado Castro Alves. Com efeito, em poema de 1863, o português escreve:

Que perguntas sem fim ! Ninguém responde !
Deus em que nuvem negra assim se esconde,
Ó alma, que o não vês ?

E Guilherme Braga também invoca Cristóvão Colombo:

Colombo, inda te espera o mar profundo...
Vai pedir outra vez um novo mundo
Aos países do sol !

O ensaísta gaúcho Augusto Meyer, em artigo no Correio da Manhã, de 2.2.1963, intitulado "O Navio Negreiro", e em O Estado de S. Paulo, de 5.8.1967, sob o título "Navios Negreiros", estabelece pontos de contato entre o poema de Castro Alves e o de Heinrich Heine. O tema, pelo menos, é idêntico. O Das Sklavenschiff de Heine se teria inspirado, por sua vez, ao que parece, no Béranger de Les Negres et les marionettes. É de Heine, aliás, a epígrafe em francês com que o Poeta baiano abre Os Escravos.
Mas as semelhanças entre Castro Alves e Heine estariam limitadas à descrição oceânica e à dança dos escravos. Ainda assim, cuidadoso, Augusto Meyer faz o reparo: "De qualquer modo é bom lembrar que fonte, no sentido restrito e literário, não envolve senão uma idéia de sugestão, subsídio, informação, estímulo, não implicando necessariamente a idéia de influência".


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

O comércio de escravos trazidos em barcos negreiros não foi um tema circunstancial na poética castroalvina. O compromisso do Poeta, nele e em outras peças de teor social, ia além da emotividade, era mais fundo. Por isso, Eugênio Gomes fala em "compromisso moral". Lembra o ensaísta que, a partir de 1864, quando aderiu ao abolicionismo, Castro Alves passou a defender as liberdades públicas em geral. Ele já tinha proclamado, por exemplo, que:


A praça ! A praça é do povo
Como o céu é do condor.

No seu evangelho pelos humildes, o Poeta torna-se, até, anticlerical, ao sugerir que o manto do Papa servisse para cobrir os ombros nus dos excluídos. E nenhum poeta do seu tempo, para espanto, aliás, da jovem burguesia intelectual que o admirava e o aplaudia, investiu com maior furor contra o tirano — contra todos os tiranos:

Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.

A escravidão é um tema indissociável da condição humana. A palavra trabalhar, em português, deriva de tripaliare, que, em latim vulgar, significava martirizar com o tripaliu — um instrumento de tortura. Em inglês, slave, escravo, vem de slav, eslavo — porque os eslavos foram os escravos dos impérios europeus antigos, principalmente o Império Romano. Os impérios chinês e otomano floresceram graças ao braço escravo. O Sul dos Estados Unidos, com a sua vocação agrícola, manteve a escravização do negro africano em regime mais duro que o nosso. A palavra rabota, em russo, quer dizer trabalho, e tem como raiz rab, que significa escravo. O sociólogo Theodore Zeldin, em seu livro An Intimate History of Humanity afirma que, "antes dos doze milhões de africanos serem seqüestrados para escravização no Novo Mundo, as principais vítimas eram os eslavos", os quais, "caçados pelo romanos, cristãos, muçulmanos, viquingues e tártaros, foram exportados para o mundo inteiro" e "deram seu nome à escravidão". Segundo ele lembra, a Arábia Saudita foi o último país a abolir formalmente a escravidão — o que só fez em 1962.

Parece que o romancista inglês Graham Greene tinha razão ao referir-se, por intermédio de um personagem seu, aos que nascem para ser "second men". Teríamos então a humanidade dividida, a grosso modo, em primeiros homens, os que detêm o bastão de mando, e os segundos, que são os que trabalham. Eis uma reflexão que nos repugna a consciência, mas que é oportuna para o tricentenário de morte de Zumbi dos Palmares.

O poeta Castro Alves, aliás, também saudou Palmares. Num poema escrito em agosto de 1870, na Fazenda de Santa Isabel, ele disse, a propósito do quilombo histórico:

Ninho, onde em sono atrevido,
Dorme o condor... e o bandido !...
A liberdade... e o jaguar !

Eu pergunto, agora, se houve poeta que defendesse, mais do que este, os oprimidos, os injustiçados, os excluídos, os escravizados de todos os tempos e de todos os lugares, desde que o mundo é mundo. Eu pergunto se outro houve que, sensível aos fatos sociais da condição humana fragilizada ainda mais pelas péssimas condições de vida que lhe são impostas, houvesse tão destemidamente cantado o povo como fez castro Alves no poema "Prometeu".

Povo ! Povo infeliz ! Povo, mártir eterno,
Tu és do cativeiro o Prometeu moderno...


O século

 

Soldados, do, alto daquelas pirâmides
quarenta séculos vos contemplam!
Napoleão

o século é grande e forte.
V. Hugo

Da mortalha de seus bravos
Fez bandeira a tirania
Oh! armas talvez o povo
Deseus ossos faça um dia
J. Bonifácio

O séc’lo é grande... No espaço
Há um drama de treva e luz.
Como o Cristo — a liberdade
Sangra no poste da Cruz.
Um corvo escuro, anegrado,
Obumbra o manto azulado,
Das asas d'águia dos céus...
Arquejam peitos e frontes...
Nos lábios dos horizontes
Há um riso de luz... É Deus.


Às vezes quebra o silêncio
Ronco estrídulo, feroz.
Será o rugir das matas,
Ou da plebe a imensa voz?...
Treme a terra hirta e sombria. . .
São as vascas da agonia
Da liberdade no chão?...
Ou do povo o braço ousado
Que, sob montes calcado,
Abala-os como um Titão?! ...


Ante esse escuro problema
Há muito irônico rir.
Pra nós o vento da esp'rança
Traz o pólen do porvir.
E enquanto o cepticismo
Mergulha os olhos no abismo,
Que a seus pés raivando tem,
Rasga o moço os nevoeiros,
Pra dos morros altaneiros
Ver o sol que irrompe além.


Toda noite — tem auroras,
Raios — toda a escuridão.
Moços, creiamos, não tarda
A aurora da redenção.
Gemer — é esperar um canto...
Chorar - aguardar que o pranto
Faça-se estrela nos céus.
O mundo é o nauta nas vagas...
Terá do oceano as plagas
Se existem justiça e Deus.


No entanto inda há muita noite
No mapa da criação.
Sangra o abutre — tirano
Muito cadáver — nação.
Desce a Polônia esvaída,
Cataléptica, adormida,
À tumba do Sobieski;
Inda em sonhos busca a espada ...
Os reis passam sem ver nada ...
E o Czar olha e sorri...


Roma inda tem sobre o peito
O pesadelo dos reis!
A Grécia espera chorando
Canaris... Byron talvez!
Napoleão amordaça
A boca da populaça
E olha Jersey com terror;
Como o filho de Sorrento,
Treme ao fitar um momento
O Vesúvio aterrador.


A Hungria é como um cadáver
Ao relento exposto nu;
Nem sequer a abriga a sombra
Do foragido Kossuth.
Aqui — o México ardente,
— Vasto filho independente
Da liberdade e do sol —
Jaz por terra... e lá soluça
Juarez, que se debruça
E diz-lhe: "Espera o arrebol!"


O quadro é negro. Que os fracos
Recuem cheios de horror.
A nós, herdeiros dos Gracos,
Traz a desgraça — valor!
Lutai... Há uma lei sublime
Que diz: "À sombra do crime
Há de a vingança marchar."
Não ouvis do Norte um grito,
Que bate aos pés do infinito,
Que vai Franklin despertar?


É o grito dos Cruzados
Que brada aos moços — "De pé"!
É o sol das liberdades
Que espera por Josué! ...
São bocas de mil escravos
Que transformaram-se em bravos
Ao cinzel da abolição.
E — à voz dos libertadores —
Reptis saltam condores,
A topetar n'amplidão!...


E vós, arcas do futuro,
Crisálidas do porvir,
Quando vosso braço ousado
Legislações construir,
Levantai um templo novo,
Porém não que esmague o povo,
Mas lhe seja o pedestal.
Que ao menino dê-se a escola,
Ao veterano — uma esmola...
A todos — luz e fanal!


Luz!... sim; que a criança é uma ave,
Cujo porvir tendes vós;
No sol — é uma águia arrojada,
Na sombra — um mocho feroz.
Libertai tribunas, prelos ...
São fracos, mesquinhos elos...
Não calqueis o povo-rei!
Que este mar d'almas e peitos,
Com as vagas de seus direitos,
Virá partir-vos a lei.


Quebre-se o cetro do Papa,
Faça-se dele — uma cruz!
A púrpura sirva ao povo
Pra cobrir os ombros nus,
Que aos gritos do Niagara
— Sem escravos, — Guanabara
Se eleve ao fulgor dos sóis!
Banhem-se em luz os prostíbulos,
E das lascas dos patíbulos
Erga-se a estátua aos heróis!


Basta!... Eu sei que a mocidade
É o Moisés no Sinai;
Das mãos do Eterno recebe
As tábuas da lei! — Marchai!
Quem cai na luta com glória,
Tomba nos braços da História,
No coração do Brasil!
Moços, do topo dos Andes,
Pirâmides vastas, grandes,
Vos contemplam séc'los mil!
 



Ao romper D'alva

 

Página feia, que ao futuro narra
Dos homens de hoje a lassidão, a história
Com o pranto escrita, com suor selada
Dos párias misérrimos do mundo! ...
Página feia, que eu não possa altivo
Romper, pisar-te, recalcar, punir-te...
PEDRO CALASANS


Sigo só caminhando serra acima,
E meu cavalo a galopar se anima
Aos bafos da manhã.
A alvorada se eleva do levante,
E, ao mirar na lagoa seu semblante,
Julga ver sua irmã.


As estrelas fugindo aos nenufares,
Mandam rútilas pérolas dos ares
De um desfeito colar.
No horizonte desvendam-se as colinas,
Sacode o véu de sonhos de neblinas
A terra ao despertar.


Tudo é luz, tudo aroma e murmurio.
A barba branca da cascata o rio
Faz orando tremer.
No descampado o cedro curva a frente,
Folhas e prece aos pés do Onipotente
Manda a lufada erguer.


Terra de Santa Cruz, sublime verso
Da epopéia gigante do universo,
Da imensa criação.
Com tuas matas, ciclopes de verdura,
Onde o jaguar, que passa na espessura,
Roja as folhas no chão;


Como és bela, soberba, livre, ousada!
Em tuas cordilheiras assentada
A liberdade está.
A púrpura da bruma, a ventania
Rasga, espedaça o cetro que s'erguia
Do rijo piquiá.


Livre o tropeiro toca o lote e canta
A lânguida cantiga com que espanta
A saudade, a aflição.
Solto o ponche, o cigarro fumegando
Lembra a serrana bela, que chorando
Deixou lá no sertão.


Livre, como o tufão, corre o vaqueiro
Pelos morros e várzea e tabuleiro
Do intrincado cipó.
Que importa’os dedos da jurema aduncos?
A anta, ao vê-los, oculta-se nos juncos,
Voa a nuvem de pó.


Dentre a flor amarela das encostas
Mostra a testa luzida, as largas costas
No rio o jacaré.
Catadupas sem freios, vastas, grandes,
Sois a palavra livre desses Andes
Que além surgem de pé.


Mas o que vejo? É um sonho!... A barbaria
Erguer-se neste séc'lo, à luz do dia.
Sem pejo se ostentar.
E a escravidão — nojento crocodilo
Da onda turva expulso lá do Nilo —
Vir aqui se abrigar! ...


Oh! Deus! não ouves dentre a imensa orquesta
Que a natureza virgem manda em festa
Soberba, senhoril,
Um grito que soluça aflito, vivo,
O retinir dos ferros do cativo,
Um som discorde e vil?


Senhor, não deixes que se manche a tela
Onde traçaste a criação mais bela
De tua inspiração.
O sol de tua glória foi toldado...
Teu poema da América manchado,
Manchou-o a escravidão.


Prantos de sangue — vagas escarlates —
Toldam teus rios — lúbricos Eufrates
Dos servos de Sião.
E as palmeiras se torcem torturadas,
Quando escutam dos morros nas quebradas
O grito de aflição.


Oh! ver não posso este labéu maldito!
Quando dos livres ouvirei o grito?
Sim... talvez amanhã.
Galopa, meu cavalo, serra acima!
Arranca-me a este solo. Eia! te anima
Aos bafos da manhã!
 


A visão dos mortos

 

On rapporte encore qu'un berger
ayant été introduit une fois par un
nain dans le Hyffhaese, l'empereur
(Barberousse) se leva et lui demanda
si les corbeaux volaient encore autour
de la montagne. Et, sur la réponse
afíirmative du berger, il s'écria en
soupirant: i1 faut donc que je dors
encore pendant cent ans"!
H. Heine (Allemagne)
Tradução do texto de H. Heine: “Conta-se que um pastor, ao ter sido introduzido por um anão no Hyfhouse, foi inquirido pelo imperador (Barba Ruiva) se os corvos ainda sobrevoavam a montanha. Após a resposta afirmativa do pastor, ele exclamou: “É preciso então que durma mais cem anos”.

Nas horas tristes que em neblinas densas
A terra envolta num sudário dorme,
E o vento geme na amplidão celeste
- Cúpula imensa dum sepulcro enorme, -
Um grito passa despertando os ares,
Levanta as lousas invisível mão.
Os mortos saltam, poeirentos, lívidos.
Da lua pálida ao fatal clarão.


Do solo adusto do africano Saara
Surge um fantasma com soberbo passo,
Presos os braços, laureada a fronte,
Louco poeta, como fora o Tasso.
Do sul, do norte... do oriente irrompem
Dórias, Siqueiras e Machado então.
Vem Pedro lvo no cavalo negro
Da lua pálida ao fatal clarão.


O Tiradentes sobre o poste erguido
Lá se destaca das cerúleas telas,,
Pelos cabelos a cabeça erguendo,
Que rola sangue, que espadana estrelas.
E o grande Andrada, esse arquiteto ousado,
Que amassa um povo na robusta mão:
O vento agita do tribuno a toga
Da lua pálida ao fatal clarão.


A estátua range... estremecendo move-se
O rei de bronze na deserta praça.
O povo grita: Independência ou Morte!
Vendo soberbo o Imperador, que passa.
Duas coroas seu cavalo pisa,
Mas duas cartas ele traz na mão.
Por guarda de honra tem dous povos livres,
Da lua pálida ao fatal clarão.


Então, no meio de um silêncio lúgubre,
Solta este grito a legião da morte:
"Aonde a terra que talhamos livre,
Aonde o povo que fizemos forte?
Nossas mortalhas o presente inunda
No sangue escravo, que nodoa o chão.
Anchietas, Gracos, vós dormis na orgia,
Da lua pálida ao fatal clarão.


"Brutus renega a tribunícia toga,
O apost'lo cospe no Evangelho Santo,
E o Cristo - Povo, no Calvário erguido,
Fita o futuro com sombrio espanto.
Nos ninhos d'águias que nos restam? - Corvos,
Que vendo a pátria se estorcer no chão,
Passam, repassam, como alados crimes,
Da lua pálida ao fatal clarão.


"Oh! é preciso inda esperar cem anos...
Cem anos. . . " brada a legião da morte.
E longe, aos ecos nas quebradas trêmulas,
Sacode o grito soluçando, - o norte.
Sobre os corcéis dos nevoeiros brancos
Pelo infinito a galopar lá vão...
Erguem-se as névoas como pó do espaço
Da lua pálida ao fatal clarão.
 







A canção do africano


Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão ...


De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!


"Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!


"0 sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia;
Ninguém sabe como é belo
Ver de tarde a papa-ceia!


"Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar ...


"Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro".


O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!


............................


O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.


E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!




Mater dolorosa

 

Deixa-me murmurar à tua ali
adeus eterno, em vez de lá chorar
sangue, chorar o sangue! meu
coração sobre meu filho; tu deves
morrer, meu filho, tu deves
morrer.
Nathaniel Lee

Meu Filho, dorme, dorme o sono eterno
No berço imenso, que se chama - o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.


Ai! borboleta, na gentil crisálida,
As asas de ouro vais além abrir.
Ai! rosa branca no matiz tão pálida,
Longe, tão longe vais de mim florir.


Meu filho, dorme Como ruge o norte
Nas folhas secas do sombrio chão!
Folha dest'alma como dar-te à sorte?
É tredo, horrível o feral tufão!


Não me maldigas... Num amor sem termo
Bebi a força de matar-te a mim
Viva eu cativa a soluçar num ermo
Filho, sê livre... Sou feliz assim...


- Ave - te espera da lufada o açoite,
- Estrela - guia-te uma luz falaz.
- Aurora minha - só te aguarda a noite,
- Pobre inocente - já maldito estás.


Perdão, meu filho... se matar-te é crime
Deus me perdoa... me perdoa já.
A fera enchente quebraria o vime...
Velem-te os anjos e te cuidem lá.


Meu filho dorme... dorme o sono eterno
No berço imenso, que se chama o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.

            Castro Alves rinha uma questão a resolver em sua proposta de poesia abolicionista: como transformar o negro africano, um ser degradado pelos preconceitos de uma sociedade arcaica como a do Brasil imperial, num tema poético?
            Neste poema, um mãe prefere sacrificar o filho pequeno a vê-lo escravizado. O drama retratado é terrível; a finalidade do poeta é justamente a de chocar por meio da intensidade dos sentimentos em conflito.
Valorização da sentimentalidade do negro

            Além de apresentar a escravidão como um problema histórico incompatível com a evolução da sociedade humana, o poeta percorreu este caminho: a valorização da sentimentalidade do negro, mostrando como portador de sentimentos tão nobres e dignos como os de qualquer outro ser humano. Isso, que a nós pode parecer excessivamente óbvio, era quase uma ousadia numa época em que os negros eram vendidos em mercados.
            Mater dolorosa ( mãe sofredora) é a expressão latina com que se costuma indicar o sofrimento de Maria com o martírio de Jesus Cristo. Há, portanto, uma remissão da imagem da mãe negra que sacrifica seu filho à imagem materna da dor consagrada pela tradição cristã. O poema é todo ele composto num tom melancólico, que em alguns pontos sugere uma cantiga de ninar. Note a beleza das imagens da segunda e da quinta estrofes. Há passagens muito intensas, como “Num amor sem termo / Bebi a força de matar-te...” . O tom de grandiosidade de “Vozes d’África”  é substituído por um tratamento lírico muito feliz. Observe que a eficácia desse texto como propaganda de idéias é muito forte, pois explora justamente um dado muito valorizado da realidade burguesa.


Confidência

 

Maldição sobre vós, doutores da
lei! Maldição sobre vós, hipócritas!
Assemelhais-vos aos sepulcros brancos
por fora; o exterior parece formoso,
mas o interior está cheio de ossos e
podridão.
Evang. de S. MATEUS, cap. XXII.

Quando, Maria, vês de minha fronte
Negra idéia voando no horizonte,
as asas desdobrar,
Triste segues então meu pensamento,
Como fita o barqueiro de Sorrento
As nuvens ao luar.


E tu me dizes, pálida inocente,
Derramando uma lágrima tremente,
Como orvalho de dor:
"Por que sofres? A selva tem odores,
"0 céu tem astros, os vergéis têm flores,
"Nossas almas o amor".


Ai! tu vês nos teus sonhos de criança
A ave de amor que o ramo da esperança
Traz no bico a voar;
E eu vejo um negro abutre que esvoaça,
Que co'as garras a púrpura espedaça
Do manto popular.


Tu vês na onda a flor azul dos campos,
Donde os astros, errantes pirilampos,
Se elevam para os céus;
E eu vejo a noite borbulhar das vagas
E a consciência é quem me aponta as plagas
Voltada para Deus.


Tua alma é como as veigas sorrentinas
Onde passam gemendo as cavatinas
Cantadas ao luar.
A minha — eco do grito, que soluça,
Grito de toda dor que se debruça
Do lábio a soluçar.


É que eu escuto o sussurrar de idéias,
O marulho talvez das epopéias,
Em torno aos mausoléus,
E me curvo no túm'lo das idades
— Crânios de pedra, cheios de verdades
E da sombra de Deus.


E nessas horas julgo que o passado
Dos túmulos a meio levantado
Me diz na solidão:
"Que és tu, poeta? A lâmpada da orgia,
"Ou a estrela de luz, que os povos guia
"À nova redenção?"


Ó Maria, mal sabes o fadário
Que o moço bardo arrasta solitário
Na impotência da dor.
Quando vê que debalde à liberdade
Abriu sua alma - urna da verdade
Da esperança e do amor! ...


Quando vê que uma lúgubre coorte
Contra a estátua (sagrada pela morte)
Do grande imperador,
Hipócrita, amotina a populaça,
Que morde o bronze, como um cão de caça
No seu louco furor! ...


Sem poder esmagar a iniqüidade
Que tem na boca sempre a liberdade,
Nada no coração;
Que ri da dor cruel de mil escravos,
— Hiena, que do túmulo dos bravos,
Morde a reputação! ...


Sim... quando vejo, ó Deus, que o sacerdote
As espáduas fustiga com o chicote
Ao cativo infeliz;
Que o pescador das almas já se esquece
Das santas pescarias e adormece
Junto da meretriz...


