quinta-feira, 25 de abril de 2013

Clara dos Anjos - Lima Barreto

 
Para baixar o livro cique aqui http://www.culturabrasil.org/zip/claradosanjos.pdf

Clara dos Anjos, de Lima Barreto


Análise da obra

Concluído em 1922, ano da morte de Lima Barreto, o romance Clara dos Anjos é uma denúncia áspera do preconceito racial e social, vivenciado por uma jovem mulher do subúrbio carioca.

O Realismo-naturalismo, que tanto influenciou Lima Barreto na composição de Clara dos Anjos, é cientificista e determinista, considerando que as ações humanas são produtos de leis naturais: do meio, das características hereditárias e do momento histórico. Portanto, os romances naturalistas procuravam, através da representação literária, demonstrar teses extraídas de teorias científicas. Para isso, o Naturalismo buscou compor um registro implacável da realidade, incluindo seus aspectos repugnantes e grotescos. São exatamente esses os aspectos que mais chamam à atenção na narrativa exagerada de Clara dos Anjos.

Em Clara dos Anjos relata-se a estória de uma pobre mulata, filha de um carteiro de subúrbio, que apesar das cautelas excessivas da família, é iludida, seduzida e, como tantas outras, desprezada, enfim, por um rapaz de condição social menos humilde do que a sua. É uma estória onde se tenta pintar em cores ásperas o drama de tantas outras raparigas da mesma cor e do mesmo ambiente. O romancista procurou fazer de sua personagem uma figura apagada, de natureza "amorfa e pastosa", como se nela quisesse resumir a fatalidade que persegue tantas criaturas de sua casta.

Espaço

O romance passa-se no subúrbio carioca e Lima Barreto descreve o ambiente suburbano com riqueza de detalhes, como os vários tipos de “casas, casinhas, casebres, barracões, choças” e a vida das pessoas que ali vivem.

Ao descrever o subúrbio, Lima Barreto aborda o advento dos “bíblias”, os protestantes que alugam uma antiga chácara e passam a conquistar novos fiéis para seu culto:

“Joaquim dos Anjos ainda conhecera a "chácara" habitada pelos proprietários respectivos; mas, ultimamente, eles se tinham retirado para fora e alugado aos "bíblias"… O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos, já por encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais, já por procurarem, em outra casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para suas pobres almas alanceadas, além das dores que seguem toda e qualquer existência humana.” E reflete sobre a nova seita:

“Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees fundadores de novas seitas cristãs. De quando em quando, um cidadão protestante dessa raça que deseja a felicidade de nós outros, na terra e no céu, à luz de uma sua interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssima seita, põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos, os quais não sabem muito bem por que foram para tal novíssima religiãozinha e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.”

A crítica às “novas seitas cristãs” revela também a ojeriza de Lima Barreto à influência americana no Brasil. Como o colocou Antônio Arnoni Prado, o autor de Clara dos Anjos “interessou-se pelos Estados Unidos, em virtude do tratamento desumano que este país dispensava aos seus cidadãos de cor. (…) Censurou duramente a discriminação racial americana, assim como o expansionismo imperialista dos ‘yankees’, que, através da diplomacia do dólar, ia, a seu ver, convertendo o Brasil num autêntico protetorado.” Nada mais profético.

Personagens

Marrameque - Poeta modesto, semiparalisado, Marramaque freqüentara uma pequena roda de boêmios e literatos e dizia ter conhecido Paula Nei e ser amigo pessoal de Luís Murat.

Lima Barreto denuncia, na figura de Marramaque, a influência das rodas literárias, grupos fechados que abundam no Brasil; a cultura da oralidade, dos que aprendem “muita coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas”, tendo um cultura superficial, de verniz; e o azedume dos que não conseguem brilhar nas “rodas de gente fina”.

Clara: a “natureza elementar” - Clara era a segunda filha do casal, “o único filho sobrevivente…os demais…haviam morrido.” Tinha dezessete anos, era ingênua e fora criada “com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.”

O autor reitera sempre a personalidade frágil da moça – sua “alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor” – como resultado de sua educação reclusa e “temperada” pelas modinhas:

“Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor.”

Essa “natureza elementar” de Clara se traduzia na ausência de ambição em melhorar seu modo de vida ou condição social por meio do trabalho ou do estudo:

“Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. (…) Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma mulher.”

A descrição de Clara reforça os malefícios da formação machista, superprotetora, repressiva e limitadora reservada às mulheres na nossa sociedade. Ecoa, portanto, a descrição de Luísa, do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós, ou a Ana Rosa de O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Todas são, na verdade, herdeiras diretas da figura de formação débil, educada nas leituras dos romances românticos, que é Emma Bovary, criada por Gustave Flaubert no romance inaugural do Realismo, Madame Bovary (1857).

Cassi: o corruptor - Por intermédio de Lafões, o carteiro Joaquim passa a receber em casa o pretendente de Clara, Cassi Jones de Azevedo, que pertencia a uma posição social melhor. Assim o descreve Lima Barreto:

“Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio — a famosa "pastinha". Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.”

O padrinho Marramaque, que já lhe conhecia a fama, tenta afastá-lo de Clara quando percebe seu interesse. Na festa de aniversário da afilhada, provoca Cassi e deixa claro que ele não é bem-vindo ali e que seria melhor que se retirasse. Cassi vinga-se de modo violento: junta-se a um capanga e ambos assassinam Marramaque. Clara, que já suspeitava das ameaças do rapaz ao padrinho, passa a temê-lo, mas ele consegue seduzi-la, principalmente ao confessar seu crime, dizendo que matou por amor a ela.
Malandro e perigoso, Cassi já havia se envolvido em problemas com a justiça antes, mas sempre fora acobertado pela sua família, especialmente sua mãe, que não queria que fosse preso. Assim, conseguia subornar a polícia e continuar impune, mesmo depois de ter levado a mãe de uma de suas vítimas ao suicídio e da perseguição da imprensa.

O exagero narrativo de Lima Barreto torna-se patente ao descrever a figura do sedutor. Branco, sardento e de cabelos claros, é a antítese de Clara. Como o apontou Lúcia Miguel Pereira: “Até os animais da predileção de Cassi, os galos de briga, são apresentados com visível má vontade: ‘horripilantes galináceos’ de ‘ferocidade repugnante’.”

Joaquim dos Anjos - carteiro, acredita-se músico escreveu a polca, valsas,tangos e acompanhamentos de modina. polca: siti sem unhas; valsa: mágos do coração.