Que o apóstolo, o símplice romeiro,
Sem bolsa, sem sandálias, sem dinheiro,
Pobre como Jesus,
Que mendigava outrora à caridade
Pagando o pão com o pão da eternidade,
Pagando o amor com a luz,


Agora adota a escravidão por filha,
Amolando nas páginas da Bíblia
O cutelo do algoz...
Sinto não ter um raio em cada verso
Para escrever na fronte do perverso:
"Maldição sobre vós!"


Maldição sobre vós, tribuno falso!
Rei, que julgais que o negro cadafalso
É dos tronos o irmão!
Bardo, que a lira prostituis na orgia
— Eunuco incensador da tirania —
Sobre ti maldição!


Maldição sobre tí, rico devasso,
Que da música, ao lânguido compasso,
Embriagado não vês
A criança faminta que na rua
Abraça u'a mulher pálida e nua,
Tua amante... talvez!...


Maldição! ... Mas que importa?... Ela espedaça
Acaso a flor olente que se enlaça
Nas c'roas festivais?
Nodoa a veste rica ao sibarita?
Que importam cantos, se é mais alta a grita
Das loucas bacanais?


Oh! por isso, Maria, vês, me curvo
Na face do presente escuro e turvo
E interrogo o porvir;
Ou levantando a voz por sobre os montes, —
"Liberdade", pergunto aos horizontes,
Quando enfim hás de vir?"


Por isso, quando vês as noites belas,
Onde voa a poeira das estrelas
E das constelações,
Eu fito o abismo que a meus pés fermenta,
E onde, como santelmos da tormenta,
Fulgem revoluções!...
 



O sol e o povo

 

Le peuple a sa colére et le volcan sa lave.
V. Hugo

Ya desatado
El horrendo huracán silba contigo
¿ Qué muralla, qué abrigo
Bastaran contra ti?
M. Quintana

O sol, do espaço Briaréu gigante,
P’ra escalar a montanha do infinito,
Banha em sangue as campinas do levante.


Então em meio dos Saarás — o Egito
Humilde curva a fronte e um grito errante
Vai despertar a Esfinge de granito.


O povo é como o sol! Da treva escura
Rompe um dia co’a destra iluminada,
Como o Lázaro, estala a sepultura!...


Oh! temei-vos da turba esfarrapada,
Que salva o berço à geração futura,
Que vinga a campa à geração passada.
 



Tragédia no lar


Na Senzala, úmida, estreita,
Brilha a chama da candeia,
No sapé se esgueira o vento.
E a luz da fogueira ateia.


Junto ao fogo, uma africana,
Sentada, o filho embalando,
Vai lentamente cantando
Uma tirana indolente,
Repassada de aflição.
E o menino ri contente...
Mas treme e grita gelado,
Se nas palhas do telhado
Ruge o vento do sertão.


Se o canto pára um momento,
Chora a criança imprudente ...
Mas continua a cantiga ...
E ri sem ver o tormento
Daquele amargo cantar.
Ai! triste, que enxugas rindo
Os prantos que vão caindo
Do fundo, materno olhar,
E nas mãozinhas brilhantes
Agitas como diamantes
Os prantos do seu pensar ...


E voz como um soluço lacerante
Continua a cantar:


"Eu sou como a garça triste
"Que mora à beira do rio,
"As orvalhadas da noite
"Me fazem tremer de frio.


"Me fazem tremer de frio
"Como os juncos da lagoa;
"Feliz da araponga errante
"Que é livre, que livre voa.


"Que é livre, que livre voa
"Para as bandas do seu ninho,
"E nas braúnas à tarde
"Canta longe do caminho.


"Canta longe do caminho.
"Por onde o vaqueiro trilha,
"Se quer descansar as asas
"Tem a palmeira, a baunilha.


"Tem a palmeira, a baunilha,
"Tem o brejo, a lavadeira,
"Tem as campinas, as flores,
"Tem a relva, a trepadeira,


"Tem a relva, a trepadeira,
"Todas têm os seus amores,
"Eu não tenho mãe nem filhos,
"Nem irmão, nem lar, nem flores".


A cantiga cessou. . . Vinha da estrada
A trote largo, linda cavalhada
De estranho viajor,
Na porta da fazenda eles paravam,
Das mulas boleadas apeavam
E batiam na porta do senhor.


Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas,
Sorrisos sensuais, sinistro olhar,
Os bigodes retorcidos,
O cigarro a fumegar,
O rebenque prateado
Do pulso dependurado,
Largas chilenas luzidas,
Que vão tinindo no chão,
E as garruchas embebidas
No bordado cinturão.


A porta da fazenda foi aberta;
Entraram no salão.


Por que tremes mulher? A noite é calma,
Um bulício remoto agita a palma
Do vasto coqueiral.
Tem pérolas o rio, a noite lumes,
A mata sombras, o sertão perfumes,
Murmúrio o bananal.


Por que tremes, mulher? Que estranho crime,
Que remorso cruel assim te oprime
E te curva a cerviz?
O que nas dobras do vestido ocultas?
É um roubo talvez que aí sepultas?
É seu filho ... Infeliz! ...


Ser mãe é um crime, ter um filho - roubo!
Amá-lo uma loucura! Alma de lodo,
Para ti - não há luz.
Tens a noite no corpo, a noite na alma,
Pedra que a humanidade pisa calma,
— Cristo que verga à cruz!


Na hipérbole do ousado cataclisma
Um dia Deus morreu... fuzila um prisma
Do Calvário ao Tabor!
Viu-se então de Palmira os pétreos ossos,
De Babel o cadáver de destroços
Mais lívidos de horror.


Era o relampejar da liberdade
Nas nuvens do chorar da humanidade,
Ou sarça do Sinai,
— Relâmpagos que ferem de desmaios...
Revoluções, vós deles sois os raios,
Escravos, esperai! ...


..................................................................


Leitor, se não tens desprezo
De vir descer às senzalas,
Trocar tapetes e salas
Por um alcouce cruel,
Que o teu vestido bordado
Vem comigo, mas ... cuidado ...
Não fique no chão manchado,
No chão do imundo bordel.


Não venhas tu que achas triste
Às vezes a própria festa.
Tu, grande, que nunca ouviste
Senão gemidos da orquestra
Por que despertar tu'alma,
Em sedas adormecida,
Esta excrescência da vida
Que ocultas com tanto esmero?
E o coração - tredo lodo,
Fezes d'ânfora doirada
Negra serpe, que enraivada,
Morde a cauda, morde o dorso
E sangra às vezes piedade,
E sangra às vezes remorso?...


Não venham esses que negam
A esmola ao leproso, ao pobre.
A luva branca do nobre
Oh! senhores, não mancheis...
Os pés lá pisam em lama,
Porém as frontes são puras
Mas vós nas faces impuras
Tendes lodo, e pus nos pés.


Porém vós, que no lixo do oceano
A pérola de luz ides buscar,
Mergulhadores deste pego insano
Da sociedade, deste tredo mar.
Vinde ver como rasgam-se as entranhas
De uma raça de novos Prometeus,
Ai! vamos ver guilhotinadas almas
Da senzala nos vivos mausoléus.


— Escrava, dá-me teu filho!
Senhores, ide-lo ver:
É forte, de uma raça bem provada,
Havemos tudo fazer.


Assim dizia o fazendeiro, rindo,
E agitava o chicote...
A mãe que ouvia
Imóvel, pasma, doida, sem razão!
À Virgem Santa pedia
Com prantos por oração;
E os olhos no ar erguia
Que a voz não podia, não.


— Dá-me teu filho! repetiu fremente
o senhor, de sobr'olho carregado.
— Impossível!...
— Que dizes, miserável?!
— Perdão, senhor! perdão! meu filho dorme...
Inda há pouco o embalei, pobre inocente,
Que nem sequer pressente
Que ides...
— Sim, que o vou vender!
— Vender?!. . . Vender meu filho?!


Senhor, por piedade, não
Vós sois bom antes do peito
Me arranqueis o coração!
Por piedade, matai-me! Oh! É impossível
Que me roubem da vida o único bem!
Apenas sabe rir é tão pequeno!
Inda não sabe me chamar? Também
Senhor, vós tendes filhos... quem não tem?


Se alguém quisesse os vender
Havíeis muito chorar
Havíeis muito gemer,
Diríeis a rir — Perdão?!
Deixai meu filho... arrancai-me
Antes a alma e o coração!


— Cala-te miserável! Meus senhores,
O escravo podeis ver ...


E a mãe em pranto aos pés dos mercadores
Atirou-se a gemer.
— Senhores! basta a desgraça
De não ter pátria nem lar, -
De ter honra e ser vendida
De ter alma e nunca amar!


Deixai à noite que chora
Que espere ao menos a aurora,
Ao ramo seco uma flor;
Deixai o pássaro ao ninho,
Deixai à mãe o filhinho,
Deixai à desgraça o amor.


Meu filho é-me a sombra amiga
Neste deserto cruel!...
Flor de inocência e candura.
Favo de amor e de mel!


Seu riso é minha alvorada,
Sua lágrima doirada
Minha estrela, minha luz!
É da vida o único brilho
Meu filho! é mais... é meu filho
Deixai-mo em nome da Cruz!...


Porém nada comove homens de pedra,
Sepulcros onde é morto o coração.
A criança do berço ei-los arrancam
Que os bracinhos estende e chora em vão!


Mudou-se a cena. Já vistes
Bramir na mata o jaguar,
E no furor desmedido
Saltar, raivando atrevido.
O ramo, o tronco estalar,
Morder os cães que o morderam...
De vítima feita algoz,
Em sangue e horror envolvido
Terrível, bravo, feroz?


Assim a escrava da criança ao grito
Destemida saltou,
E a turba dos senhores aterrada
Ante ela recuou.


— Nem mais um passo, cobardes!
Nem mais um passo! ladrões!
Se os outros roubam as bolsas,
Vós roubais os corações! ...


Entram três negros possantes,
Brilham punhais traiçoeiros...
Rolam por terra os primeiros
Da morte nas contorções.


Um momento depois a cavalgada
Levava a trote largo pela estrada
A criança a chorar.
Na fazenda o azorrague então se ouvia
E aos golpes - uma doida respondia
Com frio gargalhar! ...




O sibarita romano

 

Este olhar, estes lábios, estas rugas
exprimem uma sede impaciente e
impossível de saciar. Quer e não pode.
Sente o desejo e a impaciência.
LAVATER

Escravo, dá-me a c'roa de amaranto
Que mandou-me inda há pouco Afra impudente.
Orna-me a fronte... Enrola-me os cabelos,
Quero o mole perfume do Oriente.


Lança nas chamas dessa etrusca pira
O nardo trescalante de Medina.
Vem... desenrola aos pés do meu triclínio
As felpas de uma colcha bizantina.





Escravo, dá-me a c'roa de amaranto
Que mandou-me inda há pouco Afra impudente.
Orna-me a fronte... Enrola-me os cabelos,
Quero o mole perfume do Oriente.


Lança nas chamas dessa etrusca pira
O nardo trescalante de Medina.
Vem... desenrola aos pés do meu triclínio
As felpas de uma colcha bizantina.


Ohl tenho tédio... Embalde, ao pôr da tarde,
Pelas nereidas louras embalado,
Vogo em minha galera ao som das harpas,
Da cortesã nos seios recostado.


Debalde, em meu palácio altivo, imenso,
De mosaicos brilhantes embutido,
Nuas, volvem as filhas do Oriente
No morno banho em termas de porfido.


Só amo o circo... a dor, gritos e flores,
A pantera, o leão de hirsuta coma;
Onde o banho de sangue do universo
Rejuvenesce a púrpura de Roma.


E o povo rei — na vítima do mundo
Palpa as entranhas que inda sangue escorrem,
E ergue-se o grito extremo dos cativos:
— Ave, Cesar! saúdam-te os que morrem!


Escravo, quero um canto... Vibra a lira,
De Orfeu desperta a fibra dolorida,
Canta a volúpia das bacantes nudas,
Fere o hino de amor que inflama a vida.


Doce, como do Himeto o mel dourado,
Puro como o perfume... Escravo insano!
Teu canto é o grito rouco das Eumênides,
Sombrio como um verso de Lucano.


Quero a ode de amor que o vento canta
Do Palatino aos flóreos arvoredos.
Quero os cantos de Nero... Escravo infame,
Quebras as cordas nos convulsos dedos!


Deixa esta lira! como o tempo é longo!
Insano! insano! que tormento sinto!
Traze o louro falerno transparente
Na mais custosa taça de Corinto.


Pesa-me a vida!... está deserto o Forum!
E o tédio!... o tédio!... que infernal idéia!
Dá-me a taça, e do ergástulo das servas
Tua irmã trar-me-ás, — a grega Haidéia!


Quero em seu seio... Escravo desgraçado,
A este nome tremeu-te o braço exangue?
Vê... Manchaste-me a toga com o falerno,
Irás manchar o Coliseu com o sangue!...
 



A criança

 

Que veux-tu, fleur, beau fruit, ou l'oiseau merveilleux?
Ami, dit l'enfant grec, dit l'enfant aux yeux bleus,
Je veux de Ia poudre et des balles.
VICTOR HUGO (Les Orientales)


Tradução do texto de Victor Hugo: “-Que desejas, flor, um belo fruto ou um pássaro maravilhoso? / -Amigo, diz a criança, grega, diz a criança de olhos azuis, quero pólvora e balas.”
Que tens criança? O areal da estrada
Luzente a cintilar
Parece a folha ardente de uma espada.
Tine o sol nas savanas. Morno é o vento.
À sombra do palmar
O lavrador se inclina sonolento.


É triste ver uma alvorada em sombras,
Uma ave sem cantar,
O veado estendido nas alfombras.
Mocidade, és a aurora da existência,
Quero ver-te brilhar.
Canta, criança, és a ave da inocência.


Tu choras porque um ramo de baunilha
Não pudeste colher,
Ou pela flor gentil da granadilha?
Dou-te, um ninho, uma flor, dou-te uma palma,
Para em teus lábios ver
O riso — a estrela no horizonte da alma.


Não. Perdeste tua mãe ao fero açoite
Dos seus algozes vis.
E vagas tonto a tatear à noite.
Choras antes de rir... pobre criança!...
Que queres, infeliz?...
— Amigo, eu quero o ferro da vingança.



A cruz da estrada

 

Invideo quia quiescunt.
LUTHERO (Worms)

Tu que passas, descobre-te! Ali dorme
O forte que morreu.
A. HERCULANO (Trad.)
 

Caminheiro que passas pela estrada,
Seguindo pelo rumo do sertão,
Quando vires a cruz abandonada,
Deixa-a em paz dormir na solidão.


Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Que lhe atiras nos braços ao passar?
Vais espantar o bando buliçoso
Das borboletas, que lá vão pousar.


É de um escravo humilde sepultura,
Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
Deixa-o dormir no leito de verdura,
Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.


Não precisa de ti. O gaturamo
Geme, por ele, à tarde, no sertão.
E a juriti, do taquaral no ramo,
Povoa, soluçando, a solidão.


Dentre os braços da cruz, a parasita,
Num abraço de flores, se prendeu.
Chora orvalhos a grama, que palpita;
Lhe acende o vaga-lume o facho seu.


Quando, à noite, o silêncio habita as matas,
A sepultura fala a sós com Deus.
Prende-se a voz na boca das cascatas,
E as asas de ouro aos astros lá nos céus.


Caminheiro! do escravo desgraçado
O sono agora mesmo começou!
Não lhe toques no leito de noivado,
Há pouco a liberdade o desposou.
 



Bandido negro

 

Corre, corre, sangue do cativo
Cai, cai, orvalho de sangue
Germina, cresce, colheita vingadora
A ti, segador a ti. Está madura.
Aguça tua fouce, aguça, aguça tua fouce.
(E. SUE - Canto dos filhos de Agar)

Trema a terra de susto aterrada...
Minha égua veloz, desgrenhada,
Negra, escura nas lapas voou.
Trema o céu ... ó ruína! ó desgraça!
Porque o negro bandido é quem passa,
Porque o negro bandido bradou:


Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.


Dorme o raio na negra tormenta...
Somos negros... o raio fermenta
Nesses peitos cobertos de horror.
Lança o grito da livre coorte,
Lança, ó vento, pampeiro de morte,
Este guante de ferro ao senhor.


Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.


Eia! ó raça que nunca te assombras!
Pra o guerreiro uma tenda de sombras
Arma a noite na vasta amplidão.
Sus! pulula dos quatro horizontes,
Sai da vasta cratera dos montes,
Donde salta o condor, o vulcão.


Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.


E o senhor que na festa descanta
Pare o braço que a taça alevanta,
Coroada de flores azuis.
E murmure, julgando-se em sonhos:
"Que demônios são estes medonhos,
Que lá passam famintos e nus?"


Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.


Somos nós, meu senhor, mas não tremas,
Nós quebramos as nossas algemas
Pra pedir-te as esposas ou mães.
Este é o filho do ancião que mataste.
Este - irmão da mulher que manchaste...
Oh! não tremas, senhor, são teus cães.


Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.


São teus cães, que têm frio e têm fome,
Que há dez séc'los a sede consome...
Quero um vasto banquete feroz...
Venha o manto que os ombros nos cubra.
Para vós fez-se a púrpura rubra,
Fez-se a manto de sangue pra nós.


Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.


Meus leões africanos, alerta!
Vela a noite... a campina é deserta.
Quando a lua esconder seu clarão
Seja o bramo da vida arrancado
No banquete da morte lançado
Junto ao corvo, seu lúgubre irmão.
 

Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.


Trema o vale, o rochedo escarpado,
Trema o céu de trovões carregado,
Ao passar da rajada de heróis,
Que nas éguas fatais desgrenhadas
Vão brandindo essas brancas espadas,
Que se amolam nas campas de avós.


Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz



América


Acorda a pátria e vê que é pesadelo
O sonho da ignomínia que ela sonha!
Tomás Ribeiro
À Tépida sombra das matas gigantes,
Da América ardente nos pampas do Sul,
Ao canto dos ventos nas palmas brilhantes,
À luz transparente de um céu todo azul,


A filha das matas — cabocla morena —
Se inclina indolente sonhando talvez!
A fronte nos Andes reclina serena.
E o Atlântico humilde se estende a seus pés.


As brisas dos cerros ainda lhe ondulam
Nas plumas vermelhas do arco de avós,
Lembrando o passado seus seios pululam,
Se a onça ligeira boliu nos cipós.


São vagas lembranças de um tempo que teve!...
Palpita-lhe o seio por sob uma cruz.
E em cisma doirada — qual garça de neve —
Sua alma revolve-se em ondas de luz.


Embalam-lhe os sonhos, na tarde saudosa,
Os cheiros agrestes do vasto sertão,
E a triste araponga que geme chorosa
E a voz dos tropeiros em terna canção.


Se o gênio da noite no espaço flutua
Que negros mistérios a selva contém!
Se a ilha de prata, se a pálida lua
Clareia o levante, que amores não tem!


Parece que os astros são anjos pendidos
Das frouxas neblinas da abóbada azul,
Que miram, que adoram ardentes, perdidos,
A filha morena dos pampas do Sul.


Se aponta a alvorada por entre as cascatas,
Que estrelas no orvalho que a noite verteu!
As flores são aves que pousam nas matas,
As aves são flores que voam no céu!


......................................................................


Ó pátria, desperta... Não curves a fronte
Que enxuga-te os prantos o Sol do Equador.
Não miras na fímbria do vasto horizonte
A luz da alvorada de um dia melhor?


Já falta bem pouco. Sacode a cadeia
Que chamam riquezas... que nódoas te são!
Não manches a folha de tua epopéia
No sangue do escravo, no imundo balcão.


Sê pobre, que importa? Sê livre... és gigante,
Bem como os condores dos píncaros teus!
Arranca este peso das costas do Atlante,
Levanta o madeiro dos ombros de Deus

            Bom exemplo de poema condoreiro. É a “cabloca morena”, a Ámerica. Assim o texto sintetiza com essa imagem a origem mestiça da população americana: o branco e índio deram o cabloco que se amorenou com o contato com o negro. A “cabloca” se lembra dos seus tempos anteriores à chegada do colonizador branco, que contrastam com os seus tempos atuais, em que o Cristianismo desse colonizador passou a ser a religião dominante, o que pode ser observado no verso “ Palpita-lhe o seio por sob uma cruz”. Percebe-se que na 1ª (primeira) parte do poema a natureza compõe um quadro de grande plasticidade e alguns trechos se evidencia o apelo a diferentes tipos de sensações, como por exemplo: TATO e VISÃO  no trecho: “tépida sombra”; TATO no vocábulo: “ardente”; VISÃO em: “palmas brilhantes”; AUDIÇÃO em: “canto dos ventos”, dentre outros.
            Já na 2ª (segunda) parte, surge uma voz de um sujeito lírico que se dirige à “cabloca morena”, manifestando, na primeira estrofe, a crença de que o futuro trará dias melhores ao continente americano. Tal sujeito vê a escravidão negra como um negócio lucrativo e sórdido – um negócio capaz de envergonhar a história de um continente como se pode observar nos versos: “ Não manches a folha de tua epopéia / No sangue do escravo no imundo balcão.”
            Neste poema o tom elevado e grandiloquente pode ser comparado ao voô do condor, a que o texto se refere: “Bem como os condores dos píncaros teus!”, caracterizando assim, esse tipo de poesia condoreira.

O canto de Bug Jargal

 

(Traduzido de V. Hugo)

Por que foges de mim? Por que, Maria?
E gelas-te de medo, se me escutas?
Ah! sou bem formidável na verdade,
Sei ter amor, ter dores e ter cantos!
Quando, através das palmas dos coqueiros
Tua forma desliza aérea e pura,
Ó Maria, meus olhos se deslumbram,
Julgo ver um espírito que passa.
E se escuto os acentos encantados,
Que em melodia escapam de teus lábios,
Meu coração palpita em meu ouvido
Misturando um queixoso murmurio
De tua voz à lânguida harmonia.
Ai! tua voz é mais doce do que o canto
Das aves que no céu vibram as asas,
E que vem no horizonte lá da pátria.
Da pátria onde era rei, onde era livre!
Rei e livre, Maria! e esqueceria
Tudo por ti... esqueceria tudo
— A família, o dever, reino e vingança
Sim, até a vingança! ... ainda que cedo
Tenha enfim de colher este acre fruto,
Acre e doce que tarde amadurece.


...................................................................


Ó Maria, pareces a palmeira
Bela, esvelta, embalada pelas auras.
E te miras no olhar de teu amante
Como a palmeira n'água transparente.
Porém ... sabes? Às vezes há no fundo
Do deserto o uragã que tem ciúmes
Da fonte amada... e arroja-se e galopa.
O ar e a areia misturando turvos
Sob o vôo pesado de suas asas.
Num turbilhão de fogo, árvore e fonte
Envolve... e seca a límpida vertente,
Sente a palmeira a um hálito de morte
Crespar-se o verde circ'lo da folhagem,
Que tinha a majestade de uma c'roa
E a graça de uma solta cabeleira.


...................................................................



Oh! treme, branca filha de Espanhola,
Treme, breve talvez tenhas em torno
O uragã e o deserto. Então, Maria,
Lamentarás o amor que hoje pudera
Te conduzir a mim, bem como o kata
— Da salvação o pássaro ditoso —
Através das areias africanas
Guia o viajante lânguido à cisterna.
E por que enjeitas meu amor? Escuta:
Eu sou rei, minha fronte se levanta
Sobre as frontes de todos. Ó Maria,
Eu sei que és branca e eu negro, mas precisa
O dia unir-se à noite feia, escura,
Para criar as tardes e as auroras,
Mais belas do que a luz, mais do que as trevas!
 



A órfã na sepultura


Minha mãe, a noite é fria,
Desce a neblina sombria,
Geme o riacho no val
E a bananeira farfalha,
Como o som de uma mortalha
Que rasga o gênio do mal.


Não vês que noite cerrada?
Ouviste essa gargalhada
Na mata escura? ai de mim!
Mãe, ó mãe, tremo de medo.
Oh! quando enfim teu segredo,
Teu segredo terá fim?


Foi ontem que à Ave-Maria
O sino da freguesia,
Me fez tanto soluçar.
Foi ontem que te calaste...
Dormiste . . os olhos fechaste...
Nem me fizeste rezar! ...


Sentei-me junto ao teu leito,
'Stava tão frio o teu peito,
Que eu fui o fogo atiçar.
Parece que então me viste
Porque dormindo sorriste
Como uma santa no altar.


Depois o fogo apagou-se,
Tudo no quarto calou-se,
E eu também calei-me então.
Somente acesa uma vela
Triste, de cera amarela,
Tremia na escuridão.


Apenas nascera o dia,
À voz do maridedia
Saltei contente de pé.
Cantavam os passarinhos
Que fabricavam seus ninhos
No telhado de sapé.


Porém tu, por que dormias,
Por que já não me dizias
"Filha do meu coração?"
'Stavas aflita comigo?
Mãe, abracei-me contigo,
Pedi-te embalde perdão...


Chorei muito! ai triste vida!
Chorei muito, arrependida
Do que talvez fiz a ti.
Depois rezei ajoelhada
A reza da madrugada
Que tantas vezes te ouvi:


"Senhor Deus, que após a noite
"Mandas a luz do arrebol,
"Que vestes a esfarrapada
"Com o manto rico do sol,


"Tu que dás à flor o orvalho,
"Às aves o céu e o ar,
"Que dás as frutas ao galho,
"Ao desgraçado o chorar;


"Que desfias diamantes
"Em cada raio de luz,
"Que espalhas flores de estrelas
"Do céu nos campos azuis;


"Senhor Deus, tu que perdoas
"A toda alma que chorou,
"Como a clícia das lagoas,
"Que a água da chuva lavou;


"Faze da alma da inocente
"O ninho do teu amor,
"Verte o orvalho da virtude
"Na minha pequena flor.


"Que minha filha algum dia
"Eu veja livre e feliz! ...
"Ó Santa Virgem Maria,
"Sê mãe da pobre infeliz."


Inda lembras-te! dizias,
Sempre que a reza me ouvias
Em prantos de a sufocar:
"Ai! têm orvalhos as flores,
"Tu, filha dos meus amores,
"Tens o orvalho do chorar".


Mas hoje sempre sisuda
Me ouviste... ficaste muda,
Sorrindo não sei pra quem.
Quase então que eu tive medo...
Parecia que um segredo
Dizias baixinho a alguém.


Depois... depois... me arrastaram...
Depois... sim... te carregaram
P'ra vir te esconder aqui.
Eu sozinha lá na sala...
'Stava tão triste a senzala...
Mãe, para ver-te eu fugi...


E agora, ó Deus!... se te chamo
Não me respondes!... se clamo,
Respondem-me os ventos suis...
No leito onde a rosa medra
Tu tens por lençol a pedra,
Por travesseiro uma cruz.


É muito estreito esse leito?
Que importa? abre-me teu peito
— Ninho infinito de amor.
— Palmeira — quero-te a sombra.
— Terra — dá-me a tua alfombra.
— Santo fogo — o teu calor.


Mãe, minha voz já me assusta...
Alguém na floresta adusta
Repete os soluços meus.
Sacode a terra... desperta!...
Ou dá-me a mesma coberta'
Minha mãe... meu céu... meu Deus...



Antítese

 

O seu prêmio? — O desprezo e
uma carta de alforria quando tens
gastas as forças e não pode mais
ganhar a subsistência.
Maciel Pinheiro

Cintila a festa nas salas!
Das serpentinas de prata
Jorram luzes em cascata
Sobre sedas e rubins.
Soa a orquestra ... Como silfos
Na valsa os pares perpassam,
Sobre as flores, que se enlaçam
Dos tapetes nos coxins.


Entanto a névoa da noite
No átrio, na vasta rua,
Como um sudário flutua
Nos ombros da solidão.
E as ventanias errantes,
Pelos ermos perpassando,
Vão se ocultar soluçando
Nos antros da escuridão.


Tudo é deserto. . . somente
À praça em meio se agita
Dúbia forma que palpita,
Se estorce em rouco estertor.


— Espécie de cão sem dono
Desprezado na agonia,
Larva da noite sombria,
Mescla de trevas e horror.


É ele o escravo maldito,
O velho desamparado,
Bem como o cedro lascado,
Bem como o cedro no chão.
Tem por leito de agonias
As lájeas do pavimento,
E como único lamento
Passa rugindo o tufão.


Chorai, orvalhos da noite,
Soluçai, ventos errantes.
Astros da noite brilhantes
Sede os círios do infeliz!
Que o cadáver insepulto,
Nas praças abandonado,
É um verbo de luz, um brado
Que a liberdade prediz.




Canção do violeiro


Passa, ó vento das campinas,
Leva a canção do tropeiro.
Meu coração 'stá deserto,
'Stá deserto o mundo inteiro.
Quem viu a minha senhora
Dona do meu coração?


Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.


Ela foi-se ao pôr da tarde
Como as gaivotas do rio.
Como os orvalhos que descem
Da noite num beijo frio,
O cauã canta bem triste,
Mais triste é meu coração.


Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.


E eu disse: a senhora volta
Com as flores da sapucaia.
Veio o tempo, trouxe as flores,
Foi o tempo, a flor desmaia.
Colhereira, que além voas,
Onde está meu coração?


Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.


Não quero mais esta vida,
Não quero mais esta terra.
Vou procurá-la bem longe,
Lá para as bandas da serra.
Ai! triste que eu sou escravo!
Que vale ter coração?


Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.



Súplica

 

La nègre marqué au signe de Dieu comme vous passera désormais du berceau à la fosse, la nuit sur son âme, la nuít sur la figure.
PELLETAN
Tradução do texto de Pelletan: “O negro marcado pelo desígnio de Deus, como você, passará de agora em diante do berço para a fossa, com a noite em sua alma e a noite em seu rosto.”

Senhor Deus, dá que a boca da inocência
Possa ao menos sorrir,
Como a flor da granada abrindo as pet'las
Da alvorada ao surgir.


Dá que um dedo de mãe aponte ao filho
O caminho dos céus,
E seus lábios derramem como pérolas
Dois nomes — filho e Deus.


Que a donzela não manche em leito impuro
A grinalda do amor.
Que a honra não se compre ao carniceiro
Que se chama senhor.


Dá que o brio não cortem como o cardo
Filho do coração.
Nem o chicote acorde o pobre escravo
A cada aspiração.


Insultam e desprezam da velhice
A coroa de cãs.
Ante os olhos do irmão em prostitutas
Transformam-se as irmãs.


A esposa é bela... Um dia o pobre escravo
Solitário acordou;
E o vício quebra e ri do nó perpétuo
Que a mão de Deus atou.


Do abismo em pego, de desonra em crime
Rola o mísero a sós.
Da lei sangrento o braço rasga as vísceras
Como o abutre feroz.


Vê!... A inocência, o amor, o brio, a honra,
E o velho no balcão.
Do berço à sepultura a infâmia escrita...
Senhor Deus! compaixão!...




O vidente

 

Virá o dia da felicidade
para todos.
(Isaías)
 
Às vezes quando à tarde, nas tardes brasileiras,
A cisma e a sombra descem das altas cordilheiras;
Quando a viola acorda na choça o sertanejo
E a linda lavadeira cantando deixa o brejo,
E a noite - a freira santa - no órgão das florestas
Um salmo preludia nos troncos, nas giestas;
Se acaso solitário passo pelas picadas,
Que torcem-se escamosas nas lapas escarpadas,
Encosto sobre as pedras a minha carabina,
Junto a meu cão, que dorme nas sarças da colina,
E, como uma harpa eólia entregue ao tom dos ventos
- Estranhas melodias, estranhos pensamentos,
Vibram-me as cordas d'alma enquanto absorto cismo,
Senhor! vendo tua sombra curvada sobre o abismo,
Colher a prece alada, o canto que esvoaça
E a lágrima que orvalha o lírio da desgraça,
Então, num santo êxtase, escuto a terra e os céus.
E o vácuo se povoa de tua sombra, ó Deus!


Ouço o cantar dos astros no mar do firmamento;
No mar das matas virgens ouço o cantar do vento,
Aromas que s'elevam, raios de luz que descem,
Estrelas que despontam, gritos que se esvaecem,
Tudo me traz um canto de imensa poesia,
Como a primícia augusta da grande profecia;
Tudo me diz que o Eterno, na idade prometida,
Há de beijar na face a terra arrependida.
E, desse beijo santo, desse ósculo sublime
Que lava a iniqüidade, a escravidão e o crime,
Hão de nascer virentes nos campos das idades,
Amores, esperanças, glórias e liberdades!
Então, num santo êxtase, escuto a terra e os céus,
O vácuo se povoa de tua sombra, ó Deus!


E, ouvindo nos espaços as louras utopias
Do futuro cantarem as doses melodias,
Dos povos, das idades, a nova promissão...
Me arrasta ao infinito a águia da inspiração ...
Então me arrojo ousado das eras através,
Deixando estrelas, séculos, volverem-se a meus pés...
Porque em minh'alma sinto ferver enorme grito,
Ante o estupendo quadro das telas do infinito...
Que faz que, em santo êxtase, eu veja a terra e os céus,
E o vácuo povoado de tua sombra, ó Deus!


Eu vejo a erra livre... como outra Madalena,
Banhando a' fronte pura na viração serena,
Da urna do crepúsculo, verter nos céus azuis
Perfumes, luzes, preces, curvada aos pés da cruz...
No mundo - tenda imensa da humanidade inteira
Que o espaço tem por teto, o sol tem por lareira,
Feliz se aquece unida a universal família.
Oh! dia sacrossanto em que a justiça brilha,
Eu vejo em ti das ruínas vetustas do passado,
O velho sacerdote augusto e venerado
Colher a parasita - a santa flor - o culto,
Como o coral brilhante do mar na vasa oculto...
Não mais inunda o templo a vil superstição;
A fé - a pomba mística - e a águia da razão,
Unidas se levantam do vale escuro d'alma,
Ao ninho do infinito voando em noite calma.
Mudou-se o férreo cetro, esse aguilhão dos povos,
Na virga do profeta coberta de renovos.
E o velho cadafalso horrendo e corcovado,
Ao poste das idades por irrisão ligado
Parece embalde tenta cobrir com as mãos a fronte,
- Abutre que esqueceu que o sol vem no horizonte.
Vede: as crianças louras aprendem no Evangelho
A letra que comenta algum sublime velho,
Em toda a fronte há luzes, em todo o peito amores,
Em todo o céu estrelas, em todo o campo flores ...
E, enquanto, sob as vinhas, a ingênua camponesa
Enlaça às negras tranças a rosa da deveza;
Dos saaras africanos, dos gelos da Sibéria,


Do Cáucaso, dos campos dessa infeliz lbéria,
Dos mármores lascados da terra santa homérica,
Dos pampas, das savanas desta soberba América
Prorrompe o hino livre, o hino do trabalho!
E, ao canto dos obreiros, na orquestra audaz do malho,
O ruído se mistura da imprensa, das idéias,
Todos da liberdade forjando as epopéias,
Todos co'as mãos calosas, todos banhando a fronte
Ao sol da independência que irrompe no horizonte.


Oh! escutai! ao longe vago rumor se eleva
Como o trovão que ouviu-se quando na escura treva,
O braço onipotente rolou Satã maldito.
É outro condenado ao raio do infinito,
É o retumbar por terra desses impuros paços,
Desses serralhos negros, desses Egeus devassos,
Saturnos de granito, feitos de sangue e ossos...
Que bebem a existência do povo nos destroços ...


..........................................................................


Enfim a terra é livre! Enfim lá do Calvário
A águia da liberdade, no imenso itinerário,
Voa do Calpe brusco às cordilheiras grandes,
Das cristas do Himalaia aos píncaros dos Andes!
Quebraram-se as cadeias, é livre a terra inteira,
A humanidade marcha com a Bíblia por bandeira-.
São livres os escravos... quero empunhar a lira,
Quero que est'alma ardente um canto audaz desfira,
Quero enlaçar meu hino aos murmúrios dos ventos,
Às harpas das estrelas, ao mar, aos elementos!


.............................................................


Mas, ai! longos gemidos de míseros cativos,
Tinidos de mil ferros, soluços convulsivos,
Vêm-me bradar nas sombras, como fatal vedeta:
"Que pensas, moço triste? Que sonhas tu, poeta?"
Então curvo a cabeça de raios carregada,
E, atando brônzea corda à lira amargurada,
O canto de agonia arrojo à terra, aos céus,
E ao vácuo povoado de tua sombra, ó Deus!
 



A mãe do cativo

 

Le Christ à Nazareth, atix jours de son enfance
Jouait avec Ia croix, symbole de sa mort;
Mère du Polonais! qu'il apprene d'avance
A combattre et braver les outrages du Sort.

Qu'il couve dans son sein sa colère et sa joie
Qu’il ses discours prudents distillent le venin,
Comme un aime obscur que son coeur se reploie
À terre, à deux genoux, qu'il rampe comme un nain

(Mickiewicz - A Mãe Polaca)

Tradução do texto de Mickiwicz: “O Cristo de Nazaré, na sua infância / Brincava com a cruz, símbolo de sua morte; / Mãe do Polonês, que ele aprenda com antecedência / A combater e desafiar os ultrajes do destino / Que ele encube em seu seio sua raiva e alegria; / Que seus prudentes discursos destilem o veneno, / Como um abismo escuro que em seu coração se curva; / A terra, nos dois joelhos, arrastando-se como um anão.”
Ó mãe do cativo! que alegre balanças
A rede que ataste nos galhos da selva!
Melhor tu farias se à pobre criança
Cavasses a cova por baixo da relva.


Ó mãe do cativo! que fias à noite
As roupas do filho na choça da palha!
Melhor tu farias se ao pobre pequeno
Tecesses o pano da branca mortalha.


Misérrima! E ensinas ao triste menino
Que existem virtudes e crimes no mundo
E ensinas ao filho que seja brioso,
Que evite dos vícios o abismo profundo ...


E louca, sacodes nesta alma, inda em trevas,
O raio da espr'ança... Cruel ironia!
E ao pássaro mandas voar no infinito,
Enquanto que o prende cadeia sombria! ...



II


Ó Mãe! não despertes est'alma que dorme,
Com o verbo sublime do Mártir da Cruz!
O pobre que rola no abismo sem termo
Pra qu'há de sondá-lo... Que morra sem luz.


Não vês no futuro seu negro fadário,
Ó cega divina que cegas de amor?!
Ensina a teu filho - desonra, misérias,
A vida nos crimes - a morte na dor.


Que seja covarde... que marche encurvado...
Que de homem se torne sombrio reptíl.
Nem core de pejo, nem trema de raiva
Se a face lhe cortam com o látego vil.


Arranca-o do leito... seu corpo habitue-se
Ao frio das noites, aos raios do sol.
Na vida - só cabe-lhe a tanga rasgada!
Na morte - só cabe-lhe o roto lençol.


Ensina-o que morda... mas pérfido oculte-se
Bem como a serpente por baixo da chã
Que impávido veja seus pais desonrados,
Que veja sorrindo mancharem-lhe a irmã.


Ensina-lhe as dores de um fero trabalho...
Trabalho que pagam com pútrido pão.
Depois que os amigos açoite no tronco...
Depois que adormeça co'o sono de um cão.


Criança - não trema dos transes de um mártir!
Mancebo - não sonhe delírios de amor!
Marido - que a esposa conduza sorrindo
Ao leito devasso do próprio senhor! ...


São estes os cantos que deves na terra
Ao mísero escravo somente ensinar.
Ó Mãe que balanças a rede selvagem
Que ataste nos troncos do vasto palmar.



III


Ó Mãe do cativo, que fias à noite
À luz da candeia na choça de palha!
Embala teu filho com essas cantigas...
Ou tece-lhe o pano da branca mortalha.
 


Manuela - (Cantiga do rancho)


Companheiros! já na serra


Erra.
A tropa inteira a pastar...
Tropeiros! ... junto à candeia
Eia!
Soltemos nosso trovar ...


Té que as barras do Oriente
Rente
Saiam dos montes de lá...
Cada qual sua cantiga
Diga
Aos ecos do Sincorá.


No rancho as noites se escoam.
Voam,
Quando geme o trovador...
Ouvi, pois! que esta guitarra...
Narra
O meu romance de amor.


...........................................


Manuela era formosa
Rosa,
Rosa aberta no sertão...
Com seu torço adamascado
Dado
Ao sopro da viração.


Provocante, mas esquiva,
Viva
Como um doudo beija-flor...
Manuela - a moreninha
Tinha
Em cada peito um amor ...


Inda agora quando o vento
Lento
Traz-me saudades de então
Parece que a vejo ainda
Linda
Do fado no turbilhão


Vejo-lhe o pé resvalando
Brando
No fandango a delirar.
Inda ao som das castanholas
Rolas
Diante do meu olhar ...


Manuela... mesmo agora
Chora
Minh'alma Pensando em ti...
E na viola relembro
Lembro
Tiranas que então gemi.


"Manuela, Manuela
Bela
Como tu ninguém luziu...
Minha travessa morena,
Pena
Pena tem de quem te viu!...


Manuela... Eu não perjuro!
Juro
Pela luz dos olhos teus...
Morrer por ti Manuela
Bela,
Se esqueces os sonhos meus.


Por teus sombrios olhares
- Mares
Onde eu me afogo de amor...
Pelas tranças que desatas
- Matas
Cheias de aroma e frescor ...


Pelos peitos que entre rendas
Vendas
Com medo que os vão roubar...
Pela perna que no frio
Rio
Pude outro dia enxergar ...


Por tudo que tem a terra,
Serra,
Mato, rio, campo e céu...
Eu te juro, Manuela,
Bela
Que serei cativo teu ...


Tu bem sabes que Maria,
Fria
É pra outros, não pra mim...
Que morrem Lúcia, Joana
E Ana
Aos sons do meu bandolim ...


Mas tu és um passarinho
- Ninho
Fizeste no peito meu ...
Eu sou a boca - és o canto
Tanto
Que sem ti não canto eu.


Vamos pois A noite cresce
Desce
A lua a beijar a flor
À sombra dos arvoredos
Ledos
Os ventos choram de amor


Vamos pois ó moreninha
Minha
Minha esposa ali serás
Ao vale a relva tapiza
Pisa
Serão teus Paços-reais!


Por padre uma árvore vasta
Basta!
Por igreja - o azul do céu...
Serão as brancas estrelas
- Velas
Acesas pra o himeneu".