Uma polca sua - "Siri sem unhas" - e uma valsa - "Mágoas do Coração: - tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de músicas pianos da Rua do Ouvidor. O seu saber musical era fraco; adivinha mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudo.

Aprendeu a "artinha" musical da terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igrejas a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na "artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor, mas não saíra dela, para ir além" (p.21/22)

Natural de Diamantina, filho único. A convite de um inglês, pesquisador, foi para o Rio de Janeiro e lá ficou. Confiava em todos que o rodeavam.

"Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consiência." (p.115)

Dona Engrácia - era católica, romana, filhos trazidos na mesma religião, era caseira, insegura, e rude.

Calado - músico e compositor brasileiro (polcas "Cruzes, minha prima!")

Patápio Silva - "Uma polca sua - "Siri sem unha"- e uma valsa - "Mágoas do coração" - tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de música e piano da Rua Ouvidor." (p.21).

João Pintor - era um cidadão que visitava "os bíblias" aqueles que pregavam o evangelho. "era preto retinto, grossos lábios, malares proeminentes, testa curta dentes muito bons e muitos claros, longos braços, manoplas enormes, longas pernas e uns tais pés que não havia calçado."(p.25).

Mr. Shays - chefe da seita bíblica, homem tenaz cheio de eloqüência bíblica faz seus adeptos ouvir a palavra. Quando os adeptos se acham preparados põem-se a propagá-la.

Eduardo Lafões - religiosamente ia aos domingos à casa de Joaquim para jogar o solo. Eduardo Lafões gostava dos assuntos do comércio. Era um homem simplório, que só tinha agudeza de sentidos para o dinheiro. Vivendo sempre em círculos limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco, ele não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era dele, para se interessar generosamente por alguém.

Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de Azevedo - pais de Cassi. O pai não gostava dos procedimentos do filho, enquanto a mãe, cobria-lhe as desfeitas com as proteções.

Dona Margarida Weber Pestana - viúva, mãe de Ezequiel, descendente de Alemão; ela, russa. Casou no Brasil com tipógrafo que falecera dois anos após o casamento. Era dona de uma pensão, mulher corajosa.

"O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditinho de Amor chulo. Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade que era mulato, mais tinha os olhos glaucos, translúcidos, de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos - olhos tão estranhos e nós e, sobretudo, ao sangue dominante no pequeno." (p.60)

D. Laurentina Jácone - gostava de rezer, ficar zelando a igreja.

D. Vicêntina - cartomante.

"Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava na vizinhança também e vivia a deitar cartas e cortar "cousas feitas". O seu procedimento era inatacável e exercia a sua profissão de cartomante com toda a seriedade e convicção."(p.60)

Praxedes Maria dos Santos - "gostava de ser tratado por doutor Praxedes. Foi um dos convidados de Joaquim. Era um homem bom. Ficou indeterminada das correspondência de Clara com o Cassi.

Etelvina - crioula, colega de Clara, notou a impaciência de Clara porque o rapaz Cassi ainda não chegara à festa.

Leonardo Flores - grande poeta.

Velho Valentim - era português.

Barcelos - um português fichado na detenção.

Arnaldo - era um colega do grupo dos valdevino (desoculpados que andava com Cassi).

"Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda do Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá, simularia ter ido procurar por "Seu" Menezes, que ele conhecia.

- Se ele não estiver? - indagou Arnaldo.

- Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá. Nela, devem estar, entre outros o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você ouvir, guarda e me conta. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar com ele, negócio de interesse dele." (p.91).

Menezes - o dentista da família. Intermediário dos bilhetes e cartas de Cassi para Clara. Senhor Monção - caixeiro vendedor; Belmiro Bernedes & Cia. - "tocava realejo", era um moço português, simpático, educado, e bom porte.

Helena - tia de Marramaque, econômica, prendada, costurava para o arsenal do governo.

D. Castolina - mulher de Meneses.

Leopoldo - marinheiro. Cedo, saiu de seio da família para melhorar de vida. Há 30 anos não via família. Meneses com a sua pobreza tratou de visitar o imrão já que eram os únicos vivos da família.

Enredo

Clara é uma mulata pobre, que vive no subúrbio carioca com seus pais, Joaquim e Engrácia, mulher “sedentária e caseira.” Joaquim era carteiro, “gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora”. Também “compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.” Além da música, a outra diversão do pai de Clara era passar as tardes de domingo jogando solo com seus dois amigos: o compadre Marramaque e o português Eduardo Lafões, um guarda de obras públicas.

Clara engravida e Cassi Jones desaparece. Convencida pela vizinha, dona Margarida, que procurara na tentativa de conseguir um empréstimo e fazer um aborto, ela confessa o que está acontecendo à sua mãe. É levada a procurar a família de Cassi e pedir “reparação do dano”. A mãe do rapaz humilha Clara, mostrando-se profundamente ofendida porque uma negra quer se casar com seu filho. Clara “agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos.”

O autor representa, na figura de Clara e no seu drama, a condição social da mulher, pobre e negra, geração após geração. No final do romance, consciente e lúcida, Clara reflete sobre a sua situação:

“O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam...”

E, na cena final, ao relatar o que se passara na casa da família de Cassi Jones para a sua mãe, conclui, em desespero, como se falasse em nome dela, da mãe e de todas as mulheres em iguais condições: “— Nós não somos nada nesta vida.”

domingo, 21 de abril de 2013

Filme A Cor Púrpura Stiven Spilberg

Navio Negreiro e A Canção do Africano - Castro Alves

Castro Alves



Antônio Frederico de CASTRO ALVES

            Nasceu, em 1847, na fazenda Cabaceiras, município de Muritiva, BA, e faleceu em Salvador em 1871, de tuberculose.
            Depois dos estudos preparatórios em Salvador, vai, em 1862, para Recife em cuja Faculdade de Direito ingressa em 1864, sendo colega do líder estudantil Tobias Barreto. Reforça a incipiente campanha liberal-abolicionista. Não se destaca pela aplicação aos estudos. Faz-se orador e poeta.
            Em 1868 chega a São Paulo, acompanhando a atriz Eugênia Câmara com quem vivia desde Recife. Em São Paulo torna-se aclamado orador e poeta.
            Numa caçada nos arredores de São Paulo, fere o calcanhar esquerdo. Sobrevém a gangrena. Amputam-lhe o pé. Ferido em sua vaidade e já tuberculose, volta à Bahia, em 1869, certo já de sua morte próxima.

OBRAS:  Espumas flutuantes (1870), A Cachoeira de Paulo Afonso (1876), Os Escravos (1883), Gonzaga ou A Revolução de Minas ( drama encenado na Bahia em 1867).
           
ASPECTOS:
A)    POETA SOCIAL: corajoso defensor dos princípios de liberdade, de justiça social, apologista do progresso, Castro Alves defendeu, com versos inflamados e ousadas figuras, os escravos, revelando corajosamente a miséria física e moral em que eram obrigados a viver. Citem-se as poesias: Vozes d’África, Navio negreiro, A mãe do cativo, A Cruz da estrada. Conhecido, por isso, como o poeta da abolição ou o poeta dos escravos.
Defendeu ainda o povo, esquecido, inculto e injustiçado (O Povo ao Poder) e o papel civilizador da imprensa (O livro e a América).
B)    POETA AMOROSO: Libertado já do clima do mal-do-século, Castro Alves é realista no amor. Não sonha com amadas impossíveis, vaporosas. Inspira-se nas mulheres que o cercam como Eugênia Câmara, Teresa e outras.
C)    POETA DA NATUREZA: Foi um excelente pintor da nossa natureza. Citem-se O Baile na Flor, Crepúsculo Sertanejo.

OS   ESCRAVOS



O Navio Negreiro
(Tragédia no mar)



'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.


'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...


'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.


Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!


Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!


Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!


Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................


Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!


Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.



II

 
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.


Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!


O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!


Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...



III

 
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!



IV

 
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...


Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!


E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...


Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!


No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."


E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


 
V

 
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!


Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...


São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...


São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.


Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
...Adeus, ó choça do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...


Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.


Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...


Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...



VI

 
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

 
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!



São Paulo, 18 de abril de 1869.
(O Poeta, nascido em 14.03.1847,
tinha apenas 22 anos de idade)





Navio negreiro



Hélio Pólvora



O poema Navio Negreiro pertence à fase de Os Escravos, que Castro Alves começou a compor em, ou por volta de 1865, quando ainda no Recife, tocado, sem dúvida, pela atmosfera libertária que empolgava a mocidade acadêmica. Mas,embora trazendo a data de 18 de abril de 1868, ele foi declamado antes, pelo Poeta, no Teatro São José, em São Paulo, no dia 7 de julho daquele ano, e com extraordinário êxito. E possível que Castro Alves o tivesse concluído ou revisto para a ocasião.

Tinhas o Poeta, então, 21 anos de idade. Apenas 21. Três anos depois, em 1871, estaria sob o que ele denominara "lájea fria" nos seus pressentimentos de morte, que eram constantes, persistentes e, iga-se logo, muito mais sinceros do que fazia crer a morbidez dos Românticos e, sobretudo, dos Simbolistas.

Passaram-se, pois, 128 anos sobre o poema famoso. É importante considerar-se um texto literário em relação ao fluir do tempo. O tempo tem, de todas, talvez a maior capacitação crítica: imprime à obra a pátina que a enobrece ou nela deixa o azinhavre que a corrói. No caso de Navio Negreiro, as estrofes grandiosas, grandiloqüentes, repassadas de ira, fervendo na justa indignação do Poeta, preservam o que em crítica literária se chama o espírito do tempo: ambiente, razões históricas, intenções do autor, correntes literárias. Mas, transcendendo o espírito do tempo, o poema castroalvino estabelece, como se verá mais adiante, uma ponte direta com a época atual.

Alguns fizeram a Castro Alves a ressalva de ter escrito e declamado Navio Negreiro em plena efervescência republicana, quando já fora extinto o tráfico de escravos africanos para as lavouras do Brasil. De fato, a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o odioso comércio, fora promulgada antes, a 4 de setembro de 1850. Mas nós sabemos bem como são as leis no Brasil. Dizem que há leis, aqui, que pegam ou se anulam. Nunca nos faltaram leis, e muitas vezes leis bem intencionadas, mas lhes falece o instrumento fiscalizador. Afinal, não é a justiça da lei que lhe dita a eficácia e lhe impõe respeito e acatamento, mas, exatamente, a sua complementação — ou seja, as providências tomadas para que se faça cumprir a lei.

No caso da lei Eusébio de Queirós houve, provavelmente, mais idealismo do que esforço de aplicação. Tanto assim que, embora declarado extinto o tráfico, em 1850, foi necessária outra lei — a Nabuco de Araújo, de 5 de junho de 1854, portanto quatro anos após — para impedir que barcos negreiros continuassem a descarregar nas costas brasileiras. Se, naqueles quatro anos, o "brigue imundo" a que se refere Castro Alves não fora varrido dos mares, é de supor-se que ele continuasse em rota por mais anos, entre África e Brasil. Leis de proibição do tráfico, emanadas da Bahia, também foram desrespeitadas por algum tempo.
Todos nós sabemos que o fim da escravidão negra no Brasil foi obtido por etapas devido à resistência dos proprietários de latifúndios que temiam, naturalmente, o esvaziamento repentino da economia. Esses proprietários tinham assento majoritário nas Assembléias, confrontavam abertamente o Imperador ou, então, estavam nelas representados pelos deputados e senadores que eles elegiam. Veja-se que, entre a Lei Eusébio de Queirós e a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 1888, decorrem 38 anos de acesa campanha abolicionista. Se a Marinha Britânica, com todo o seu poderio, com o domínio que tinha dos oceanos, mostrava-se incapaz de conter o comércio negreiro, o que esperar-se da ação repressora da nossa Marinha imperial ?

Com certeza o "veleiro brigue", no dizer do Poeta, continuou a navegar com a sua carga de homens seqüestrados nos porões. Evaristo de Morais, citado por Jorge Amado no ABC de Castro Alves, vê os barcos de escravos ainda em atividade plena no momento em que Castro Alves os fulmina com a sua ira condoreira. Sim, o Poeta desconhecia pormenores do comércio que, se utilizados, imprimiriam ao Poema uma verdade por assim dizer documental. O baiano Édison Carneiro, em posfácio à edição de Navio Negreiro pela Livraria progresso Editora, de Salvador, em 1959, enumerou alguns equívocos, entre os quais o da cena no convés, que Castro Alves pintou com mão pesada, igualando-se nas vergastadas dos versos aos chicotes dos marinheiros, por esquecer-se ou ignorar que no convés os negros africanos revivesciam das crueldades nos porões.
Mas são pormenores que não comprometem a beleza, a majestade, a fúria do poema. Navio Negreiro é um poema historicamente atual. Não somos ingênuos ao ponto de supor que a escravidão do homem pelo homem esteja extinta. Ela assumiu aspectos novos, não tão ostensivos, naturalmente, como no passado, porém velados, ou semivelados. Voltaremos a este ponto daqui a pouco.