Assim nos tempos perdidos
Idos
Eu cantava mas em vão
Manuela, que me ouvia,
Ria,
Casta flor da solidão!


Companheiros! se inda agora
Chora
Minha viola a gemer,
É porque um dia... Escutai-me
Dai-me
Sim! dai-me antes que beber!. . .


É que um dia mas bebamos
Vamos
No copo afogue-se a dor!
Manuela, Manuela,
Bela,
Fez-se amante do senhor!



Fábula - O pássaro e a flor


Era num dia sombrio
Quando um pássaro erradio
Veio parar num jardim.
Aí fitando uma rosa,
Sua voz triste e saudosa,
Pôs-se a improvisar assim.


"ó Rosa, ó Rosa bonita!
Ó Sultana favorita
Deste serralho de azul:
Flor que vives num palácio,
Como as princesas de Lácio,
Como as filhas de 'Stambul.


Corno és feliz! Quanto eu dera
Pela eterna primavera
Que o teu castelo contém...
Sob o cristal abrigada,
Tu nem sentes a geada
Que passa raivosa além.


Junto às estátuas de pedra
Tua vida cresce, medra,
Ao fumo dos narguillés,
No largo vaso da China
Da porcelana mais fina
Que vem do Império Chinês.


O Inverno ladra na rua,
Enquanto adormeces nua
Na estufa até de manhã.
Por escrava - tens a aragem
O sol - é teu louro pajem.
Tu és dele - a castelã.


Enquanto que eu desgraçado,
Pelas chuvas ensopado,
Levo o tempo a viajar,
- Boêmio da média idade,
Vou do castelo à cidade,
Vou do mosteiro ao solar!


Meu capote roto e pobre
Mal os meus ombros encobre
Quanto à gorra... tu bem vês! ...
Ai! meu Deus! se Rosa fora
Como eu zombaria agora
Dos louros dos menestréis!. . .

............................................
 

Então por entre a folhagem
Ao passarinho selvagem
A rosa assim respondeu:
"Cala-te, bardo dos bosques!
Ai! não troques os quiosques
Pela cúpula do céu.


Tu não sabes que delírios
Sofrem as rosas e os lírios
Nesta dourada prisão.
Sem falar com as violetas.
Sem beijar as borboletas,
Sem as auras do sertão.


Molha-te a fria geada...
Que importa? A loura alvorada
Virá beijar-te amanhã.
Poeta, romperás logo,
A cada beijo de fogo,
Na cantilena louçã.


Mas eu?! Nas salas brilhantes
Entre as tranças deslumbrantes
A virgem me enlaçará
Depois cadáver de rosa
A valsa vertiginosa
Por sobre mim rolará.


Vai, Poeta... Rompe os ares
Cruza a serra, o vale, os mares
Deus ao chão não te amarrou!
Eu calo-me - tu descansas,
Eu rojo - tu te levantas,
Tu és livre - escrava eu sou! ...
 


Estrofes do solitário


Basta de covardia! A hora soa...
Voz ignota e fatídica revoa,
Que vem... Donde? De Deus.
A nova geração rompe da terra,
E, qual Minerva armada para a guerra,
Pega a espada... olha os céus.


Sim, de longe, das raias do futuro,
Parte um grito, pra — os homens surdo, obscuro
Mas para - os moços, não!
É que, em meio das lutas da cidade,
Não ouvis o clarim da Eternidade,
Que troa n'amplidão!


Quando as praias se ocultam na neblina,
E como a garça, abrindo a asa latina,
Corre a barca no mar,
Se então sem freios se despenha o norte,
É impossível — parar... volver — é morte
Só lhe resta marchar.


E o povo é como - a barca em plenas vagas,
A tirania - é o tremedal das plagas,
O porvir - a amplidão.
Homens! Esta lufada que rebenta
É o furor da mais lôbrega tormenta. .
- Ruge a revolução.


E vós cruzais os braços... Covardia!
E murmurais com fera hipocrisia:
— É preciso esperar...
Esperar? Mas o quê? Que a populaça,
Este vento que os tronos despedaça,
Venha abismos cavar?


Ou quereis, como o sátrapa arrogante,
Que o porvir, n'ante-sala, espere o instante
Em que o deixeis subir?!
Oh! parai a avalanche, o sol, os ventos,
O oceano, o condor, os elementos...
Porém nunca o porvir!


Meu Deus! Da negra lenda que se inscreve
Co'o sangue de um Luís, no chão da Grève,
Não resta mais um som!...
Em vão nos deste, pra maior lembrança,
Do mundo - a Europa, mas d'Europa - a França.
Mas da França - um Bourbon!


Desvario das frontes coroadas!
Na página das púrpuras rasgadas
Ninguém mais estudou!
E no sulco do tempo, embalde dorme
A cabeça dos reis - semente enorme
Que a multidão plantou! ...


No entanto fora belo nesta idade
Desfraldar o estandarte da igualdade,
De Byron ser o irmão...
E pródigo - a esta Grécia brasileira,
Legar no testamento - uma bandeira,
E ao mundo - uma nação.


Soltar ao vento a inspiração de Graco
Envolver-se no manto de 'Spartaco,
Dos servos entre a grei;
Lincoln - o Lázaro acordar de novo,
E da tumba da ignomínia erguer um povo,
Fazer de um verme - um rei!


Depois morrer - que a vida está completa,
- Rei ou tribuno, César ou poeta,
Que mais quereis depois?
Basta escutar, do fundo lá da cova,
Dançar em vossa lousa a raça nova
Libertada por vós ...



Lúcia

 

poema

Na formosa estação da primavera
Quando o mato se arreia mais festivo,
E o vento campesino bebe ardente
O agreste aroma da floresta virgem...
Eu e Lúcia, corríamos — crianças —
Na veiga, no pomar, na cachoeira,
Como um casal de colibris travessos
Nas laranjeiras que o Natal enflora.


Ela era a cria mais formosa e meiga
Que jamais, na Fazenda, vira o dia ...
Morena, esbelta, airosa... eu me lembrava
Sempre da corça arisca dos silvados
Quando via-lhe os olhos negros, negros
Como as plumas noturnas da graúna,
Depois... quem mais mimosa e mais alegre?...
Sua boca era um pássaro escarlate
Onde cantava festival sorriso.
Os cabelos caíam-lhe anelados
Como doudos festões de parasitas...
E a graça... o modo... o coração tão meigo?l...


Ai! Pobre Lúcia... como tu sabias,
Festiva, encher de afagos a família,
Que te queria tanto e que te amava
Como se fosses filha e não cativa...
Tu eras a alegria da fazenda;
Tua senhora ria-se, contente
Quando enlaçavas seus cabelos brancos
Co'as roxas maravilhas da campina.
E quando à noite todos se juntavam,
Aos reflexos doirados da candeia,


Na grande sala em torno da fogueira,
Então, Lúcia, sorrindo eu murmurava:
"Meu Deus! um beija-flor fez-se criança...
Uma criança fez-se mariposa!"


Mas um dia a miséria, a fome, o frio,
Foram pedir um pouso nos teus lares...
A mesa era pequena... Pobre Lúcia!
Foi preciso te ergueres do banquete
Deixares teu lugar aos mais convivas...


Eu me lembro... eu me lembro... O sol raiava.
Tudo era festa em volta da pousada...
Cantava o galo alegre no terreiro,
O mugido das vacas misturava-se
Ao relincho das éguas que corriam
De crinas soltas pelo campo aberto
Aspirando o frescor da madrugada.


Pela última vez ela chorando
Veio sentar-se ao banco do terreiro...
Pobre criança! que conversas tristes
Tu conversaste então co'a natureza.


"Adeus! pra sempre, adeus, ó meus amigos,
Passarinhos do céu, brisas da mata,
Patativas saudosas dos coqueiros,
Ventos da várzea, fontes do deserto! ...
Nunca mais eu virei, pobres violetas,
Vos arrancar das moitas perfumadas,
Nunca mais eu irei risonha e louca
Roubar o ninho do sabiá choroso...
Perdoai-me que eu parto para sempre!
Venderam para longe a pobre Lúcia!..."


Então ela apanhou do mato as flores
Como outrora enlaçou-as nos cabelos,
E rindo de chorar disse em soluços:
"Não te esqueças de mim que te amo tanto..."


Depois além, um grupo, informe e vago,
Que cavalgava o dorso da montanha,
Ia esconder-se, transmontando o topo. . .


Neste momento eu vi, longe... bem longe,
Ainda se agitar um lenço branco...
Era o lencinho tremulo de Lúcia...

 

epílogo


Muitos anos correram depois disto ...
Um dia nos sertões eu caminhava
Por uma estrada agreste e solitária,
Diante de mim ua mulher seguia,
— Co' o cântaro à cabeça — pés descalços,
Co'os ombros nus, mas pálidos e magros ...


Ela cantava, com uma voz extinta,
Uma cantiga triste e compassada ...
E eu que a escutava procurava, embalde,
Uma lembrança juvenil e alegre
Do tempo em que aprendera aqueles versos...
De repente, lembrei-me. . . "Lúcia! Lúcia!"
... A mulher se voltou ... fitou-me pasma,
Soltou um grito. . . e, rindo e soluçando,
Quis para mim lançar-se, abrindo os braços.
... Mas súbito estacou ... Nuvem de sangue
Corou-lhe o rosto pálido e sombrio ...
Cobriu co'a mão crispada a face rubra
Como escondendo uma vergonha eterna ...
Depois, soltando um grito, ela sumiu-se
Entre as sombras da mata ... a pobre Lúcia!
 





Prometeu

 

Ó mon auguste mère, et vous enveloppe de la commune lumière, divin éther, voyez quels injustes tourments on me fait souffrir.
Qui compatit à cette grande souffrance, qui s'approche du rocher désert où se tord Prométhée? Quelques pauvres filles, pieds nus.
ÉSQUILO



Tradução do texto de Ésquilo “´´Ó, minha augusta mãe, envolta em luz universal, éter divino, veja que injustos tormentos me fazem sofrer. / Quem se compadece deste grande sofrimento, quem se aproxinma do rochedo onde se contorce Prometeu? Algumas pobres meninas descalças.”


Inda arrogante e forte, o olhar no sol cravado,
Sublime no sofrer, vencido — não domado,
Na última agonia arqueja Prometeu.
O Cáucaso é seu cepo; é seu sudário o céu,
Como um braço de algoz, que em sangueira se nutre,
Revolve-lhe as entranhas o pescoço do abutre.
Pra as iras lhe sustar... corta o raio a amplidão
E em correntes de luz prende, amarra o Tritão.


Agonia sublime! ... E ninguém nesta hora
Consola aquela dor, naquela angústia chora.
Ai! por cúm'lo de horror!... O Oriente golfa a luz,
No Olímpo brinca o amor por entre os seios nus.
De tirso em punho o bando das lúbricas bacantes,
Correm montanha e val em danças delirantes.
E ao gigante caído... a terra e o céu (rivais!...)
Prantos lascivos dão... suor de bacanais.


Mas não! Quando arquejante em hórrido granito
Se estorce Prometeu, gigantesco precito,
Vós, Nereidas gentis, meigas filhas do mar!
O oceano lhe trazeis... pra em prantos derramar...


Povo! povo infeliz! Povo, mártir eterno,
Tu és do cativeiro o Prometeu moderno...
Enlaça-te no poste a cadeia das Leis,
O pescoço do abutre é o cetro dos maus reis.
Para tais dimensões, pra músculos tão grandes,
Era pequeno o Cáucaso... amarram-te nos Andes.
E enquanto, tu, Titão, sangrento arcas aí,
O século da luz olha... caminha... ri...

 Mas não! mártir divino, Encélado tombado!
Junto ao Calvário teu, por todos desprezado,
A musa do poeta irá — filha do mar —
O oceano de sua alma ... em cantos derramar ...




  Vozes d'África
 
 
                                                Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? 
                                                Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes 
                                                        Embuçado nos céus?
                                                Há dois mil anos te mandei meu grito, 
                                                Que embalde desde então corre o infinito...
                                                        Onde estás, Senhor Deus?...
 
                                                Qual Prometeu tu me amarraste um dia 
                                                Do deserto na rubra penedia
                                                        — Infinito: galé! ...
                                                Por abutre — me deste o sol candente, 
                                                E a terra de Suez — foi a corrente 
                                                        Que me ligaste ao pé...
 
                                                 O cavalo estafado do Beduíno 
                                                 Sob a vergasta tomba ressupino 
                                                        E morre no areal.
                                                Minha garupa sangra, a dor poreja, 
                                                Quando o chicote do simoun dardeja 
                                                        O teu braço eternal.
 
                                                Minhas irmãs são belas, são ditosas... 
                                                Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas 
                                                        Dos haréns do Sultão.
                                                Ou no dorso dos brancos elefantes 
                                                Embala-se coberta de brilhantes 
                                                        Nas plagas do Hindustão.
 
                                                Por tenda tem os cimos do Himalaia... 
                                                Ganges amoroso beija a praia 
                                                        Coberta de corais ...
                                                A brisa de Misora o céu inflama;
                                                E ela dorme nos templos do Deus Brama,
                                                        — Pagodes colossais...
 
                                                A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
                                                A mulher deslumbrante e caprichosa,
                                                        Rainha e cortesã.
                                                Artista — corta o mármor de Carrara; 
                                                Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
                                                        No glorioso afã! ...
 
                                                Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
                                                Ora uma c'roa, ora o barrete frígio 
                                                        Enflora-lhe a cerviz.
                                                Universo após ela — doudo amante 
                                                Segue cativo o passo delirante 
                                                        Da grande meretriz.
 
                                                ....................................
 
                                                Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada 
                                                Em meio das areias esgarrada,
                                                        Perdida marcho em vão!
                                                Se choro... bebe o pranto a areia ardente; 
                                                talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
                                                        Não descubras no chão...
 
                                                E nem tenho uma sombra de floresta... 
                                                Para cobrir-me nem um templo resta 
                                                        No solo abrasador...
                                                Quando subo às Pirâmides do Egito 
                                                Embalde aos quatro céus chorando grito:
                                                        "Abriga-me, Senhor!..."
 
                                                Como o profeta em cinza a fronte envolve, 
                                                Velo a cabeça no areal que volve 
                                                        O siroco feroz...
                                                Quando eu passo no Saara amortalhada... 
                                                Ai! dizem: "Lá vai África embuçada 
                                                        No seu branco albornoz. . . "
 
                                                Nem vêem que o deserto é meu sudário, 
                                                Que o silêncio campeia solitário 
                                                        Por sobre o peito meu.
                                                Lá no solo onde o cardo apenas medra 
                                                Boceja a Esfinge colossal de pedra 
                                                        Fitando o morno céu.
 
                                                De Tebas nas colunas derrocadas 
                                                As cegonhas espiam debruçadas 
                                                        O horizonte sem fim ... 
                                                Onde branqueia a caravana errante, 
                                                E o camelo monótono, arquejante 
                                                        Que desce de Efraim
 
                                                .......................................
 
                                                Não basta inda de dor, ó Deus terrível?! 
                                                É, pois, teu peito eterno, inexaurível
                                                        De vingança e rancor?... 
                                                E que é que fiz, Senhor? que torvo crime 
                                                Eu cometi jamais que assim me oprime 
                                                        Teu gládio vingador?!
 
                                                ........................................
 
                                                Foi depois do dilúvio... um viadante, 
                                                Negro, sombrio, pálido, arquejante,
                                                        Descia do Arará...
                                                E eu disse ao peregrino fulminado:
                                                "Cam! ... serás meu esposo bem-amado...
                                                        — Serei tua Eloá. . . "
 
                                                Desde este dia o vento da desgraça 
                                                Por meus cabelos ululando passa 
                                                        O anátema cruel.
                                                As tribos erram do areal nas vagas, 
                                                E o nômade faminto corta as plagas 
                                                        No rápido corcel.
 
                                                Vi a ciência desertar do Egito... 
                                                Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
                                                        Trilho de perdição.
                                                Depois vi minha prole desgraçada 
                                                Pelas garras d'Europa — arrebatada —
                                                        Amestrado falcão! ...
 
                                                Cristo! embalde morreste sobre um monte 
                                                Teu sangue não lavou de minha fronte 
                                                        A mancha original.
                                                Ainda hoje são, por fado adverso, 
                                                Meus filhos — alimária do universo,
                                                        Eu — pasto universal...
 
                                                Hoje em meu sangue a América se nutre 
                                                Condor que transformara-se em abutre,
                                                        Ave da escravidão,
                                                Ela juntou-se às mais... irmã traidora 
                                                Qual de José os vis irmãos outrora 
                                                        Venderam seu irmão.
 
                                                Basta, Senhor!  De teu potente braço 
                                                Role através dos astros e do espaço 
                                                        Perdão p'ra os crimes meus! 
                                                Há dois mil anos eu soluço um grito...
                                                escuta o brado meu lá no infinito,
                                                        Meu Deus!  Senhor, meu Deus!!...
 
 
                                                                                                                                               
            O poema adota como sujeito lírico a própria África,constituindo uma grande prosopopéia. Esse recurso estilístico transmite forte intensidade dramática ao texto,pois é o continente africano que se dirige a Deus, clamando por justiça. Esse clamor é feito em tom elevado, grandiloquente – note que se aproxima muito do tom de um discurso ( pense, por exemplo, nos sermões do padre Vieira – um deles, aliás, parte de uma passagem  bíblica que lembra o início do texto acima: “Levanta-te! Por que dormes, Senhor?”).
            O desdobramento do poema também obedece a um esquema próximo ao da disposição recomendada pela oratória. Após invocar Deus com as belas imagens da primeira estrofe, o continente africano caracteriza a si mesmo como um novo Prometeu ( na mitologia clássica, era o titã que, por ter revelado aos homens o segredo do fogo, fora condenado pelos deuses a ter seu fígado eternamente devorado por um abutre), açoitado pelos ventos do deserto ( segunda e terceira estrofes). Segue-se a comparação com as “irmãs Ásia e Europa, apresentadas em imagens de conforto e beleza. Depois, o sujeito lírico volta a concentrar-se sobre si mesmo, expondo todas a injustiças de que é vítima: a formação desértica, a maldição que psa sobre a descendência de Cão (um dos três filhos de Noé. Segundo a Bíblia, deu origem aos camitas, antepassados da raça negra. Seu descendente Canaã foi amaldiçoado por Noé – dessa maldição se tirou durante muito tempo a justificativa para a escravização dos negros.), a traição da América. Na última estrofe, novo apelo a Deus, dessa vez para que ponha fim ao flagelo da escravidão. Note, assim, que o texto apresenta um tema, procura prová-lo pela exposição de dados e fatos e volta a afirmá-lo ao supor que a prova está completa.
            O tratamento dado ao poema resulta de um projeto claro: fazer da poesia uma forma de combate social, adequando-a à transmissão de idéias humanitárias. No texto, o tema é a escravidão negra, vista como um flagelo que se abate sobre o continente africano. O tom exaltado e grandiloquente evidencia sua finalidade declamatória: observe que são bastante frequentes as palavras muito sonoras ou exóticas ( ressupino, voluptuosas, meretriz, derrocadas, simoun, Hindustão, Misora...) e as enumerações comparativas ( normalmente introduzidas por um travessão), recursos muito usados na oratória.
            Esses recursos buscam produzir certo encantamento, capaz de seduzir e prender o ouvido pela opulência verbal. Veja que o conteúdo do texto não pode ser submetido a uma análise lógica muito rigorosa: afinal, a África não é formada unicamente por desertos ( o poema chega a afirmar que ela não tem “uma sombra de floresta...”); a Ásia já sofria, no século passado, as mazelas da colonização européia; a Europa conhecia movimentos sociais intensos, em que massas de miseráveis reivindicavam melhores condições de existência. O texto, no entanto, não se preocupa com a precisão de suas afirmações, pois pretende contagiar pelo entusiasmo. Dessa forma, o que interessa é a grandiosidade verbal, o efeito retórico ( semelhante ao que podemos perceber no discurso de muitos candidatos em épocas de eleição...). A poesia condoreira apropria-se de técinas e procedimentos típicos da oratória para divulgar e discutir problemas sociais. Esse contato com a oratória fez com que boa parte da produção dos poetas condoreiros descambasse para uma verborragia ocamente grandiosa. Em ‘Vozes d’África” percebe-se que algumas passagens são excessivas, fugindo ao que seria essencial. Em alguns casos, a pompa verbal é tanta que o problema social abordado acaba colocado em segundo plano...



Saudação a Palmares


Nos altos cerros erguido
Ninho d'águias atrevido,
Salve! — País do bandido!
Salve! — Pátria do jaguar!
Verde serra onde os palmares
— Como indianos cocares —
No azul dos colúmbios ares
Desfraldam-se em mole arfar! ...


Salve! Região dos valentes
Onde os ecos estridentes
Mandam aos plainos trementes
Os gritos do caçador!
E ao longe os latidos soam...
E as trompas da caça atroam...
E os corvos negros revoam
Sobre o campo abrasador! ...


Palmares! a ti meu grito!
A ti, barca de granito,
Que no soçobro infinito
Abriste a vela ao trovão.
E provocaste a rajada,
Solta a flâmula agitada
Aos uivos da marujada
Nas ondas da escravidão!