De todos os Estados brasileiros, a Bahia, que até 1870, pelo menos, comandava a economia brasileira, foi o que recebeu o maior contingente de braços negros. É natural que, em pleno movimento abolicionista, quando os republicanos se utilizavam do tema como bandeira de luta, Castro Alves o assumisse. Já lembramos que a composição de Os Escravos foi iniciada no Recife, em 1865. Um dos poemas desta série, e que datava de 1863, falava no "sangue escravo que nodoa o chão". Poucos anos depois, em São Paulo, o Poeta seria atraído para a batalha entre monarquistas e republicanos. Surge, no estridor dessa batalha, o Navio Negreiro. De composição posterior são Vozes d’África. Não houve repentismo, não houve adesão de última hora, não houve oportunismo poético da parte de Castro Alves. Houve, isto sim, um compromisso anterior, amadurecido na sua consciência de Poeta libertário, de Poeta que, conforme anotou Jamil Almansur Haddad, foi o pregoeiro não apenas da Liberdade, no singular, mas de todas elas: a liberdade política, a liberdade social e até mesmo a liberdade sexual.



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Com o subtítulo de "Tragédia no Mar", o poema Navio Negreiro é produto direto da escola romântica de conteúdo liberal. É um poema comprometido com uma idéia em movimento, uma ideia-força que ainda perdura. O teme é realista na sua pungente atualidade, a forma que o reveste segue, porém, o modelo romântico calcado no discurso que se dirige mais ao ouvido, sem aquela densidade e simplicidade de efeitos que marcaria algumas peças castroalvinas de sua fase derradeira. Poeta cênico quando seguia o vôo do condor, Castro Alves descortinava cenários, descrevia horizontes com uma imaginação plástica. Eis porque o baiano Hildon Rocha observou que, nele, eloqüência e poesia se misturavam, "prevalecendo a primeira
nos momentos de improvisação e circunstância".

Mas, diremos nós, há no Navio Negreiro, além da estilística fônica que arrebata, uma força motriz que transcende os efeitos, às vezes fáceis, da retórica, os moldes transitórios da semântica, para ficar bailando sob forma daquela "selvagem, livre poesia" a que se referiu o Poeta baiano. Eis, portanto, a nossa conclusão: a poética do cantor dos escravos está presa à palavra, depende do fluxo encantatório da palavra, e, no entanto, preserva uma essencialidade que a transfigura, projeta e despoja, fazendo-a valer não somente pela imagem m si mesma, mas também pelo que a imagística vem a representar na sua metamorfose artística.

‘Stamos em pleno mar...

O Poeta, claro está, dirige-se a um auditório. Na sua função de criador e ao mesmo tempo apresentador da cena, pretende traçá-la, esquematizar o cenário, como se assomasse ao palco próprio dos acontecimentos que irá denunciar. O poema começa, pois, descritivo — e a afirmação inicial, reiterada nas próximas três estrofes, pretende reforçar, na sua enfatização estilística, uma atmosfera de sugestão poderosa.

...Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;

Esta comparação, primeira metáfora do poema, é perfeita. Parece até que o Poeta pretende renunciar ao descritivo a fim de realizar o poema mergulhado no seu cerne, de dentro para fora, a partir de suas vezes intrínsecas. O luar seria "uma dourada borboleta" porque visto, como se a esvoaçar, do brigue em movimento, a subir e descer sobre as ondas. Mas a interiorização da perspectiva não tarda a se desfazer nos veros de ação. As vagas correm. Os astros saltam. O mar "acende as ardentias". O brigue corre. O Poeta, da sua órbita privilegiada, vê e descreve.

A primeira parte de Navio Negreiro contém onze estrofes compostas em quartetos eruditos, com dois versos rimados,
decassilábicos. A intenção de Castro Alves foi mostrar as duas imensidades — o oceano e o firmamento, que "ali se estreitam
num abraço insano". A onisciência do Poeta cede lugar, pela primeira vez, à interrogação, à dúvida, na quinta estrofe:

Donde vem ? onde vai ? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço ?

Este será o primeiro toque de mistério, a sugestão que há de inquietar o auditório. O quadro panteísta impressiona pela
plasticidade. Ao referir-se à "música suave" das vagas, à "doce h armonia da brisa", à orquestra do mar e ao sibilar dos ventos nas cordas, o Poeta cria nesse enleio do homem com a Natureza as condições que lhe acentuam, a partir da quarta parte, a indignação. As três primeiras partes constituem, assim, uma antítese, provavelmente deliberada, das três seguintes. A poética castroalvina assenta muito no jogo das antíteses. Há um constante paralelismo de idéias e imagens, e esse paralelismo foi acentuado por Eugênio Gomes quanto à composição de Navio Negreiro. O leitor é levado a deduzir que o quadro grandioso descrito no proêmio do poema não pode permitir a nódoa infamante, "este borrão" que é o brigue negreiro.

Albatroz ! Albatroz ! Dá-me estas asas.

O recurso, tão habitual na poemática clássica, do apelo às musas, às entidades, encontra aqui uma variante. Castro Alves socorre-se do albatroz a fim de inquirir, mais de perto, o motivo por que o "barco ligeiro" foge "do pávido poeta". Todo o horror da cena é entrevisto, de inopino, na terceira parte do poema, constituída de uma única estrofe — uma sextilha em versos dodecassilábicos. Ainda antes, na segunda parte, em décimas de redondilha maior, com rimas alternadas, Castro Alves insiste no objetivo do contraste, ao cantar o fado e a glória dos marinheiros de todo o mundo:

Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu !...

A cesura entre a contemplação plácida, satisfeita, e a descoberta brutal do brigue, fermenta a indignação. A quarta parte, em estrofes heterométricas, combinando alexandrinos com hexassílabos,presta-se admiravelmente ao verso direto, cortante e afiado, que fulge, no ar, em lampejos de ira concentrada, quais estalos de chicote:

Era um quadro dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho
Em sangue a se banhar.