De bravos soberbo estádio,
Das liberdades paládio,
Pegaste o punho do gládio,
E olhaste rindo pra o val:
"Descei de cada horizonte...
Senhores! Eis-me de fronte!"
E riste... O riso de um monte!
E a ironia... de um chacal!...


Cantem Eunucos devassos
Dos reis os marmóreos paços;
E beijem os férreos laços,
Que não ousam sacudir ...
Eu canto a beleza tua,
Caçadora seminua!...
Em cuja perna flutua
Ruiva a pele de um tapir.


Crioula! o teu seio escuro
Nunca deste ao beijo impuro!
Luzidio, firme, duro,
Guardaste pra um nobre amor.
Negra Diana selvagem,
Que escutas sob a ramagem
As vozes — que traz a aragem
Do teu rijo caçador! ...


Salve, Amazona guerreira!
Que nas rochas da clareira,
— Aos urros da cachoeira —
Sabes bater e lutar...
Salve! — nos cerros erguido —
Ninho, onde em sono atrevido,
Dorme o condor... e o bandido!...
A liberdade... e o jaguar!




Análise


Ao analisar um poema consideram-se cinco estratos. São eles: estrato gráfico, fônico, lexical, sintático e semântico.






Estrato Gráfico


Em uma análise de poema, a primeira observação é quanto à sua configuração gráfica. O título é o que analisamos de imediato, pois engloba espacialmente as demais partes do poema. Pode-se dizer que a intenção do título é chamar a atenção do leitor. Está relacionado ao conteúdo sugerido pelo poema. “Saudação a Palmares” remete ao maior quilombo que existiu no Brasil. Através do léxico “saudação”, é expressado uma exaltação à liberdade almejada pelos escravos. É um poema solidário à memória do famoso Quilombo dos Palmares - símbolo da resistência escrava - localizado em Alagoas e destruído em 1695. O poeta ressalta a coragem dos quilombolas, entre outras qualidades, quando estes enfrentavam os capitães do mato.


Nesse estrato, é preciso observar ainda, a divisão estrófica. São sete estrofes compostas por oito versos cada. Ao longo do poema aparecem travessões que quebram a estrutura linear do discurso e indicam sobreposição de idéias e sentimentos, sugerindo um livre fluxo da consciência. Temos um exemplo no terceiro verso da sétima estrofe “– Aos urros da cachoeira –“, através deste travessão ocorre a quebra da idéia expressada nos versos antecedentes e, ao mesmo tempo, enfatiza o caráter guerreiro da busca pela liberdade (urros). A natureza (cachoeira) representa o cenário da luta pela liberdade.


É recorrente também a utilização das reticências. Estas, por sua vez, sugerem uma continuidade da idéia já expressa, cabendo ao leitor finalizar essa idéia conforme seu entendimento no decorrer do poema. Como nos exemplos transcritos dos últimos versos da última estrofe “Ninho, onde em sono atrevido, / Dorme o condor... e o bandido!... / A liberdade... e o jaguar!”. Neste trecho o autor fala que dorme o condor, que nesse caso é uma metáfora do eu-lírico, comum à obra de Castro Alves, e com o uso das reticências, deixa implícito a conseqüência desse ato – fazer a crítica através do poema não elimina e nem ameniza o sofrimentos dos escravos. Já no que se refere ao bandido (senhores de escravos), a exclamação seguida de reticências indicam uma indignação maior, uma vez que estes são os que provocam a exploração. Na última estrofe, as reticências representam a resistência ao regime escravocrata e a idealização da conquista da liberdade através da fuga para o quilombo.


Vale ressaltar aqui também, a ocorrência das aspas uma única vez no verso quinto da quarta estrofe “Descei de cada horizonte... / Senhores! Eis-me de fronte!”. Nesse caso, as aspas indicam o distanciamento do eu-lírico que o utiliza uma outra voz para transmitir sua mensagem, ou seja, é a inserção do discurso direto. Assim, dá uma maior veracidade à representação intencionada (ressaltar a coragem dos quilombolas).






Estrato Fônico


O estudo da versificação consiste na observação do ritmo da repetição e das figuras de som (rimas).


Cada estrofe contém oito versos e estes, porém, são divididos aleatoriamente em redondilha maior e em versos octassílabos. A rima é emparelhada (aaa – ccc) e interpolada (b...b) em todas estrofes. As rimas são, em sua maioria, graves; com algumas exceções, em que são esdrúxulas.





Estrato Lexical


Neste estrato é necessária a verificação de metaplasmos e de escolhas lexicais. No primeiro caso, encontramos a apócope (eliminação de um elemento no final da palavra) que pode ser vista no segundo verso da primeira estrofe “Ninho d´águias atrevido”. No quarto verso da quarta estrofe e no quarto verso da sexta estrofe, há a síncope (eliminação de um elemento no interior da palavra) “E olhaste rindo p´ra o val” e “Guardaste p´ra um nobre amor”; em ambos os exemplos há a eliminação da vogal a.


Na escolha lexical há o predomínio dos adjetivos, que enfatiza sua descrição. O autor optou por um vocabulário rebuscado, obtendo assim uma linguagem retórica e um estilo muito elevado.






Estrato Sintático


Aqui, ocorrem certos desvios no que se refere à forma da frase, visando às relações sintagmáticas entre palavras. Repete, ao longo do poema, a exclamação “Salve!” como forma de exaltar sua admiração pelo país, mas também explicita seu desejo de mudança.


Observa-se a digressão, expressada graficamente por travessões, como já foi citado no estrato gráfico. Ocorre o polissíndeto (uso de sinais de coordenação) dando uma continuidade nas idéias, como no exemplo da segunda estrofe “E ao longe os latidos soam... / E as trompas da caça atroam... / E os corvos negros revoam...”.


Algumas vezes, aparece a elipse que consiste na omissão do sujeito, do artigo, do verbo ou objeto: “Nos altos cerros erguido / Ninho d´águias atrevido”. Neste trecho ocorre a omissão do verbo ter ou haver, ficando subentendido e, por fim, conferindo rapidez e concisão ao discurso. A reticência que foi exemplificada anteriormente no estrato gráfico, caracteriza-se também como uma figura de estilo referente à incompletude da frase pela omissão voluntária de algo que se poderia ou deveria dizer.


Uma das figuras de estilo mais abundante no decorrer do poema é o hipérbato, definido como inversão da posição natural dos sintagmas na frase chamando a atenção para o texto e criando um efeito de estranhamento que denuncia a função poética da linguagem, por exemplo “Verdes serras onde os palmares / - como indianos cocares - / No azul dos colúmbios ares / Desfraldam-se em mole arfar”. Na ordem direta ficaria “ Verdes serras onde os palmares / - como indianos cocares - / Desfraldam-se em mole arfar / No azul dos colúmbios ares”.


A apóstrofe é muito recorrente, geralmente acompanhada pela exclamação, é uma interpelação direta que expressa uma emoção viva e profunda, ao mesmo tempo que amplia e enfatiza o significado dos conceitos.






Estrato Semântico


Sem dúvida, o nível mais importante da análise poemática é o semântico. Tem a finalidade de captar a significação ou as possíveis significações.


O poema inicia apresentando o Quilombo dos Palmares por meio de saudações. Em seguida retrata a vida dentro dos quilombos, mostrando a apreensão em que eles viviam enquanto sentiam a presença constante da ameaça. Ao mesmo tempo reverenciam o lugar através de uma linguagem figurada. Estas, indicam que a criação do quilombo foi uma alternativa para a escravidão. O quilombo garantia uma segurança, atribuindo aos escravos sentimentos de força, poder e coragem que o permitiam sentirem-se superiores aos senhores enquanto estavam na região dos quilombos. O texto combate o mito da passividade e da submissão do escravo frente ao senhor branco.


Após isso, o eu-lírico descreve a beleza da mulher negra. Há a exaltação de sua coragem e faz uma referência à deusa Diana, deusa da caça da mitologia Romana onde ele saúda sua força e sua qualidade de caçadora protegendo o Palmares dos caçadores.


De modo geral, essa poesia social é uma forma de expressar as mudanças político-sociais da época. Faz isso adotando imagens grandiosas através da hipérbole e das metáforas. Assim, percebe-se a referência ao quilombo como uma grande conquista dos escravos e evidencia um soberbo elogio à revolta negra uma vez que ressalta os atributos positivos presente nos africanos revoltos.


Dessa forma, Castro Alves concebe a poesia como sendo, também, um engajamento social, sendo, aí, o poeta uma espécie de porta-voz dos anseios coletivos daí, o tom grandiloqüente de sua poesia de caráter social. Por fim, convém ressaltar que isso trata-se de algo comum ao Romantismo, a uma época em que a cisão entre consciência individual e consciência coletiva (cisão, esta, advinda da estruturação mais complexa e segmentada de uma sociedade de classes), embora o houvesse, era, ainda, algo discreta.









O derradeiro amor de Byron

 

Ét, puisque tôt ou tard l'amour huntain s'oublie,
Il est d'une grande âme et d'un heureux destin?
D'aspirer comme toi pour un amour divin!
ALFRED DE MUSSET


I
 

Num desses dias em que o Lord errante
Resvalando em coxins de seda mole...
A laureada e pálida cabeça
Sentia-lhe embalar essa condessa,
Essa lânguida e bela Guiccioli ...



II


Nesse tempo feliz... em que Ravena
Via cruzar o Child peregrino,
Dos templos ermos pelo claustro frio...
Ou longas horas meditar sombrio
No túmulo de Dante — o Gibelino...



III


Quando aquela mão régia de Madona
Tomava aos ombros essa cruz insana...
E do Giaour o lúgubre segredo,
E esse crime indizível do Manfredo
Madornavam aos pés da Italiana ...



IV


Numa dessas manhãs... Enquanto a moça
Sorrindo-lhe dos beijos ao ressábio,
Cantava como uma ave ou uma criança...
Ela sentiu que um riso de esperança
Abria-lhe do amante lábio a lábio...



V


A esperança! A esperança no precito!
A esperança nesta alma agonizante!
E mais lívida e branca do que a cera
Ela disse a tremer: — "George, eu quisera
Saber qual seja... a vossa nova amante".



VI


— "Como o sabes?. . . " — "Confessas?" — "Sim! confesso. . . "
— "E o seu nome. . . " — "Qu'importa?" — "Fala Alteza!. . . "
— "Que chama douda teu olhar espalha,
És ciumenta?. . . " - "Mylord, eu sou de Itália!"
— "Vingativa?. . . " - "Mylord, eu sou Princesa!. . . "



VII


— "Queres saber então qual seja o arcanjo
Que inda vem m'enlevar o ser corruto?
O sonho que os cadáveres renova,
O amor que o Lázaro arrancou da cova
O ideal de Satã?. . . " — "Eu vos escuto!"



VIII


— "Olhai, Signora... além dessas cortinas,
O que vedes?. . . " — "Eu vejo a imensidade!. . . "
- "E eu vejo. .. a Grécia... e sobre a plaga errante
Uma virgem chorando..." — "É vossa amante?..."
— "Tu disseste-o, Condessa!" É a Liberdade!!!. . ."
 


 


Adeus, meu canto

 

I


Adeus, meu canto! É a hora da partida...
O oceano do povo s'encapela.
Filho da tempestade, irmão do raio,
Lança teu grito ao vento da procela.


O inverno envolto em mantos de geada
Cresta a rosa de amor que além se erguera...
Ave de arribação, voa, anuncia
Da liberdade a santa primavera.


É preciso partir, aos horizontes
Mandar o grito errante da vedeta.
Ergue-te, ó luz! — estrela para o povo,
— Para os tiranos — lúgubre cometa.


Adeus, meu canto! Na revolta praça
Ruge o clarim tremendo da batalha.
Águia — talvez as asas te espedacem,
Bandeira — talvez rasgue-te a metralha.


Mas não importa a ti, que no banquete
O manto sibarita não trajaste —,
Que se louros não tens na altiva fronte
Também da orgia a coroa renegaste.


A ti que herdeiro duma raça livre
Tomaste o velho arnês e a cota d'armas;
E no ginete que escarvava os vales
A corneta esperaste dos alarmas.


É tempo agora pra quem sonha a glória
E a luta... e a luta, essa fatal fornalha,
Onde referve o bronze das estátuas,
Que a mão dos sec'los no futuro talha ...


Parte, pois, solta livre aos quatro ventos
A alma cheia das crenças do poeta!...
Ergue-te ó luz! — estrela para o povo,
Para os tiranos — lúgubre cometa.


Há muita virgem que ao prostíbulo impuro
A mão do algoz arrasta pela trança;
Muita cabeça d'ancião curvada,
Muito riso afogado de criança.


Dirás à virgem: — Minha irmã, espera:
Eu vejo ao longe a pomba do futuro.
— Meu pai, dirás ao velho, dá-me o fardo
Que atropela-te o passo mal seguro ...


A cada berço levarás a crença.
A cada campa levarás o pranto.
Nos berços nus, nas sepulturas rasas,
— Irmão do pobre — viverás, meu canto.


E pendido através de dois abismos,
Com os pés na terra e a fronte no infinito,
Traze a bênção de Deus ao cativeiro,
Levanta a Deus do cativeiro o grito!

 
II


Eu sei que ao longe na praça,
Ferve a onda popular,
Que às vezes é pelourinho,
Mas poucas vezes — altar.
Que zombam do bardo atento,
Curvo aos murmúrios do vento
Nas florestas do existir,
Que babam fel e ironia
Sobre o ovo da utopia
Que guarda a ave do porvir.


Eu sei que o ódio, o egoísmo,
A hipocrisia, a ambição,
Almas escuras de grutas,
Onde não desce um clarão,
Peitos surdos às conquistas,
Olhos fechados às vistas,
Vistas fechadas à luz,
Do poeta solitário
Lançam pedras ao calvário,
Lançam blasfêmias à cruz.


Eu sei que a raça impudente
Do escriba, do fariseu,
Que ao Cristo eleva o patíbulo,
A fogueira a Galileu,
É o fumo da chama vasta,
Sombra — que o século arrasta,
Negra, torcida, a seus pés;
Tronco enraizado no inferno,
Que se arqueia escuro, eterno,
Das idades através.


E eles dizem, reclinados
Nos festins de Baltasar:
"Que importuno é esse que canta
Lá no Eufrate a soluçar?
Prende aos ramos do salgueiro
A lira do cativeiro,
Profeta da maldição,
Ou cingindo a augusta fronte
Com as rosas d'Anacreonte
Canta o amor e a criação. . ."


Sim! cantar o campo, as selvas,
As tardes, a sombra, a luz;
Soltar su'alma com o bando
Das borboletas azuis;
Ouvir o vento que geme,
Sentir a folha que treme,
Como um seio que pulou,
Das matas entre os desvios,
Passar nos antros bravios
Por onde o jaguar passou;


É belo... E já quantas vezes
Não saudei a terra — o céu,
E o Universo — Bíblia imensa
Que Deus no espaço escreveu?1
Que vezes nas cordilheiras,
Ao canto das cachoeiras,
Eu lancei minha canção,
Escutando as ventanias
Vagas, tristes profecias
Gemerem na escuridão?! ...


Já também amei as flores,
As mulheres, o arrebol,
E o sino que chora triste,
Ao morno calor do sol.
Ouvi saudoso a viola,
Que ao sertanejo consola,
Junto à fogueira do lar,
Amei a linda serrana,
Cantando a mole tirana,
Pelas noites de luar!


Da infância o tempo fugindo
Tudo mudou-se em redor.
Um dia passa em minha'alma
Das cidades o rumor.
Soa a idéia, soa o malho,
O ciclope do trabalho
Prepara o raio do sol.
Tem o povo — mar violento —
Por armas o pensamento,
A verdade por farol.


E o homem, vaga que nasce
No oceano popular,
Tem que impelir os espíritos,
Tem uma plaga a buscar
Oh! maldição ao poeta
Que foge — falso profeta —
Nos dias de provação!
Que mistura o tosco iambo
Com o tírio ditirambo
Nos poemas d'aflição! ...


"Trabalhar!" brada na sombra
A voz imensa, de Deus —
"Braços! voltai-vos pra terra,
Frontes voltai-vos pros céus!"


Poeta, sábio, selvagem,
Vós sois a santa equipagem
Da nau da civilização!
Marinheiro, — sobe aos mastros,
Piloto, — estuda nos astros,
Gajeiro, — olha a cerração!"


Uivava a negra tormenta
Na enxárcia, nos mastaréus.
Uivavam nos tombadilhos,
Gritos insontes de réus.
Vi a equipagem medrosa
Da morte à vaga horrorosa
Seu próprio irmão sacudir.
E bradei: — "Meu canto, voa,
Terra ao longe! terra à proa! ...
Vejo a terra do porvir!. . . "

 

III


Companheiro da noite mal dormida,
Que a mocidade vela sonhadora,
Primeira folha d'árvore da vida.
Estrela que anuncia a luz da aurora,
Da harpa do meu amor nota perdida,
Orvalho que do seio se evapora,
É tempo de partir... Voa, meu canto, —
Que tantas vezes orvalhei de pranto.


Tu foste a estrela vésper que alumia
Aos pastores d'Arcádia nos fraguedos!
Ave que no meu peito se aquecia
Ao murmúrio talvez dos meus segredos.
Mas hoje que sinistra ventania
Muge nas selvas, ruge nos rochedos,
Condor sem rumo, errante, que esvoaça,
Deixo-te entregue ao vento da desgraça.


Quero-te assim; na terra o teu fadário
É ser o irmão do escravo que trabalha,
É chorar junto à cruz do seu calvário,
É bramir do senhor na bacanália...
Se — vivo — seguirás o itinerário,
Mas, se — morto — rolares na mortalha,
Terás, selvagem filho da floresta,
Nos raios e trovões hinos de festa.


Quando a piedosa, errante caravana,
Se perde nos desertos, peregrina,
Buscando na cidade muçulmana,
Do sepulcro de Deus a vasta ruína,
Olha o sol que se esconde na savana
Pensa em Jerusalém, sempre divina,
Morre feliz, deixando sobre a estrada
O marco miliário duma ossada.


Assim, quando essa turba horripilante,
Hipócrita sem fé, bacante impura,
Possa curvar-te a fronte de gigante,
Possa quebrar-te as malhas da armadura,
Tu deixarás na liça o férreo guante
Que há de colher a geração futura...
Mas, não... crê no porvir, na mocidade,
Sol brilhante do céu da liberdade.


Canta, filho da luz da zona ardente,
Destes cerros soberbos, altanados!
Emboca a tuba lúgubre, estridente,
Em que aprendeste a rebramir teus brados.
Levanta das orgias — o presente,
Levanta dos sepulcros — o passado,
Voz de ferro! desperta as almas grandes
Do sul ao norte... do oceano aos Andes!!...




A   CACHOEIRA  DE  PAULO   AFONSO
Em A Cachoeira..., poema composto de 33 peças que se lêem também como independentes, com medidas, ritmos e tamanhos diversificados, somando ao todo 1.271 versos, traz epígrafe de H. Heine, em francês. Apresentamo-la, aqui, em tradução de Marisa Lajolo e Samira Campedelli:
«Não sei realmente se terei merecido que um dia depositem uma coroa de louros sobre o meu caixão. A poesia, seja qual for o meu amor por ela, sempre foi para mim apenas um meio consagrado a um fim santo. Jamais atribuí um grande preço à glória de meus poemas e pouco me importa que os elogiem ou critiquem. Mas será uma espada que devereis colocar sobre meu túmulo, pois fui um bravo soldado na guerra de libertação da humanidade.» (4)
Concordo com Marisa Lajolo e Samira Campedelli, no seu livro «Castro Alves», quando afirmam que a epígrafe de Castro Alves define muito bem o objetivo da obra. Só acrescentaria que a finalidade das epígrafes talvez seja captar as subliminaridades do autor, e as de Castro Alves nunca foram tão estudadas quanto merecem. Ele gostava muito de usá-las e em Espumas Flutuantes, 1870, seu único livro publicado em vida, usa-as em 25 dos 54 poemas, sendo que 4 deles - «Mocidade e Morte», «Sub Tegmine Fagi», «Aves de Arribação» e «É Tarde» - são duplamente epigrafados. Num cômputo geral, daria epígrafes para mais da metade dos poemas do livro.


3. Características do estilo dramático



Assim, sem favor, Castro Alves pôde repetir com Heine, ««j ai été un brave soldat dans la guerre de délivrance de l humanité», fazendo de sua poesia uma arma contra a escravidão negra. Mas não somente isto: também de libertação dos sentimentos e das angústias, na guerra pela humanização do homem brasileiro. Saliente-se que, embora o «Poeta dos Escravos» não fizesse poesia pela poesia, conseguiu elevar-se tão alto na forma quanto aqueles que mais alto se elevaram no seu tempo e até para além de sua época, pois conseguiu antecipações próprias dos grandes criadores. De romântico da última fase, tende para a poesia realista, especialmente em A Cachoeira... como que anunciando a nova escola. E é concretista cem anos antes, em «O Baile na Flor», que se apresenta qual uma flor em botão, e no «Despertar para Morrer», cujos versos figuram as quedas d água da cachoeira. Nada de assombrar, pois, como profere Eugênio Gomes, «a imaginação criadora de Castro Alves correspondia inteiramente à que T. Ribot qualifica de plástica, imaginação exterior, na qual costumam prevalecer as associações de caráter objetivo, tornando-se por isso mesmo mais atenta às coisas do espaço visível.» (5)
Não estão aí, por acaso, características do estilo dramático?
Chamamos a atenção dos críticos e dos teatrólogos para outros aspectos dos versos de Antônio Frederico de Castro Alves, pois o tom declamatório, inflamado, em si, já é um aspecto da dramaticidade, pensando abrangentemente com Emil Staiger que «qualquer obra poética participa de todos os gêneros, do mesmo modo que qualquer comunicação linguística, por mais primitiva que seja, envolve toda a índole da língua, ou pelo menos baseia-se nela». (6)
Na verdade, quase não há poema de Castro Alves em que não se note seu desejo, sua vontade de falar com alguém, mesmo que seja uma simples invocação. Não se encontra praticamente o poeta falando consigo mesmo, qual sucede aos demais líricos. Sua arte não era apenas para ser lida, silenciosamente. É quase sempre dramática ou heróica, quando não trágica. E é isto que o torna mais comunicativo, popular e amado. No poema A Cachoeira..., sob a capa de uma lírica da natureza, da descrição das matas, duma exaltação da cascata de Paulo Afonso e do São Francisco, acrescida da sua tônica de defesa dos escravos, há um drama que termina em tragédia, onde é revelado o amor de Lucas por Maria, ambos escravos.
Outra observação de Emil Staiger, nos Conceitos Fundamentais da Poética, pertinente para nosso estudo: «O céu azul sobre a cena ou a arquitetura pomposa são os únicos a adaptarem-se ao estilo patético de um Sófocles ou de um Corneille. Somente em espaços assim abertos e livres o autor ousaria captar acontecimentos ao mesmo tempo simples e de grande força, que conseguiram empolgar todo um povo ou toda uma sociedade.» (7)


4. Outras características de “A Cachoeira...”



Neste particular, A Cachoeira... segue bem a lição dos clássicos, consideradas as suas adaptações românticas de construção e ritmo, como veremos na análise e nas citações que a acompanham.
«A Tarde» é um poema soberbo. São 7 estrofes decassílabas, camonianas, refertas de beleza estética, com predominância da personificação ou prosopopéia («a tarde se debruça, lá da crista das serras mais remotas», «o canto da araponga acorda os ecos...», «cardos rumorejam como um abrir de bocas inspiradas»). O poeta, como sempre, exagera: «E a pedra... a flor... as selvas... os condores / Gaguejam... falam... cantam... seus amores.»
No capítulo das metáforas («a hora meiga da tarde», transforma-se em donzela», «estrela em gota de banho», construindo uma das mais singulares, naquele verso já citado por muitos críticos: «as tranças mulheris da granadilha».
«A Tarde» é o intróito, mas esse preâmbulo se estende até o poema «A Senzala», apresentando o espaço, o tempo, seus dois heróis e mais alguns personagens inspirados em coisas da natureza e fatos da cultura. Em determinado momento, Lucas dirige-se à cabana da noiva e não na encontrando, pressente uma desgraça. Já antes, o poema «Na Margem» traz falas de Maria com sua canoa: Voga, minha canoa! Voga ao largo! / Deixa a praia onde a vaga morde os juncos, / Como na mata os caitetus bravios... Mas, de repente, para finalizar, o poeta destaca duas estrofes:
«Tu guardas algum segredo?...
Maria, estais a chorar!
Onde vais? Por que assim foges
Rio abaixo a deslizar?

Pedra, não tens o teu musgo?
Não tens um favônio - flor?
Estrela - não tens um lago?
Mulher - não tens um amor?»
Seria, me parece, a voz da canoa, objeto que aqui adquire status de personagem, visto que o ritmo do poema cai do decassílabo para a redondilha maior, nas duas quadras finais, como acabamos de sentir.
O poema «A Senzala», descritivo, lírico, mimoso mesmo, como aquelas toadas do sertão, apresenta o lenhador, que - para a cabana da gentil Maria / com que alegria a suspirar marchou, - personagem que é o próprio Lucas, - e segue a mesma marcha decassílaba, o mesmo diapasão: Aqui n aurora, abandonando os ninhos, / Os passarinhos vêm pedir-lhe pão; / Pousam-lhe alegres nos cabelos bastos, / Nos seios castos, na pequena mão. Também, nos versos finais, o poeta muda de ritmo e rumo, anunciando a entrada em cena do narrador: Eis o painel encantado, / Que eu quis pintar mas não pude.../ Lucas melhor o traçara / Na canção suave e rude...
Primeiro, Lucas entristece por causa do mau pressentimento; adiante, alegra-se vendo o lar do seu amor... Depois, avista Maria vogando numa canoa, rio abaixo. É uma canoa - ninho, depois «a canoa encantada», que ganha uma poema só para si. Descendo o rio, a canoa-ninho é símile sonora e perfeita, no final do poema «Diálogo dos Ecos» - texto de grande movimento e dramaticidade. É aqui que o poeta cria um interlocutor, quase no campo das ideações, do subjetivo: o eco. Começa, então, no oitavo poema um princípio de ação - é o desenvolvimento. «Diálogo dos Ecos» é longo, por isto dele apresentamos pequena mostra:
E rugiu: «Vingança! guerra!
Pela flor, que me deixaste,
Pela cruz, em que rezaste,
E que teus prantos encerra!
Eu juro guerra de morte
A quem feriu desta sorte
O anjo puro da terra...
Vê como este braço é forte!
Vê como é rijo este ferro!
Meu golpe é certo... não erro.
Onde há sangue, sangue escorre!...
Vilão! Deste ferro e braço,
Nem a terra nem o espaço,
Nem mesmo Deus te socorre!!...»

E o eco responde: «Corre!»

Como o cão ele em torno o ar aspira,
Depois se orientou;
Fareja as ervas... descobriu a pista
E rápido marchou.
.......................................................
No entanto sobre as águas, que cintilam,
Como o dorso de enorme crocodilo,
Já manso e manso escoa-se a canoa;
Parecia assim vista - ao sol poente -
Esses ninhos, que o vento lança às águas,
E que na enchente vão boiando à toa!...
Lucas que era o lenhador, agora nada: - É «o nadador» que se arroja ao rio, em busca de sua noiva. O poeta mostra-o no meio das águas furiosas, como um bravo e heróico defensor da vida, inocência e pureza de Maria:
Tremeste? Não, qu importa-te
Da correnteza o estrídulo?
Se ao longe vês teu ídolo,
Ao longe irás também...
Salta à garupa úmida
Deste corcel titânico...
Novo Mazeppa oceânico -
Além! além! além!...
Surpreendente para a época, aqui o poeta inaugura uma série de rimas com palavras esdrúxulas, acrescentando força incomum à ação. Há como que um casamento perfeito entre o movimento do personagem e o acento gramatical das palavras.
Lucas tenta consolar Maria e convencê-la a contar-lhe o segredo. Ela responde transtornada. Acontece, «No Barco», um idílio muito triste: - Lucas! - Maria! murmuraram juntos.../ E a moça em pranto lhe caiu nos braços. (...) «Maria, fala!» - «Que acordar sombrio / Murmura a triste com um sorriso louco (...) Deixa-me! Deixa-me a vagar perdida... / Tu! - parte! Volve para os lares teus. / Nada perguntes... é um segredo horrível.../ Eu te amo ainda... mas agora - adeus!»


5. Unidade e dramaticidade do poema


O poema precisa de muitas leituras. Há nele interferências líricas como o «O Baile na Flor» e o «Crepúsculo Sertanejo», e até uma «Tirana» cantada por Lucas. Mas boa parte de suas peças possuem liames como as árvores na floresta, entre as quais citaremos algumas: 1 - A palavra «adeus» é final de «No Barco» e começo do poema «Adeus», que vem em seguida; 2 - «História de um Crime», «Último Abraço», «Mãe Penitente» e «Segredo», onde há continuidade narrativa, inclusive dois pontos no fim do primeiro, por confirmação; 3 - «Mudo e Quedo», poema que se segue a «Adeus», começa assim: E calado ficou... 4 - além do já falado «mas» que inicia «A Cachoeira», ligando-o evidentemente a «O São Francisco».
Sim, A Cachoeira... precisa de leituras objetivas, críticas e poéticas. Os teatrólogos também devem dele se aproximar, em busca de sua força dramática. É possível que, na mão de um bom diretor, se torne o maior espetáculo do gênero romântico, tendo por fundo o Brasil e sua cultura, sua poesia e sua história, sua raça e sua gente, sua língua e sua literatura.
Talvez ao acaso, embora sentindo inicialmente o poema como descritivo, logo as professoras Lajolo e Campedelli compreenderam a força da dramaticidade de A Cachoeira... e anotaram: «Como que acompanhando o aumento da tensão dramática do primeiro para o último poema, a paisagem vai progressivamente escurecendo, de forma que o cenário da morte coincide com a escuridão noturna, em belíssimo contraste com a brancura das espumas da cachoeira.» (8)
Para compreender melhor a citação de Lajolo e Campedelli, é preciso saber um pouco do poema «Loucura Divina». Ele está depois de «Despertar para o Morrer» e antes de «À Beira do Abismo e do Infinito» cuja trindade de poemas forma o desfecho de A Cachoeira...:
- «Não vês os panos d água como alvejam
Nos penedos? Que gélido sudário
O rio nos talhou!»
- «Veste-me o cetim branco do noivado...
Roupas alvas de prata... alventes dobras...
Veste-me!... Eu aqui estou!»
.................................................................
«As estrelas palpitam! - São as tochas!
Os rochedos murmuram!... - São os monges!
Reza um órgão nos céus!
Que incenso! - Os rolos que do abismo voam!
Que turíbulo enorme - Paulo Afonso!
Que sacerdote! - Deus...»




6. Imagética da natureza no drama de Castro Alves



Sem dúvida, A Cachoeira... é literatura romântica da melhor. Seus poemas avançam no espaço e no tempo. São considerados modernos, hoje, desde que colocados diante da definição de Ezra Pound: «Literatura é linguagem carregada de significado» e «grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível.» (9)
Poesia assim, cheia de visões e vozes, de silêncio e música, de rumores quase divinais, mas também de gritos e imprecações, chama a atenção do leitor mais desatento. As imagens mentais se superpõem, as cores se entrecruzam, a música é polifônica. Claro que antíteses, paradoxos, hipérboles, pleonasmos e prosopopéias são as figuras mais encontradas. Porém a símile, a apóstrofe, a deprecação estão na própria alma do poeta, sem contar as animadas descrições e os paralelos que comparecem encachoeirados. O poeta é rico, exuberante. O dialoguismo e a dubitação seriam outros tantos meios de fazer seus personagens virem à cena e as idéias fervilharem na mente. Infelizmente não haveria tempo para mostrar sua constelação de recursos estéticos e cênicos.
Também não me ocorre nenhum exemplo mais completo de poesia da natureza que o poema «Crepúsculo Sertanejo», citado e elogiado por Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira (10). É que os quadros de Castro Alves não são de natureza morta. Tudo vive na poesia deste gigante. «Castro Alves não foi um homem, foi uma explosão da natureza», disse Agripino Grieco - que o cito de memória. Tão enorme que é visto e considerado, inclusive, por seus defeitos. É hora de referir a uma crítica que lhe fazem por causa de «um triste chorar de arapongas», constante de «Crepúsculo Sertanejo». Eu pergunto: E as chamadas licenças poéticas são apenas formais? Ou os poetas podem exagerar, transformando o que é, na realidade, um tinir, um martelar, um gritar, um soar de arapongas - num simples «chorar»? Não é preciso que o crítico se transforme em psicólogo para adivinhar que, naqueles momentos, tudo era triste para o poeta. Nem tampouco dizer que o poema começa numa tarde e termina à meia-noite. A tristeza o perpassa na sua vastidão mais funda. E cada vez mais triste o é ao passo que se encaminha para o fim, como no já citado «Despertar para Morrer», que é o antepenúltimo, e deveria ser mostrado numa tela e não apenas lido:

- «Acorda!»
- «Quem me chama?»
- «Escuta!»
- «Escuto...»
- «Nada ouviste?»
- «Inda não...»
- «É porque o vento
Escasseou.»

- «Ouço agora... da noite na calada
Uma voz que ressona cava e funda
E após cansou!
- Sabes que voz é esta?
- Não! Dir-se-ia
Do agonizante o derradeiro engasgo,
Rouco estertor...»
E calados ficaram, mudos, quedos,
Mãos contraídas, bocas sem alento...
Hora de horror!...
A canoa onde vai Maria fugindo de si, do noivo, da vida, do mundo, é realmente companheira, confidente, personagem. Abrigará também o herói trágico enquanto decidem a tragédia da morte (para curar a tragédia da vida). Ela está bem no fim do poema «Crepúsculo Sertanejo» - prelúdio para o desfecho - e aparecerá em muitos outros. Aliás, a leitura desse poema, mesmo solto, desligado do resto de A Cachoeira... é de todo recomendável. Para que sobressaiam as partes que interessam a esta análise, vejamo-lo em alguns momentos:
A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas

A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.
...............................................................
As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas - da brisa ao açoite;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co as penas da noite!
................................................................
Então as marrecas, em torno, boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!...
Não é apenas «o chorar de arapongas» que se pode observar, neste excelente poema. Também «o músico estalo» do ringir do coqueiro é imagem grandiosa por sua estranheza e originalidade.
Por um pequeno espaço, voltemos ao início de A Cachoeira... «Maria», segundo poema, é de um lirismo e uma ternura incomuns.
Onde vais à tardezinha,
Mucama tão bonitinha,
Morena flor do sertão?
A grama um beijo te furta!
Por baixo da saia curta,
Que a perna te esconde em vão...
Que beleza de imagens! Aqui há, com certeza, uma lembrança de Casimiro de Abreu. Como também na terceira estrofe, segundo verso: Ah! Quem dessas primaveras / Pudesse a flor apanhar!
Aliás, Castro Alves foi uma caixa de ressonância de todos os poetas da época, disto não fazia mistério Citava de Álvares de Azevedo a Varela, de Gonçalves Dias a Junqueira Freire e Casimiro de Abreu.



7. “A Cachoeira...” , obra in fieri




Os poemas de A Cachoeira... foram concebidos desde a estada do poeta em Recife até o final de sua vida. Longe de serem apenas natureza ou momentos de devaneio, os trabalhos ali reunidos, inicialmente com o título de «Manuscritos de Stênio» - publicado independentemente em 1876, depois de sua morte portanto, e outras vezes junto a «Os Escravos» (1883) - são uma experiência de unicidade dramática. Castro Alves sempre se voltou ao poema, para reconstruí-lo. É aquilo que hoje se chama de uma obra in fieri, porque sempre renovada quando o poeta o repensava ou construía uma nova unidade. Segundo Eugênio Gomes, as peças «O São Francisco» e «A Cachoeira», ambos construídos na mesma medida decassílaba e estrófica camoniana como a «A Tarde», foram recitados por Castro Alves a José de Alencar, no Rio. Na ocasião, o romancista de «O Guarani» fez uma carta de apresentação do jovem poeta baiano ao grande Machado de Assis. Era a apresentação de Cecéu ao Brasil. Gerou louvores do próprio Machado de Assis na imprensa. Sim, aqueles dois poemas devem ter sido os primeiros de A Cachoeira... Notas do citado crítico Eugênio Gomes, apensas em Castro Alves, Obra Completa, da Aguilar, 1966, dão conta que o poeta, «em outubro de 1870, procedeu a leitura do poema A Cachoeira de Paulo Afonso, em um torneio lítero-musical, no palacete do Sodré, em Salvador, onde tinha chegado havia pouco do interior.» (11) Mas, embora seja datado de 12 de julho de 1870, Eugênio Gomes retifica, com base em suas pesquisas: «o poema foi concluído na Fazenda Santa Isabel, mas no mês subseqüente.»
Disto se tirem duas conclusões óbvias: a) Embora terminado em 1870, não quer isto dizer que Castro não o tenha reescrito depois; b) não se pode confiar muito em poetas com relação a datas e objetividades que tais, mas devemos acreditar nos seus sentimentos e nos seus poemas, que são as suas verdades.
Como disse Alencar, na carta já mencionada, de 18.2.1868, «a genealogia dos poetas começa com o seu primeiro poema», (12) ao que eu ajuntaria: E termina, com o último. Melhor mesmo é senti-lo, captar seu ideário poético. Sim, porque principalmente de idéias é feita a grande poesia dramática, segundo Emil Staiger.
Em Fernando Pessoa e seus poemas dramáticos, segundo estudo de Maria Esther Maciel, no Suplemento de Minas, outubro de 1998, «pode-se detectar em todo esse universo de máscaras, vozes e linguagens, uma maneira nova de se incorporar à poesia elementos da esfera teatral, sem que nem a poesia nem o teatro se anulem enquanto especificidades estéticas, mas redimensionem reciprocamente ao mesmo tempo e fora do território verbal», conformando com o que dissera Artaud: «O teatro se confunde com suas possibilidades de realização quando delas se extraem as consequências poéticas mais extremas.» (13)
O mesmo poderia ser dito de Castro Alves e seus textos de A Cachoeira de Paulo Afonso. Salvo outro juízo que, quando vier, eu respeitarei.
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A tarde


Era a hora em que a tarde se debruça
Lá da crista das serras mais remotas...
E d'araponga o canto, que soluça,
Acorda os ecos nas sombrias grotas;
Quando sobre a lagoa, que s'embuça,
Passa o bando selvagem das gaivotas ...
E a onça sobre as lapas salta urrando,
Da cordilheira os visos abalando.

Era a hora em que os cardos rumorejam
Como um abrir de bocas inspiradas,
E os angicos as comas espanejam
Pelos dedos das auras perfumadas ...
A hora em que as gardênias, que se beijam,
São tímidas, medrosas desposadas;
E a pedra... a flor... as selvas ... os condores
Gaguejam... falam... cantam seus amores!

Hora meiga da Tarde! Como és bela
Quando surges do azul da zona ardente!
... Tu és do céu a pálida donzela,
Que se banha nas termas do oriente...
Quando é gota do banho cada estrela.
Que te rola da espádua refulgente...
E, — prendendo-te a trança a meia lua,
Te enrolas em neblinas seminua!...

Eu amo-te, ó mimosa do infinito!
Tu me lembras o tempo em que era infante.
Inda adora-te o peito do precito
No meio do martírio excruciante;
E, se não te dá mais da infância o grito
Que menino elevava-te arrogante,
É que agora os martírios foram tantos,
Que mesmo para o riso só tem prantos! ...

Mas não m'esqueço nunca dos fraguedos
Onde infante selvagem me guiavas,
E os ninhos do sofrer que entre os silvedos
Da embaíba nos ramos me apontavas;
Nem, mais tarde, dos lânguidos segredos
De amor do nenufar que enamoravas...
E as tranças mulheris da granadilha!. . .
E os abraços fogosos da baunilha! ...

E te amei tanto - cheia de harmonias
A murmurar os cantos da serrana, —
A lustrar o broquei das serranias,
A doirar dos rendeiros a cabana...
E te amei tanto — à flor das águas frias
Da lagoa agitando a verde cana,
Que sonhava morrer entre os palmares,
Fitando o céu ao tom dos teus cantares! ...

Mas hoje, da procela aos estridores,
Sublime, desgrenhada sobre o monte,
Eu quisera fitar-te entre os condores
Das nuvens arruivadas do horizonte...
... Para então, — do relâmpago aos livores,
Que descobrem do espaço a larga fronte, --
Contemplando o infinito. . ., na floresta
Rolar ao som da funeral orquestra!!!

 



Maria


ONDE VAIS à tardezinha,
Mucama tão bonitinha,
Morena flor do sertão?

A grama um beijo te furta
Por baixo da saia curta,
Que a perna te esconde em vão...

Mimosa flor das escravas!
O bando das rolas bravas
Voou com medo de ti!...
Levas hoje algum segredo...
Pois te voltaste com medo
Ao grito do bem-te-vi!

Serão amores deveras?
Ah! Quem dessas primaveras
Pudesse a flor apanhar!
E contigo, ao tom d'aragem,
Sonhar na rede selvagem...
À sombra do azul palmar!

Bem feliz quem na viola
Te ouvisse a moda espanhola
Da lua ao frouxo clarão...
Com a luz dos astros — por círios,
Por leito — um leito de lírios...
E por tenda — a solidão!




O baile na flor


QUE BELAS as margens do rio possante,
Que ao largo espumante campeia sem par!...
Ali das bromélias nas flores doiradas
Há silfos e fadas, que fazem seu lar...
   E, em lindos cardumes,
   Sutis vaga-lumes
   Acendem os lumes
   P'ra o baile na flor.
   E então — nas arcadas
   Das pét’las doiradas,
   Os grilos em festa
   Começam na orquestra
   Febris a tocar...
      E as breves
      Falenas
      Vão leves,
      Serenas,
      Em bando
      Girando,
      Valsando,
      Voando
      No ar! ...



Na margem


"VAMOS! VAMOS! Aqui por entre os juncos
Ei-la a canoa em que eu pequena outrora
Voava nas maretas... Quando o vento,
Abrindo o peito à camisinha úmida,
Pela testa enrolava-me os cabelos,
Ela voava qual marreca brava
No dorso crespo da feral enchente!