As palavras, sobretudo os adjetivos, valem pela carga emotiva. Parecem varadas de luz, como os vitrais. São palavras-objeto, usadas com todo o impacto semântico. Elas refulgem, prismáticas e cromáticas, na sua função de espelhos. O enleio fonético, sendo imediato, acentua a musicalidade. De tão audíveis, as palavras parecem conter em si mesmas, na sua identidade imediata, de superfície, os transportes do poema. Carecem ainda, é verdade, da revalorização semântica, da música interior, da densidade de idéia que Castro Alves iria obter mais tarde, em "Crepúsculo Sertanejo" e outros quadros de A Cachoeira de Paulo Afonso, conforme anotação de Eugênio Gomes que subscrevemos. E, no entanto, aquelas palavras, entregues à sua força imanente, apoiadas na grandiloqüência do discurso, comunicam em cheio a poesia. Pouco importa que estejamos avisados contra a sedução fácil, o repentismo, o barroquismo de efeito externo. O contágio vence a vacina das prevenções. Observou, a esse respeito, o poeta Godofredo Filho, na introdução à edição de 1959 de Navio Negreiro pela Livraria Progresso Editora, de Salvador: "... as relações de sua linguagem ordenam-se à base de uma dinâmica que, em determinados estágios, ele já não poderá controlar. Os sintagmas, progressivos, como que se projetam em espiral".

A quinta parte, em décimas de redondilha maior, com rima variada, acentua o exercício de indignação. O poema passa do motivo às conseqüências. A declamação procura sensibilizar mais ainda as consciências, através da imprecação e da apóstrofe. O Poeta interpela o Deus dos desgraçados. Apela para a fúria das tempestades, noites e astros. Convoca o tufão a varrer dos mares o brigue dos horrores:

Quem são estes desgraçados
Que não encontram m vós
Mais que o rir calmo da turbas
Que excita a fúria do algoz ?


Encontram-se nessas estâncias alguns dos mais conhecidos — e conseqüentemente admirados — versos da poética de língua portuguesa. Ainda que a África seja, ali, uma vaga ressonância, sem maior documentação geográfica, a imaginação se precipita espumejante nas suas ardentias. E, mais uma vez, na capacidade de motivar e comover, o Poeta exerce a predominância dos sentidos, força uma aceitação imediata. É que a sua oratória também se embebe de subjetividades. No fervor de suas causas, na exaltação do temperamento libertário, o Poeta pôs toda a alma e firmou, então, a arquitetura do poema.

A última parte de Navio Negreiro, em oitavas heróicas, decassílabos camonianos, ajusta-se aos açoites finais da
indignação de Castro Alves na montagem de dois quadros díspares — o canto da Natureza não conspurcada, a poluição do mar pelo barco de escravos — e, entre um e outro, o hemistíquio de suas interrogações. Novamente aí, no majestoso final, estão alguns dos versos mais encantatórios e flamejantes da escola que Castro Alves personificou no Brasil:

Meu Deus ! Meu Deus ! mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia ?
(...)
Auriverde pendão da minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança.


Este final, concebido em forma de estuário, é uma peroração. Ao conclamar os heróis do Novo Mundo, o Poeta deixa no ar, de chofre, toda a carga emotiva do discurso. Os ecos ressoam. Estão predestinados a se reproduzirem nos contrafortes da nossa sensibilidade.




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Definitivamente, a obra literária não é um ato isolado de criação. Mais importante do que o que dizer é o como dizer. No mais, predomina a rotina de idéias. Navio Negreiro, com um tema e uma temática tão sedutores, há de ter também as suas fontes paradigmáticas. Josué Montello citou uma: em Estampas Literárias, de 1956 (Organização Simões, Rio de Janeiro), ele admite que o poeta Guilherme Braga, autor de Heras e Violetas, volume lançado em 1869, no Porto, teria influenciado Castro Alves. Com efeito, em poema de 1863, o português escreve:

Que perguntas sem fim ! Ninguém responde !
Deus em que nuvem negra assim se esconde,
Ó alma, que o não vês ?

E Guilherme Braga também invoca Cristóvão Colombo:

Colombo, inda te espera o mar profundo...
Vai pedir outra vez um novo mundo
Aos países do sol !

O ensaísta gaúcho Augusto Meyer, em artigo no Correio da Manhã, de 2.2.1963, intitulado "O Navio Negreiro", e em O Estado de S. Paulo, de 5.8.1967, sob o título "Navios Negreiros", estabelece pontos de contato entre o poema de Castro Alves e o de Heinrich Heine. O tema, pelo menos, é idêntico. O Das Sklavenschiff de Heine se teria inspirado, por sua vez, ao que parece, no Béranger de Les Negres et les marionettes. É de Heine, aliás, a epígrafe em francês com que o Poeta baiano abre Os Escravos.
Mas as semelhanças entre Castro Alves e Heine estariam limitadas à descrição oceânica e à dança dos escravos. Ainda assim, cuidadoso, Augusto Meyer faz o reparo: "De qualquer modo é bom lembrar que fonte, no sentido restrito e literário, não envolve senão uma idéia de sugestão, subsídio, informação, estímulo, não implicando necessariamente a idéia de influência".


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O comércio de escravos trazidos em barcos negreiros não foi um tema circunstancial na poética castroalvina. O compromisso do Poeta, nele e em outras peças de teor social, ia além da emotividade, era mais fundo. Por isso, Eugênio Gomes fala em "compromisso moral". Lembra o ensaísta que, a partir de 1864, quando aderiu ao abolicionismo, Castro Alves passou a defender as liberdades públicas em geral. Ele já tinha proclamado, por exemplo, que:


A praça ! A praça é do povo
Como o céu é do condor.

No seu evangelho pelos humildes, o Poeta torna-se, até, anticlerical, ao sugerir que o manto do Papa servisse para cobrir os ombros nus dos excluídos. E nenhum poeta do seu tempo, para espanto, aliás, da jovem burguesia intelectual que o admirava e o aplaudia, investiu com maior furor contra o tirano — contra todos os tiranos:

Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.

A escravidão é um tema indissociável da condição humana. A palavra trabalhar, em português, deriva de tripaliare, que, em latim vulgar, significava martirizar com o tripaliu — um instrumento de tortura. Em inglês, slave, escravo, vem de slav, eslavo — porque os eslavos foram os escravos dos impérios europeus antigos, principalmente o Império Romano. Os impérios chinês e otomano floresceram graças ao braço escravo. O Sul dos Estados Unidos, com a sua vocação agrícola, manteve a escravização do negro africano em regime mais duro que o nosso. A palavra rabota, em russo, quer dizer trabalho, e tem como raiz rab, que significa escravo. O sociólogo Theodore Zeldin, em seu livro An Intimate History of Humanity afirma que, "antes dos doze milhões de africanos serem seqüestrados para escravização no Novo Mundo, as principais vítimas eram os eslavos", os quais, "caçados pelo romanos, cristãos, muçulmanos, viquingues e tártaros, foram exportados para o mundo inteiro" e "deram seu nome à escravidão". Segundo ele lembra, a Arábia Saudita foi o último país a abolir formalmente a escravidão — o que só fez em 1962.

Parece que o romancista inglês Graham Greene tinha razão ao referir-se, por intermédio de um personagem seu, aos que nascem para ser "second men". Teríamos então a humanidade dividida, a grosso modo, em primeiros homens, os que detêm o bastão de mando, e os segundos, que são os que trabalham. Eis uma reflexão que nos repugna a consciência, mas que é oportuna para o tricentenário de morte de Zumbi dos Palmares.

O poeta Castro Alves, aliás, também saudou Palmares. Num poema escrito em agosto de 1870, na Fazenda de Santa Isabel, ele disse, a propósito do quilombo histórico:

Ninho, onde em sono atrevido,
Dorme o condor... e o bandido !...
A liberdade... e o jaguar !

Eu pergunto, agora, se houve poeta que defendesse, mais do que este, os oprimidos, os injustiçados, os excluídos, os escravizados de todos os tempos e de todos os lugares, desde que o mundo é mundo. Eu pergunto se outro houve que, sensível aos fatos sociais da condição humana fragilizada ainda mais pelas péssimas condições de vida que lhe são impostas, houvesse tão destemidamente cantado o povo como fez castro Alves no poema "Prometeu".

 Canção do Africano

Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão ...
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
"Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!
"0 sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia;
Ninguém sabe como é belo
Ver de tarde a papa-ceia!
"Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar ...
"Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro".
O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!
O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.
E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!
Fonte: www.secrel.com.br

terça-feira, 16 de abril de 2013

Negrinha - Monteiro Lobato

Para baixar o livro clique aqui: http://baixelivrobrasil.wordpress.com/2010/04/13/negrinha-monteiro-lobato/
Resumo do Livro:
Negrinha é narrativa em terceira pessoa, impregnada de uma carga emocional muito forte. Sem dúvida alguma é conto invejável: "Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças."
D. Inácia era viúva sem filhos e não suportava choro de crianças. Se Negrinha, bebezinho, chorava nos braços da mãe, a mulher gritava: "Quem é a peste que está chorando aí?" A mãe, desesperada, abafava o choro do bebê, e afastando-se com ela para os fundos da casa, torcia-lhe beliscões desesperados. O choro não era sem razão: era fome, era frio: "Assim cresceu Negrinha ­ magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes.
Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra, provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretexto de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta. - Sentadinha aí e bico, hein?" Ela ficava imóvel, a coitadinha. Seu único divertimento era ver o cuco sair do relógio, de hora em hora.
Ensinaram Negrinha a fazer crochê e lá ficava ela espichando trancinhas sem fim... Nunca tivera uma palavra sequer de carinho e os apelidos que lhe davam eram os mais diversos: pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa ruim, lixo. Foi chamada bubônica, por causa da peste que grassava... "O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta..."
D. Inácia era má demais e apesar da Abolição já ter sido proclamada, conservava em casa Negrinha para aliviar-se com "uma boa roda de cocres bem fincados!..." Uma criada furtou um pedaço de carne ao prato de Negrinha e a menina xingou-a com os mesmos nomes com os quais a xingavam todos os dias. Sabendo do caso, D. Inácia tomou providências: mandou cozinhar um ovo e, tirando-o da água fervente, colocou-o na boca da menina. Não bastasse isso, amordaçou-a com as mãos, o urro abafado da menina saindo pelo nariz... O padre chegava naquele instante e D. Inácia fala com ele sobre o quanto cansa ser caridosa...
Em um certo dezembro, vieram passar as férias na fazenda duas sobrinhas de D. Inácia: lindas, rechonchudas, louras, "criadas em ninho de plumas." E negrinha viu-as irromperem pela sala, saltitantes e felizes, viu também Inácia sorrir quando as via brincar. Negrinha arregalava os olhos: havia um cavalinho de pau, uma boneca loura, de louça. Interrogada se nunca havia visto uma boneca, a menina disse que não... e pôde, então, pegar aquele serzinho angelical : "E muito sem jeito, como quem pega o Senhor Menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços d'olhos para a porta. Fora de si, literalmente..." Teve medo quando viu a patroa, mas D. Inácia, diante da surpresa das meninas que mal acreditavam que Negrinha nunca tivesse visto uma boneca, deixou-a em paz, permitiu que ela brincasse também no jardim.
Negrinha tomou consciência do mundo e da alegria, deixara de ser uma coisa humana, vibrava e sentia. Mas se foram as meninas , a boneca também se foi e a casa caiu na mesmice de sempre. Sabedora do que tinha sido a vida, a alma desabrochada, Negrinha caiu em tristeza profunda e morreu, assim, de repente: "Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos..."
No final da narrativa, o narrador nos alerta: "E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas. - "Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?" Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia: - "Como era boa para um cocre!..."
É interessante considerar aqui algumas coisas: em primeiro lugar o tema da caridade azeda e má, que cria infortúnio para os dela protegidos, um dos temas recorrentes de Monteiro Lobato; o segundo aspecto que poderia ser observado é o fenômeno da epifania, a revelação que, inesperadamente, atinge os seres, mostrando-lhes o mundo e seu esplendor. A partir daí, tais criaturas sucumbem, tal qual Negrinha o fez. Ter estado anos a fio a desconhecer o riso e a graça da existência, sentada ao pé da patroa má, das criaturas perversas, nos cantos da cozinha ou da sala, deram a Negrinha a condição de bicho-gente que suportava beliscões e palavrórios, mas a partir do instante em que a boneca aparece, sua vida muda. É a epifania que se realiza, mostrando-lhe o mundo do riso e das brincadeiras infantis das quais Negrinha poderia fazer parte, se não houvesse a perversidade das criaturas. É aí que adoece e morre, preferindo ausentar-se do mundo a continuar seus dias sem esperança.