Voga, minha canoa! Voga ao largo!
Deixa a praia, onde a vaga morde os juncos
Como na mata os caititus bravios...

Filha das ondas! andorinha arisca!
Tu, que outrora levavas minha infância
— Pulando alegre no espumante dorso
Dos cães-marinhos a morder-te a proa, —
Leva-me agora a mocidade triste
Pelos ermos do rio ao longe... ao longe..."

Assim dizia a Escrava...
Iam caindo
Dos dedos do crepúsc'lo os véus de sombra,
Com que a terra se vela como noiva
Para o doce himeneu das noites límpidas ...

Lá no meio do rio, que cintila,
Como o dorso de enorme crocodilo,
Já manso e manso escoa-se a canoa.
Parecia, assim vista ao sol poente,
Esses ninhos, que tombam sobre o rio,
E onde em meio das flores vão chilrando
— Alegres sobre o abismo — os passarinhos!...

 


A queimada


MEU NOBRE perdigueiro! vem comigo.
Vamos a sós, meu corajoso amigo,
   Pelos ermos vagar!
Vamos Já dos gerais, que o vento açoita,
Dos verdes capinais n'agreste moita
   A perdiz levantar!...

Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos...
Aqui, meu cão! ... Já de listrões vermelhos
   O céu se iluminou.
Eis súbito da barra do ocidente,
Doudo, rubro, veloz, incandescente,
   O incêndio que acordou!

A floresta rugindo as comas curva...
As asas foscas o gavião recurva,
   Espantado a gritar.
O estampido estupendo das queimadas
Se enrola de quebradas em quebradas,
   Galopando no ar.

E a chama lavra qual jibóia informe,
Que, no espaço vibrando a cauda enorme,
   Ferra os dentes no chão...
Nas rubras roscas estortega as matas....
Que espadanam o sangue das cascatas
   Do roto coração!...

O incêndio — leão ruivo, ensangüentado,
A juba, a crina atira desgrenhado
   Aos pampeiros dos céus!...
Travou-se o pugilato e o cedro tomba...
Queimado..., retorcendo na hecatomba
   Os braços para Deus.

A queimada! A queimada é uma fornalha!
A irara — pula; c cascavel — chocalha...
    Raiva, espuma o tapir!
... E às vezes sobre o cume de um rochedo
A corça e o tigre — náufragos do medo —
    Vão trêmulos se unir!

Então passa-se ali um drama augusto...
N'último ramo do pau-d'arco adusto
   O jaguar se abrigou...
Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares...
E após... tombam as selvas seculares...
   E tudo se acabou!...



Lucas


QUEM FOSSE naquela hora,
Sobre algum tronco lascado
Sentar-se no descampado
Da solitária ladeira,
Veria descer da serra,
Onde o incêndio vai sangrento,
A passo tardio e lento,
Um belo escravo da terra
Cheio de viço e valor...
Era o filho das florestas!
Era o escravo lenhador !
Que bela testa espaçosa,
Que olhar franco e triunfante!
E sob o chapéu de couro
Que cabeleira abundante!
De marchetada jibóia
Pende-lhe a rasto o facão...
E assim... erguendo o machado
Na larga e robusta mão...
Aquele vulto soberbo,
— Vivamente alumiado, —
Atravessa o descampado
Como uma estátua de bronze
Do incêndio ao fulvo clarão.

Desceu a encosta do monte,
Tomou do rio o caminho...
E foi cantando baixinho
Como quem canta p'ra si.

Era uma dessas cantigas
Que ele um dia improvisara,
Quando junto da coivara
Faz-se o Escravo — trovador.

Era um canto languoroso,
Selvagem, belo, vivace,
Como o caniço que nasce
Sob os raios do Equador.

Eu gosto dessas cantigas,
Que me vem lembrar a infância,
São minhas velhas amigas,
Por elas morro de amor...
Deixai ouvir a toada
Do — cativo lenhador —

E o sertanejo assim solta a tirana,
Descendo lento p'ra a servil cabana...
 



Tirana


"MINHA MARIA é bonita,
Tão bonita assim não há;
O beija-flor quando passa
Julga ver o manacá.

"Minha Maria é morena,
Corno as tardes de verão;
Tem as tranças da palmeira
Quando sopra a viração.

"Companheiros! o meu peito
Era um ninho sem senhor;
Hoje tem um passarinho
P'ra cantar o seu amor.

"Trovadores da floresta!
Não digam a ninguém, não!...
Que Maria é a baunilha
Que me prende o coração.

"Quando eu morrer só me enterrem
Junto às palmeiras do val,
Para eu pensar que é Maria
Que geme no taquaral . . ."

 


A senzala


Qual o veado, que buscou o aprisco,
Balindo arisco, para a cerva corre...
Ou como o pombo, que os arrulos solta,
Se ao ninho volta, quando a tarde morre...,

Assim, cantando a pastoril balada,
Já na esplanada o lenhador chegou.
Para a cabana da gentil Maria
Com que alegria a suspirar marchou!

Ei-la a casinha... tão pequena e bela!
Como é singela com seus brancos muros!
Que liso teto de sapé doirado!
Que ar engraçado! que perfumes puros!

Abre a janela para o campo verde,
Que além se perde pelos cerros nus...
A testa enfeita da infantil choupana
Verde liana de festões azuis.

É este o galho da rolinha brava,
Aonde a escrava seu viver abriga...
Canta a jandaia sobre a curva rama
E alegre chama sua dona amiga.

Aqui n'aurora, abandonando os ninhos,
Os passarinhos vêm pedir-lhe pão;
Pousam-lhe alegres nos cabelos bastos,
Nos seios castos, na pequena mão.

Eis o painel encantado,
Que eu quis pintar, mas não pude...
Lucas melhor o traçara
Na canção suave e rude...
Vede que olhar, que sorriso
S'expande no brônzeo rosto,
Vendo o lar do seu amor...
Ai! Da luz do Paraíso
Bate-lhe em cheio o fulgor




Diálogo dos ecos


E CHEGOU-SE p'ra a vivenda
Risonho, calmo, feliz...
Escutou... mas só ao longe
Cantavam as juritis...
Murmurou: "Vou surpr’endê-la!"
E a porta ao toque cedeu...
"Talvez agora sonhando
Diz meu nome o lábio seu,
Que a dormir nada prevê..."

E o eco responde: — Vê! ...

"Como a casa está tão triste!
Que aperto no coração! ...
Maria!... Ninguém responde!
Maria, não ouves, não?...
Aqui vejo uma saudade
Nos braços de sua cruz...
Que querem dizer tais prantos,
Que rolam tantos, tantos,
Sobre as faces da saudade
Sobre os braços de Jesus?...
Oh! quem me empresta uma luz?...
Quem me arranca a ansiedade,
Que no meu peito nasceu?
Quem deste negro mistério
Me rasga o sombrio véu?...

E o eco responde: — Eu! ...

E chegou-se para o leito
Da casta flor do sertão...
Apertou co'a mão convulsa
O punhal e o coração! ...
'Stava inda tépido o ninho
Cheio de aromas suaves...
E — como a pena, que as aves
Deixam no musgo ao voar, —
Um anel de seus cabelos
Jazia cortado a esmo
Como relíquia no altar! ...
Talvez prendendo nos elos
Mil suspiros, mil anelos,
Mil soluços, mil desvelos,
Que ela deu-lhes pra guardar!...
E o pranto em baga a rolar ...

"Onde a pomba foi perder-se?
Que céu minha estrela encerra?
Maria, pobre criança,
Que fazes tu sobre a terra?"

E o eco responde: — Erra!

"Partiste! Nem te lembraste
Deste martírio sem fim!...
Não! perdoa... tu choraste
E os prantos, que derramaste
Foram vertidos por mim...
Houve pois um braço estranho
Robusto, feroz, tamanho,
Que pôde esmagar-te assim?..."

E o eco responde: — Sim!

E rugiu: "Vingança! guerra!
Pela flor, que me deixaste,
Pela cruz em que rezaste,
E que teus prantos encerra!
Eu juro guerra de morte
A quem feriu desta sorte
O anjo puro da terra...
Vê como este braço é forte!
Vê como é rijo este ferro !
Meu golpe é certo... não erro.
Onde há sangue, sangue escorre!...
Vilão! Deste ferro e braço,
Nem a terra, nem o espaço,
Nem mesmo Deus te socorre !!..."

E o eco responde: — Corre !
Como o cão ele em tomo o ar aspira,
   Depois se orientou.
Fareja as ervas... descobriu a pista
   E rápido marchou.

.........................................................

No entanto sobre as águas, que cintilam,
Como o dorso de enorme crocodilo,
Já manso e manso escoa-se a canoa;
Parecia assim vista — ao sol poente —
Esses ninhos, que o vento lança às águas,
E que na enchente vão boiando à toa! ...

O nadador


E-Lo que ao rio arroja-se.
As vagas bipartiram-se;
Mas rijas contraíram-se
Por sobre o nadador...
Depois s'entreabre lúgubre
Um círculo simbólico...
É o riso diabólico
Do pego zombador!

Mas não! Do abismo — indômito
Surge-me um rosto pálido,
Como o Netuno esquálido,
Que amaina a crina ao mar;
Fita o batel longínquo
Na sombra do crepúsculo...
Rasga com férreo músculo
O rio par a par,
 
Vagas! Dalilas pérfidas!
Moças, que abris um túmulo,
Quando do amor no cúmulo
Fingis nos abraçar!
O nadador intrépido
Vos toca as tetas cérulas...
E após — zombando — as pérolas
Vos quebra do colar.
 
Vagas! Curvai-vos tímidas!
Abri fileiras pávidas
Às mãos possantes, ávidas
Do nadador audaz!...
Belo, de força olímpica
— Soltos cabelos úmidos —
Braços hercúleos, túmidos...
o rei dos vendavais!

Mas ai! Lá ruge próxima
A correnteza hórrida,
Como da zona tórrida
A boicininga a urrar...
É lá que o rio indômito,
Como o corcel da Ucrânia,
Rincha a saltar de insânia,
Freme e se atira ao mar.

Tremeste? Não! Qu'importa-te
Da correnteza o estríduío?
Se ao longe vês teu ídolo,
Ao longe irás também...
Salta à garupa úmida
Deste corcel titânico...
— Novo Mazeppa oceânico —
Além! Além! Além!...

No barco


— Lucas — Maria! murmuraram juntos...
E a moça em pranto lhe caiu nos braços.
Jamais a parasita em flóreos laços
Assim ligou-se ao piquiá robusto...

Eram-lhe as tranças a cair no busto
Os esparsos festões da granadilha...
Tépido aljôfar o seu pranto brilha,
Depois resvala no moreno seio...

Oh! doces horas de suave enleio!
Quando o peito da virgem mais arqueja,
Como o casal da rola sertaneja,
Se a ventania lhe sacode o ninho.

Cantai, ó brisas, mas cantai baixinho!
Passai, ó vagas..., mais passai de manso!
Não perturbeis-lhe o plácido remanso,
Vozes do ar! emanações do rio!

"Maria, fala!" — "Que acordar sombrio",
Murmura a triste com um sorriso louco,
"No Paraíso eu descansava um pouco...
Tu me fizeste despertar na vida ...

"Por que não me deixaste assim pendida
Morrer co'a fronte oculta no teu peito?
Lembrei-me os sonhos do materno leito
Nesse momento divinal... Qu'importa?...

"Toda esperança para mim 'sta morta...
Sou flor manchada por cruel serpente...
Só de encontro nas rochas pode a enchente
Lavar-me as nódoas, m'esfolhando a vida.

"Deíxa-me! Deixa-me a vagar perdida
Tu! — Partel Volve para os lares teus.
Nada perguntes... é um segredo horrível...
Eu te amo ainda... mas agora — adeus!"

 


Adeus


ADEUS — Ai criança ingrata!
Pois tu me disseste — adeus —?
Loucura! melhor seria
Separar a terra e os céus.

— Adeus — palavra sombria!
De uma alma gelada e fria
És a derradeira flor.

— Adeus! — miséria! mentira
De um seio que não suspira,
De um coração sem amor.

Ai, Senhor! A rola agreste
Morre se o par lhe faltou.
O raio que abrasa o cedro
A parasita abrasou.

O astro namora o orvalho:
— Um é a estrela do galho,
— Outro o orvalho da amplidão

Mas, à luz do sol nascente,
Morre a estrela — no poente!
O orvalho — morre no chão!

Nunca as neblinas do vale
Souberam dizer-se — adeus —
Se unidas partem da terra,
Perdem-se unidas nos céus.

A onda expira na plaga...
Porém vem logo outra vaga
P'ra morrer da mesma dor...

— Adeus — palavra sombria!
Não digas — adeus —, Maria!
Ou não me fales de amor!

 


Mudo e quedo


E CALADO ficou... De pranto as bagas
Pelo moreno rosto deslizaram,
Qual da braúna, que o machado fere,
Lágrimas saltam de um sabor amargo

Mudos, quedos os dois neste momento
Mergulhavam no dédalo d'angústia,
No labirinto escuro que desgraça...
Labirinto sem luz, sem ar, sem fio ...

Que dor, que drama torvo de agonias
Não vai naquelas almas! ... Dor sombria
De ver quebrado aquele amor tão santo,
De lembrar que o passado está passando...
Que a esperança morreu, que surge a morte!...
Tanta ilusão!... tanta carícia meiga!...
Tanto castelo de ventura feito
À beira do riacho, ou na campanha!...
Tanto êxtase inocente de amorosos!...
Tanto beijo na porta da choupana,
Quando a lua invejosa no infinito
Com uma bênção de luz sagrava os noivos!...

Não mais! não mais! O raio, quando esgalha
O ipê secular, atira ao longe
Flores, que há pouco se beijavam n'hástea,
Que unidas nascem, juntas viver pensam,
E que jamais na terra hão de encontrar-se!

Passou-se muito tempo... Rio abaixo
A canoa corria ao tom das vagas.

De repente ele ergueu-se hirto, severo,
— O olhar em fogo, o riso convulsivo —
Em golfadas lançando a voz do peito!...

"Maria! — diz-me tudo... Fala! fala
Enquanto eu posso ouvir... Criança, escuta!
Não vês o rio?... é negro!... é um leito fundo...
A correnteza, estrepitando, arrasta
Uma palmeira, quanto mais um homem!...
Pois bem! Do seio túrgido do abismo
Há de romper a maldição do morto;
Depois o meu cadáver negro, lívido,
Irá seguindo a esteira da canoa
Pedir-te inda que fales, desgraçada,
Que ao morto digas o que ao vivo ocultas!..."

Era tremenda aquela dor selvagem,
Que rebentava enfim, partindo os diques
Na fúria desmedida!...
                             Em meio às ondas
Ia Lucas rolar
                             Um grito fraco,
Uma trêmula mão susteve o escravo...
E a pálida criança, desvairada.
Aos pés caiu-lhe a desfazer-se em pranto.
 
Ela encostou-se ao peito do selvagem
— Como a violeta, as faces escondendo
Sob a chuva noturna dos cabelos —!
Lenta e sombria após contou destarte
A treda história desse tredo crime!...


Na fonte


I

"ERA HOJE ao meio-dia.
Nem uma brisa macia
Pela savana bravia
Arrufava os ervaçais...
Um sol de fogo abrasava;
Tudo a sombra procurava;
Só a cigarra cantava
No tronco dos coqueirais.
 
II

"Eu cobri-me da mantilha,
Na cabeça pus a bilha,
Tomei do deserto a trilha,
Que lá na fonte vai dar.
Cansada cheguei na mata:
Ali, na sombra, a cascata
As alvas tranças desata
Como ua moça a brincar.


III

"Era tão densa a espessura!
Corria a brisa tão pura!
Reinava tanta frescura,
Que eu quis me banhar ali.
Olhei em roda... Era quedo
O mato, o campo, o rochedo...
Só nas galhas do arvoredo
Saltava alegre o sagüi.


IV

"Junto às águas cristalinas
Despi-me louca, traquinas,
E as roupas alvas e finas
Atirei sobre os cipós.
Depois mirei-me inocente,
E ri vaidosa... e contente...
Mas voltei-me de repente...
Como que ouvira uma voz!


V

"Quem foi que passou ligeiro,
Mexendo ali no ingazeiro,
E se embrenhou no baleeiro,
Rachando as folhas do chão?...
Quem foi?! Da mata sombria
Uma vermelha cutia
Saltou tímida e bravia,
Em procura do sertão.


VI

"Chamei-me então de criança;
A meus pés a onda mansa
Por entre os juncos s’entrança
Como uma cobra a fugir!
Mergulho o pé docemente;
Com o frio fujo à corrente...
De um salto após de repente
Fui dentro d'água cair.


VII

"Quando o sol queima as estradas,
E nas várzeas abrasadas
Do vento as quentes lufadas
Erguem novelos de pó,
Como é doce em meio às canas,
Sob um teto de lianas,
Das ondas nas espadanas
Banhar-se despida e só! ...


VIII

"Rugitavam os palmares...
Em torno dos nenufares
Zumbiam pejando os ares
Mil insetos de rubim...
Eu naquele leito brando
Rolava alegre cantando...
Súbito... um ramo estalando
Salta um homem junto a mim!"

 


Nos campos


"FUGI desvairada!
Na moita intrincada,
Rasgando uma estrada,
Fugaz me embrenhei.
Apenas vestindo
Meus negros cabelos,
E os seios cobrindo
Com os trêmulos dedos,
Ligeira voei!

"Saltei as torrentes.
Trepei dos rochedos
Aos cimos ardentes,
Nos ínvios caminhos,
Cobertos de espinhos,
Meus passos mesquinhos
Com sangue marquei!

..........................

"Avante! corramos!
Corramos ainda!...
Da selva nos ramos
A sombra é infinda.
A mata possante
Ao filho arquejante
Não nega um abrigo...
Corramos ainda!
Corramos! avante!

"Debalde! A floresta
— Madrasta impiedosa —
A pobre chorosa
Não quis abrigar!
"Pois bem! Ao deserto!

"De novo, é loucura!
Seguindo meus traços
Escuto seus passos
Mais perto! mais perto!
Já queima-me os ombros
Seu hálito ardente.
Já vejo-lhe a sombra
Na úmida alfombra...
Qual negra serpente,
Que vai de repente
Na presa saltar!...

......................................

          Na douda
          Corrida,
          Vencida,
          Perdida,
Quem me há de salvar?"

 
No monte


"PAREI... Volvi em torno os olhos assombrados...
Ninguém! A solidão pejava os descampados...
Restava inda um segundo... um só p'ra me salvar;
Então reuni as forças, ao céu ergui o olhar...
E do peito arranquei um pavoroso grito,
Que foi bater em cheio às portas do infinito!
Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em monte
Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!...
Depois a solidão ainda mais calada
Na mortalha envolveu a serra descampada!...

"Ai! que pode fazer a rola triste
Se o gavião nas garras a espedaça?
Ai! que faz o cabrito do deserto,
Quando a jibóia no potente aperto
Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

"Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam,
E finalmente expiram de tortura.
Ou, se escapam trementes, arquejantes,
Vão, lambendo as feridas gotejantes,
Morrer à sombra da floresta escura! ...

    "E agora está concluída
    Minha história desgraçada.
    Quando caí — era virgem!
    Quando ergui-me — desonrada!"




Sangue de africano


AQUI SOMBRIO, fero, delirante
Lucas ergueu-se como o tigre bravo...
Era a estátua terrível da vingança...
O selvagem surgiu... sumiu-se o escravo.

Crispado o braço, no punhal segura!
Do olhar sangrentos raios lhe ressaltam,
Qual das janelas de um palácio em chamas
As labaredas, irrompendo, saltam.

Com o gesto bravo, sacudido, fero,
A destra ameaçando a imensidade...
Era um bronze de Aquiles furioso
Concentrando no punho a tempestade!

No peito arcado o coração sacode
O sangue, que da raça não desmente,
Sangue queimado pelo sol da Líbia,
Que ora referve no Equador ardente,


Amante


"BASTA, criança! Não soluces tanto...
Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!
Que culpa tem a clícia descaída
Se abelha envenenada o mel lhe suga?

"Basta! Esta faca já contou mil gotas
De lágrimas de dor nos teus olhares.
Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas
No sangue dele em gotas aos milhares.

"Por que volves os olhos desvairados?
Por que tremes assim, frágil criança?
Est'alma é como o braço, o braço é ferro,
E o ferro sabe o trilho da vingança.

"Se a justiça da terra te abandona,
Se a justiça do céu de ti se esquece,
A justiça do escravo está na força...
E quem tem um punhal nada carece! ...

"Vamos! Acaba a história ... Lança a presa...
Não vês meu coração, que sente fome?
Amanhã chorarás; mas de alegria!
Hoje é preciso me dizer — seu nome!"

 

Anjo


"AI! QUE VALE a vingança, pobre amigo,
Se na vingança a honra não se lava?...
O sangue é rubro, a virgindade é branca —
O sangue aumenta da vergonha a bava.

"Se nós fomos somente desgraçados,
Para que miseráveis nos fazermos?
Deportados da terra assim perdemos
De além da campa as regiões sem termos...

"Ai! não manches no crime a tua vida,
Meu irmão, meu amigo, meu esposo!...
Seria negro o amor de uma perdida
Nos braços a sorrir de um criminoso!..."