Noite na Taverna - Álvares de Azevedo



Noite na Taverna clique aqui para baixar

Noite na Taverna é uma coletânea de narrativas construída em sete partes. Traz epígrafes e usa os nomes de cada um dos narradores como subtítulos, antecedendo as histórias. Constitui a mais original produção em prosa de Álvares de Azevedo e insere-se perfeitamente no clima romântico byroniano, refletindo também as influências deixadas no autor pela leitura das novelas mórbidas do século XIX. Os capítulos de Noite na Taverna são Uma Noite do Século, Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann, Johann e Último Beijo de Amor.


UMA NOITE DO SÉCULO


Uma espécie de introdução apresentando o ambiente da taverna, a roda de bebedeira e de devassidão em que se encontram os personagens e o tom notívago e vampiresco em que se desenrolarão os fatos narrados.

Bertram, Archibald, Solfieri, Johann, Arnold e os outros companheiros estão na taverna, dialogando sobre loucuras noturnas, enquanto as mulheres dormem ébria sobre as mesas. Falam das noites passadas em embriaguez e pura orgia. Solfieri os questiona a respeito da imortalidade da alma, e parece não crer nela. Por isso, Archibald o censura pelo materialismo. Solfieri acredita na libertinagem, na bebida e na mulher sobre o colo do amado. Os homens só se voltam para Deus quando estão próximos da morte. Deus é, pois, a “utopia do bem absoluto”.


- Silêncio, moço! Acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos? Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras onde a beleza sigilou os olhares da volúpia?
- Cala-te, Johann! Enquanto as mulheres dormem e Arnold - o loiro - cambaleia e adormece murmurando as canções de orgia de Tieck, que música mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm negras no céu como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia sobre a alvura de uma beleza que dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das taças?
- És um louco, Bertram? Não é a lua que lá vai macilenta: é o relâmpago que passa e ri de escárnio às agonias do povo que morrem aos soluços que seguem as mortualhas do cólera!

As primeiras páginas deixam antever o clima da geração do mal do século, a irreverência incontida, a tendência às divagações literário-filosóficas, a vivência sôfrega e, principalmente,a morbidez e a lascívia.

-Estás ébrio, Johann! O ateísmo é a insânia como o idealismo místico de Schelling, o panteísmo de Spinoza - o judeu, e o histerismo crente de Malebranche nos seus sonhos da visão de Deus. A verdadeira filosofia é o epicurismo. Hume bem o disse: o fim do homem é o prazer. Daí vede que é o elemento sensível uem domina.E pois, ergamo-nos, nós que amarelecemos nas noites desbotadas de estudo insano, e vimos que a ciência é falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de mulher.

A vivência que o escritor demonstra é mais cultural que real, daí buscar
constantemente o reforço nas idéias de filósofos e literatos, reflexo do impacto de suas diversas leituras.


SOLFIERI


Relata uma viagem a Roma, a “cidade do fanatismo e da perdição, onde na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida se pendura o crucifixo lívido”. Certa noite, Solfieri vê um vulto de mulher. Segue-a até um cemitério; o vulto desaparece e ele adormece sob o frio da noite e umidade da chuva. A visão desse vulto atordoa o personagem durante um ano. Nem o amor o satisfaz mais. Uma noite, após prolongada orgia, sai vagando pelas ruas e acaba “entre as luzes de quatro círios que iluminavam um caixão entreaberto.” Lá estava a mulher que lhe provocara tantas alucinações e insônias Era agora uma defunta. Toma o cadáver em seus braços, despe-lhe o véu e faz sexo com ela. A mulher, no entanto, não estava morta, apenas sofrera um ataque de catalepsia. Solfieri leva-a então para seu leito. Depois de dois dias de delírio, ela morre realmente. Solfieri chama um escultor e manda fazer uma estátua de cera da mulher profanada, guardando-a em seu quarto. Conserva para sempre, junto ao peito, uma grinalda de flores, lembrança do caixão da defunta.


BERTRAM


Bertram, um dinamarquês ruivo, de olhos verdes, conta que, também uma mulher, Ângela, o levou à bebida e a duelar com seus três melhores amigos e a enterrá-los. Quando decide casar com ela e consegue lhe dar o primeiro beijo, recebe carta do pai, pedindo seu retorna à Dinamarca. Encontra o velho já moribundo. Chora, mas por saudade de Ângela. Dois anos depois, volta para a Espanha. Encontra a moça casada e mãe de um filho. A paixão persiste e os amantes passam a se encontrar às escondidas, até que o marido, enciumado, descobre tudo. Uma noite, Ângela, com a mão ensangüentada, pede ao rapaz para subir até sua casa e por entre a penumbra, ele encontra o marido degolado e sobre seu peito, o filho de bruços, sangrando. Saem pelo mundo em grandes orgias. Ela foge mais tarde, deixando Bertram entregue às paixões e vícios. Bêbado e ferido, é atropelado por uma carruagem. É socorrido por um velho fidalgo, pai de uma bela menina que, mais tarde, foge para casar-se com Bertram. Ele a vende em uma mesa de jogo a Siegfried, o pirata. Ela mata Siegfried, afogando-se em seguida. De dissipação em dissipação, o rapaz resolve matar-se no mar da Itália, mas é salvo por marinheiros, fica sabendo que a pessoa que o salvou foi, acidentalmente, morta por ele. São socorridos por um navio e Bertram é aceito a bordo em troca de que combatesse, se necessário. Mas apaixona-se pela pálida mulher do comandante e, durante uma batalha, ele o trai, tomando-lhe a mulher. O navio encalha em um banco de areia, despedaçando-se - os náufragos agarram-se a uma jangada e, em meio à tempestade, vagam pelo mar as três figuras (o comandante, a mulher e Bertram), sobrevivendo de bolachas e, mais tarde, tiram a sorte para ver quem morrerá para servir de alimento para os outros. O comandante perde, clama por piedade, mas Bertram se nega a ouvi-lo, prefere a luta. Mata o comandante, que serve por dois dias de alimento à Bertram e à mulher. Ele propõe morrerem juntos, ele aceita. O casal gasta as últimas energias no amor. A mulher, enlouquecida, começa a gargalhar. Bertram a mata. Alimenta-se dela também. Depois, é salvo por um navio inglês.







GENNARO


Gennaro conta que entrou como aprendiz do velho pintor Godofredo Walsh, casado em segundas núpcias com Nauza, uma jovem de vinte anos, que lhe servia de modelo. Com Godofredo, vive também Laura, de quinze anos, filha de seu primeiro casamento. Gennaro seduz Laura, que durante três meses freqüenta o quarto do rapaz. Grávida, ela implora para que ele a peça em casamento. Ele recusa porque apaixonara-se por Nauza, a esposa do pintor. Laura enfraquece.