 



Desespero


"CRIME! Pois será crime se a jibóia
Morde silvando a planta, que a esmagara?
Pois será crime se o jaguar nos dentes
Quebra do índio a pérfida taquara?

"E nós que somos, pois? Homens? — Loucura!
Família, leis e Deus lhes coube em sorte.
A família no lar, a lei no mundo...
E os anjos do Senhor depois da morte.

"Três leitos, que sucedem-se macios,
Onde rolam na santa ociosidade...
O pai o embala... a lei o acaricia...
O padre lhe abre a porta à eternidade.

"Sim! Nós somos répteis... Qu'importa a espécie?
— A lesma é vil, — o cascavel é bravo.
E vens falar de crimes ao cativo?
Então não sabes o que é ser escravo!...

"Ser escravo — é nascer no alcoice escuro
Dos seios infamados da vendida...
— Filho da perdição no berço impuro
Sem leite para a boca ressequida...
"É mais tarde, nas sombras do futuro,
Não descobrir estrela foragida...
É ver — viajante morto de cansaço —
A terra — sem amor!... sem Deus - o espaço!

"Ser escravo — é, dos homens repelido,
Ser também repelido pela fera;
Sendo dos dois irmãos pasto querido,
Que o tigre come e o homem dilacera...
— É do lodo no lodo sacudido
Ver que aqui ou além nada o espera,
Que em cada leito novo há mancha nova...
No berço... após no toro... após na cova!...

"Crime! Quem falou, pobre Maria,
Desta palavra estúpida?... Descansa!
Foram eles talvez?!... É zombaria...
Escarnecem de ti, pobre criança!
Pois não vês que morremos todo dia,
Debaixo do chicote, que não cansa?
Enquanto do assassino a fronte calma
Não revela um remorso de sua alma?

"Não! Tudo isto é mentira! O que é verdade
É que os infames tudo me roubaram ...
Esperança, trabalho, liberdade
Entreguei-lhes em vão... não se fartaram.
Quiseram mais... Fatal voracidade!
Nos dentes meu amor espedaçaram...
Maria! Última estrela de minh'alma!
O que é feito de ti, virgem sem palma?

"Pomba — em teu ninho as serpes te morderam.
Folha — rolaste no paul sombrio.
Palmeira — as ventanias te romperam.
Corça — afogaram-te as caudais do rio.
Pobre flor — no teu cálice beberam,
Deixando-o depois triste e vazio...
— E tu, irmã! e mãe! e amante minha!
Queres que eu guarde a faca na bainha!

"Ó minha mãe! Ó mártir africana,
Que morreste de dor no cativeiro!
Ai! sem quebrar aquela jura insana,
Que jurei no teu leito derradeiro,
No sangue desta raça ímpia, tirana
Teu filho vai vingar um povo inteiro!...
Vamos, Maria! Cumpra-se o destino...
Dize! dize-me o nome do assassino!..."

"Virgem das Dores,
Vem dar-me alento,
Neste momento
De agro sofrer!
Para ocultar-lhe
Busquei a morte...
Mas vence a sorte,
Deve assim ser.

....................................

"Pois que seja! Debalde pedi-te,
Ai! debalde a teus pés me rojei...
Porém antes escuta esta história...
Depois dela... O seu nome direi



História de um crime


"FAZEM HOJE muitos anos
Que de uma escura senzala
Na estreita e lodosa sala
Arquejava u'a mulher.
Lá fora por entre as urzes
O vendaval s'estorcia...
E aquela triste agonia
Vinha mais triste fazer.

"A pobre sofria muito.
Do peito cansado, exangue,
Às vezes rompia o sangue
E lhe inundava os lençóis.
Então, como quem se agarra
Às últimas esperanças,
Duas pávidas crianças
Ela olhava... e ria após.

"Que olhar! que olhar tão extenso!
Que olhar tão triste e profundo!
Vinha já de um outro mundo,
Vinha talvez lá do céu.
Era o ralo derradeiro.
Que a lua, quando se apaga,
Manda por cima da vaga
Da espuma por entre o véu.

"Ainda me lembro agora
Daquela noite sombria,
Em que u'a mulher morria
Sem rezas, sem oração!...
Por padre — duas crianças...
E apenas por sentinela
Do Cristo a face amarela
No meio da escuridão.

"As vezes naquela fronte
Como que a morte pousava
E da agonia aljofrava
O derradeiro suor...
Depois acordava a mártir,
Como quem tem um segredo...
Ouvia em torno com medo,
Com susto olhava em redor.

"Enfim, quando noite velha
Pesava sobre a mansarda,
E somente o cão de guarda
Ladrava aos ermos sem fim,
Ela, nos braços sangrentos
As crianças apertando,
Num tom meigo, triste e brando
Pôs-se a falar-lhes assim:
 
 

Último abraço


"FILHO, ADEUS! Já sinto a morte,
Que me esfria o coração.
Vem cá... Dá-me tua mão...
Bem vês que nem mesmo tu
Podes dar-lhe novo alento!...
Filho, é o último momento...
A morte — a separação!
Ao desamparo, sem ninho,
Ficas, pobre passarinho,
Neste deserto profundo,
Pequeno, cativo e nu!...

"Que sina, meu Deus! que sina
Foi a minha neste mundo!
Presa ao céu — pelo desejo,
Presa à terra — pelo amor!...
Que importa! é tua vontade?
Pois seja feita, Senhor!
"Pequei!... foi grande o meu crime,
Mas é maior o castigo...
Ai! não bastava a amargura
Das noites ao desabrigo;
De espedaçaram-me as carnes
O tronco, o açoite, a tortura,
De tudo quanto sofri.
Era preciso mais dores,
Inda maior sacrifício...
Filho! bem vês meu suplício...
Vão separar-me de ti!

"Chega-te perto... mais perto;
Nas trevas procura ver-te
Meu olhar, que treme incerto,
Perturbado, vacilante...
Deixa em meus braços prender-te
P'ra não morrer neste instante;
Inda tenho que fazer-te
Uma triste confissão...
Vou revelar-te um segredo
Tão negro, que tenho medo
De não ter o teu perdão!...

    Mas não!
Quando um padre nos perdoa,
Quando Deus tem piedade
De um filho no coração
Uma mãe não bate à toa.


Mãe penitente


"OUVE-ME, pois!... Eu fui uma perdida;
Foi este o meu destino, a minha sorte...
Por esse crime é que hoje perco a vida,
Mas dele em breve há de salvar-me a morte!

"E minh'alma, bem vês, que não se irrita,
Antes bendiz estes mandões ferozes,
Eu seria talvez por ti maldita,
Filho! sem o batismo dos algozes!

"Porque eu pequei... e do pecado escuro
Tu foste o fruto cândido, inocente,
— Borboleta, que sai do — lodo impuro...
— Rosa, que sai de — pútrida semente!

"Filho! Bem vês... fiz o maior dos crimes:
— Criei um ente para a dor e a fome!
Do teu berço escrevi nos brancos vimes
O nome de bastardo — impuro nome.

"Por isso agora tua mãe te implora
E a teus pés de joelhos se debruça.
Perdoa à triste — que de angústia chora,
Perdoa à mártir — que de dor soluça!

"Mas um gemido a meus ouvidos soa...
Que pranto é este que em meu seio rola?
Meu Deus, é o pranto seu que me perdoa...
Filho, obrigada pela tua esmola!"

 


O segredo


"AGORA VOU dizer-te por que morro;
   Mas hás de jurar primeiro,
Que jamais tuas mãos inocentes
Ferirão meu algoz derradeiro...
   Meu filho, eu fui a vítima
   Da raiva e do ciúme.
Matou-me como um tigre carniceiro,
   Bem vês,
Uma branca mulher, que em si resume
   Do tigre — a malvadez,
   Do cascavel — o rancor!...
Deixo-te, pois...
   — Um grito de vingança?
   — Não, pobre criança!...
Um crime a perdoar... o que é melhor!...

"Depois. teve razão... Esta mulher
É tua e minha senhora!

..........................................

"Lucas, silêncio! que por ela implora
   Teu pai... e teu irmão!...
"Teu irmão, que é seu filho... (ó magoa e dor!)
"Teu pai — que é seu marido... e teu senhor!...

"Juras não me vingar? — ó mãe, eu juro
   Por ti, pelos beijos teus!
   "— Obrigada! agora... agora
   Já nada mais me demora...
   Deus! — recebe a pecadora!
   Filho! — recebe este adeus!"

Quando, rompendo as barras do oriente.
A estrela da manhã mais desmaiava,
E o vento da floresta ao céu levava
O canto jovial do bem-te-vi;
Na casinha de palha uma criança,
Da defunta abraçando o corpo frio,
Murmurava chorando em desvario:
— Eu não me vingo, ó mãe... juro por ti!..."

Maria calou-se... Na fronte do Escravo
Suor de agonia gelado passou;
Com riso convulso murmura: "Que importa
Se o filho da escrava na campa jurou?!...

"Que tem o passado com o crime de agora?
Que tem a vingança, que tem com o perdão?"
E como arrancando do crânio uma idéia
Na fronte corria-lhe a gélida mão...

"Esquece o passado! Que morra no olvido...
Ou antes relembra-o cruento, feroz!
Legenda de lodo, de horror e de crimes
E gritos de vítima e risos de algoz!

"No frio da cova que jaz na explanada
— Vingança — murmuram os ossos dos meus!"

— Não ouves um canto, que passa nos ares?
— Perdoa! — respondem as almas nos céus!"

— "São longos gemidos do seio materno
Lembrando essa noite de horror e traição!"

— É o flébil suspiro do vento, que outrora
Bebera nos lábios da morta o perdão!... "

E descaiu profundo
Em longo meditar...
Após sombrio e fero
Viram-no murmurar:

"Mãe! Na região longínqua
Onde tua alma vive,
Sabes que eu nunca tive
Um pensamento vil.
Sabes que esta alma livre
Por ti curvou-se escrava;
E devorou a bava...
E tigre — foi reptil!

"Nem um tremor correra-me
A face fustigada!
Beijei a mão armada
Com o ferro que a feriu...
Filho, de um pai misérrimo
Fui o fiel rafeiro...
Caim, irmão traiçoeiro!
Feriste... e Abel sorriu!

"De tanto horror o cúmulo,
Ó mãe, alma celeste
Se perdoar quiseste,
Eu perdoei também.
Santificaste os míseros;
Curvei-me reverente
A eles tão-somente,
Somente... a mais ninguém!

"Ninguém! que a nada humilho-me
Na terra, nem no espaço!...
Pode ferir meu braço...
— "Lucas! não pode não!
Mísero a mão que abrira
De tua mãe a cova...
O golpe hoje renova!...
Mata-me!... É teu irmão!..."


A tarde


Era a hora em que a tarde se debruça
Lá da crista das serras mais remotas...
E d'araponga o canto, que soluça,
Acorda os ecos nas sombrias grotas;
Quando sobre a lagoa, que s'embuça,
Passa o bando selvagem das gaivotas ...
E a onça sobre as lapas salta urrando,
Da cordilheira os visos abalando.

Era a hora em que os cardos rumorejam
Como um abrir de bocas inspiradas,
E os angicos as comas espanejam
Pelos dedos das auras perfumadas ...
A hora em que as gardênias, que se beijam,
São tímidas, medrosas desposadas;
E a pedra... a flor... as selvas ... os condores
Gaguejam... falam... cantam seus amores!

Hora meiga da Tarde! Como és bela
Quando surges do azul da zona ardente!
... Tu és do céu a pálida donzela,
Que se banha nas termas do oriente...
Quando é gota do banho cada estrela.
Que te rola da espádua refulgente...
E, — prendendo-te a trança a meia lua,
Te enrolas em neblinas seminua!...

Eu amo-te, ó mimosa do infinito!
Tu me lembras o tempo em que era infante.
Inda adora-te o peito do precito
No meio do martírio excruciante;
E, se não te dá mais da infância o grito
Que menino elevava-te arrogante,
É que agora os martírios foram tantos,
Que mesmo para o riso só tem prantos! ...

Mas não m'esqueço nunca dos fraguedos
Onde infante selvagem me guiavas,
E os ninhos do sofrer que entre os silvedos
Da embaíba nos ramos me apontavas;
Nem, mais tarde, dos lânguidos segredos
De amor do nenufar que enamoravas...
E as tranças mulheris da granadilha!. . .
E os abraços fogosos da baunilha! ...

E te amei tanto - cheia de harmonias
A murmurar os cantos da serrana, —
A lustrar o broquei das serranias,
A doirar dos rendeiros a cabana...
E te amei tanto — à flor das águas frias
Da lagoa agitando a verde cana,
Que sonhava morrer entre os palmares,
Fitando o céu ao tom dos teus cantares! ...

Mas hoje, da procela aos estridores,
Sublime, desgrenhada sobre o monte,
Eu quisera fitar-te entre os condores
Das nuvens arruivadas do horizonte...
... Para então, — do relâmpago aos livores,
Que descobrem do espaço a larga fronte, --
Contemplando o infinito. . ., na floresta
Rolar ao som da funeral orquestra!!!


O bandolim da desgraça


QUANDO de amor a Americana douda
A moda tange na febril viola,
E a mão febrenta sobre a corda fina
Nervosa, ardente, sacudida rola.

A gusla geme, s'estorcendo em ânsias,
Rompem gemidos do instrumento em pranto...
Choro indizível... comprimir de peitos...
Queixas, soluços... desvairado canto!

E mais dorida a melodia arqueja!
E mais nervosa corre a mão nas cordas!...
Ai! tem piedade das crianças louras
Que soluçando no instrumento acordas! ...

"Ai! tem piedade dos meus seios trêmulos..."
Diz estalando o bandolim queixoso.
... E a mão palpita-lhe apertando as fibras...
E fere, e fere em dedilhar nervoso!...

Sobre o regaço da mulher trigueira,
Doida, cruel, a execução delira!...
Então — co'as unhas cor-de-rosa, a moça.
Quebrando as cordas, o instrumento atira!...

........................................

Assim, Desgraça, quando tu, maldita!
As cordas d'alma delirante vibras...
Como os teus dedos espedaçam rijos
Uma por uma do infeliz as fibras!

— Basta —, murmura esse instrumento vivo.
— Basta —, murmura o coração rangendo,
E tu, no entanto, num rasgar de artérias,
Feres lasciva em dedilhar tremendo.

Crença, esperança, mocidade e glória,
Aos teus arpejos, — gemebundas morrem!...
Resta uma corda... — a dos amores puros —...
E mais ardentes os teus dedos correm!...

E quando farta a cortesã cansada
A pobre gusla no tapete atira,
Que resta?... — Uma alma — que não tem mais vida!
Olhos — sem pranto! Desmontada — lira!!!


O São Francisco


LONGE, bem longe, dos cantões bravios,
Abrindo em alas os barrancos fundos;
Dourando o colo aos perenais estios,
Que o sol atira nos modernos mundos;
Por entre a grita dos ferais gentios,
Que acampam sob os palmeirais profundos;
Do São Francisco a soberana vaga
Léguas e léguas triunfante alaga!

Antemanhã, sob o sendal da bruma,
Ele vagia na vertente ainda,
— Linfa amorosa — co'a nitente espuma
Orlava o seio da Mineira linda;
Ao meio-dia, quando o solo fuma
Ao bafo morto de lia calma infinda,
Viram-no aos beijos, delamber demente
As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo
O deleite da indígena lasciva...
Vem — à busca talvez de desafogo
Bater à porta da Baiana altiva.
Nas verdes canas o gemente rogo
Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...
E talvez por magia à luz da lua
Mole a criança na caudal flutua.

Rio soberbo! Tuas águas turvas
Por isso descem lentas, peregrinas...
Adormeces ao pé das palmas curvas
Ao músico chorar das casuarinas!
Os poldros soltos — retesando as curvas, —
Ao galope agitando as longas crinas,
Rasgam alegres — relinchando aos ventos —
De tua vaga os turbilhões barrentos.

E tu desces, ó Nilo brasileiro,
As largas ipueiras alagando,
E das aves o coro alvissareiro
Vai nas balças teu hino modilhando!
Como pontes aéreas — do coqueiro
Os cipós escarlates se atirando,
De grinaldas em flor tecendo a arcada
São arcos triunfais de tua estrada!...





Um raio de luar


ALTA NOITE ele ergueu-se. Hirto, solene.
Pegou na mão da moça. Olhou-a fito...
   Que fundo olhar!
Ela estava gelada, como a garça
Que a tormenta ensopou longe do ninho,
   No largo mar.

Tomou-a no regaço... assim no manto
Apanha a mãe a criancinha loura,
   Tenra a dormir.
Apartou-lhe os cabelos sobre a testa...
Pálida e fria... Era talvez a morte...
   Mas a sorrir.

Pendeu-lhe sobre os lábios. Como treme
No sono asa de pombo, assim tremia-lhe
   O ressonar.
E como o beija-flor dentro do ovo,
Ia-lhe o coração no níveo seio
   A titilar.

Morta não era! Enquanto um rir convulso
Contraíra as feições do homem silente
   — Riso fatal.
Dir-se-ia que antes a quisera rija,
Inteiriçada pela mão da noite
   Hirta, glacial!

Um momento de bruços sobre o abismo,
Ele, embalando-a, sobre o rio negro
   Mais s'inclinou...
Nesse instante o luar bateu-lhe em cheio,
E um riso à flor dos lábios da criança
   À flux boiou!

Qual o murzelo do penhasco à borda
Empina-se e cravando as ferraduras
   Morde o escarcéu;
Um calafrio percorreu-lhe os músculos...
O vulto recuou!... A noite em meio
   Ia no céu!



No barco


— Lucas — Maria! murmuraram juntos...
E a moça em pranto lhe caiu nos braços.
Jamais a parasita em flóreos laços
Assim ligou-se ao piquiá robusto...

Eram-lhe as tranças a cair no busto
Os esparsos festões da granadilha...
Tépido aljôfar o seu pranto brilha,
Depois resvala no moreno seio...

Oh! doces horas de suave enleio!
Quando o peito da virgem mais arqueja,
Como o casal da rola sertaneja,
Se a ventania lhe sacode o ninho.

Cantai, ó brisas, mas cantai baixinho!
Passai, ó vagas..., mais passai de manso!
Não perturbeis-lhe o plácido remanso,
Vozes do ar! emanações do rio!

"Maria, fala!" — "Que acordar sombrio",
Murmura a triste com um sorriso louco,
"No Paraíso eu descansava um pouco...
Tu me fizeste despertar na vida ...

"Por que não me deixaste assim pendida
Morrer co'a fronte oculta no teu peito?
Lembrei-me os sonhos do materno leito
Nesse momento divinal... Qu'importa?...

"Toda esperança para mim 'sta morta...
Sou flor manchada por cruel serpente...
Só de encontro nas rochas pode a enchente
Lavar-me as nódoas, m'esfolhando a vida.

"Deíxa-me! Deixa-me a vagar perdida
Tu! — Partel Volve para os lares teus.
Nada perguntes... é um segredo horrível...
Eu te amo ainda... mas agora — adeus!"

 
À beira do abismo e do infinito


A CELESTE Africana, a Virgem-Noite
Cobria as faces... Gota a gota os astros
Caíam-se das mãos no peito seu...
... Um beijo infindo suspirou nos ares...

...........................................

A canoa rolava!... Abriu-se a um tempo
    O precipício!... e o céu!...
                              Santa Isabel, 12 de julho de 1870

A Cachoeira de Paulo Afonso
(Nota incorporada por Castro Alves no final do texto do poema)

 
Lê-se no Dezesseis de Julho: "Depois de quatorze léguas de viagem, desde a foz do Rio S. Francisco, chega-se a esta cachoeira, de que se contam tantas grandezas fabulosas.
Para bem descrevê-la, imaginai uma colossal figura de homem sentado com os joelhos e os braços levantados, e o rio de S. Francisco caindo com toda sua força sobre as costas. Não podereis ver sem estar trepado em um dos braços, ou em qualquer parte que lhe fique ao nível ou a cavaleiro sobre a cabeça.
Parece arrebentar de debaixo dos pés, como a formosa cascata de Tivoli junto a Roma. Um mugir surdo e continuado, como os preparos para um terremoto, serve de acompanhamento à música estrondosa de variados e diversos sons, produzidos pelos choques das águas. Quer elas venham correndo velocíssimas ou saltando por cima das cristas de montanhas; quer indo em grandes massas de encontro a elas, e delas retrocedendo: caindo em borbotão nos abismos e deles se erguendo em úmida poeira, quer torcendo-se nas vascas do desespero, ou levantando-se em espumantes escarcéus; quer estourando como uma bomba ; quer chegando-se aos vaivéns, e brandamente e com espandanas ou em flocos de escuma alvíssima como arminhos — é um espetáculo assombroso e admirável.
A altura da grande queda foi calculada em 362 palmos. Há 17 cachoeiras, que são verdadeiros degraus do alto trono, onde assentou-se o gigante de nome Paulo Afonso.
Muitas grutas apresentam os rochedos deste lugar, sombrias, arejadas, arruadas de cristalinas areias, banhadas de frígidas linfas.
S.M, o imperador visitou esta cachoeira na manhã de 20 de outubro de 1859. O presidente, Dr. Manuel Pinto de Souza Dantas, teve a idéia de erigir um monumento à visita imperial."

(Transcrita do Diário da Bahia)



















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