Uma noite...foi horrível...vieram chamar-me: Laura morria. Na febre murmurava meu nome e palavras que ninguém podia reter, tão apressadas e confusas soavam. Entrei no quarto dela: a doente conheceu-me. Ergueu-se branca, com a face úmida de um suor copioso: chamou-me. Sentei-me junto ao leito dele. Apertou minha mão nas suas mãos frias e murmurou em meu ouvido:- Gennaro, eu te perdôo: eu te perdôo tudo...Eras um infame...Morrerei...Fui uma louca...Morrerei por tua causa...teu filhos...o meu...vou vê-lo ainda...mas no céu...meu filho que matei...antes de nascer...


Gennaro torna-se amante de Nauza. Certa noite fria e escura saíram o mestre e o aprendiz. Godofredo pôs-se a contar uma história (a real) de sua vida, expondo o conhecimento que tinha dos fatos, sabendo que Gennaro fora amante da filha e agora é amante da mulher. Musculoso e forte, Godofredo prostrou Gennaro, que caiu em um despenhadeiro. Só não morreu porque ficou preso em uma árvore. Após um dia e uma noite de delírios, acordou na casa de camponeses que o haviam socorrido e, logo que sarou, partiu. Encontrou no caminho o punhal com que o mestre tentara matá-lo. Munido da arma, procurou a casa de Godofredo, que parecia abandonada. Entrou pelos quartos escuros, tateando até a sala do pintor. Encontrando-a vazia, dirigiu-se ao quarto de Nauza e encontrou-a morta, envenenada pelo marido, que jazia morto também e de sua boca “corria uma escuma esverdeada.”







CLAUDIUS HERMANN


Viciado em jogo, Claudius Hermann chegou a apostar toda a sua fortuna. Em uma das corridas, viu uma mulher passar a cavalo. Tal foi o fascínio que a dama exerceu sobre ele, que, quase com obsessão, persegui-a. Descobriu que a mulher misteriosa era a duquesa Eleonora. Um dia, encorajado, abordou-a. Eleonora era casada. Uma noite, após um baile, aproveitou-se do cansaço e sonolência da mulher e, com a chave comprada de um criado, entrou em seu quarto e lhe deu um narcótico misturado ao vinho. Em seguida, seduziu-a.

Uma semana se passou assim: todas as noites eu bebia nos lábios da dormida um século de gozo. Um mês delirantes iam aos bailes do entrudo, em que mais cheia de febre ela adormecia quente, com as faces em fogo...

O marido, o belo e jovem Maffio, uma noite prometeu visitá-la em seu leito. O amante, corroído de ciúme, resolveu fugir com a mulher. Após ministrar-lhe o narcótico, saiu com a inconsciente pelos corredores, e partiram de carruagem. Ao acordar, Eleonora percebeu que estava em um local estranho com um desconhecido. Ficou desesperada. Claudius decidiu revelar-lhe o segredo. A mulher argumentou ser impossível amá-lo, ele contra-argumentou dizendo-lhe não ser possível a vida dela nos padrões da normalidade, uma vez que estava desonrada. Ninguém a perdoaria. Eleonora, então, concorda em viver com ele.

(...) um dia Claudius entrou em casa. Encontrou o leito ensopado de sangue e num recanto escuro da alcova um doido abraçado com um cadáver. O cadáver era o de Eleonora: o doido n em o poderíeis conhecer tanto a agonia o desfigurava. Era uma cabeça hirta e desgrenhada, uma tez esverdeada, uns olhos fundos e baços onde o lume da insânia cintilava a furto, como a emanação luminosa dos puis entre as trevas...Mas ele o conheceu...era o Duque Maffio.








JOHANN


O cenário é Paris. Johann e Artur jogavam num bilhar. Ao faltar um ponto para Artur ganhar e ao narrador muitos, houve um desvio da bola e Johann exaltou-se, provocando o adversário para um duelo de morte. Artur aceitou, mas antes de partirem para a morte, escreveu algumas linhas e pediu para Johann entregá-las juntamente com um anel, caso viesse a ser a a vítima. No duelo morreu Artur. Johann, como havia prometido, tirou o anel do defunto, recolheu dois bilhetes. O primeiro era uma carta para a mãe; o segundo continha apenas um endereço e um horário. A assinatura era apenas um G. Johann foi ao encontro. “Era escuro. Tinha no dedo o anel que trouxera do morto...Senti uma mãozinha acetinada tomar-me pela mão...subi. A porta fechou-se.

Ele seduziu a virgem. Ao sair, topou com um vulto à porta, voz levemente familiar. Desceu as escadas e sentiu uma lâmina resvalar-lhe os ombros. Uma luta terrível foi travada e houve mais um assassinato.

Ao sair tropecei num objeto sonoro. Abaixei-me para ver o que era. Era uma lanterna furta-fogo. Quis ver quem era o homem. Ergui a lâmpada...O último clarão dela banhou a cabeça do defunto...a apagou-se...Eu não podia crer: era um sonho fantástico toda aquela noite. Arrastei o cadáver pelos ombros...levei-o pela laje da calçada até o lampião da rua, levantei-lhe os cabelos ensangüentados do rosto (...) Aquele homem - sabei-o!? era do sangue do meu sangue, filho das entranhas de minha mãe como eu...era meu irmão!

Mas a desgraça maior ainda estava por ser revelada: Johann havia possuído sua própria irmã.


ÚLTIMO BEIJO DE AMOR


A noite ia alta e a orgia findara, os convivas dormiam embriagados. Entrou na taverna uma mulher vestida de negro, procurando um rosto conhecido. Quando a luz bateu em Arnold, a mulher ajoelhou-se, em seguida ergueu-se, dirigindo-se a Johann.

(...) A fronte da mulher pendeu e sua mão pousou na garganta dele. Um soluço rouco e sufocado ofegou daí. A desconhecida levantou-se. Tremia; ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mão um ferro...era um punhal...Atirou-o no chão. Viu que tinha as mãos vermelhas, enxugou-as nos longos cabelos de Johann.

Voltando-se para Arnold, fez-se reconhecer. Era Geórgia que voltava, depois de cinco anos. Arnold pediu que o chamasse como antes - Artur - e pede-lhe beijos, enquanto ambos lamentam a sorte. A mulher somente vinha para dizer-lhe adeus e depois fecharia a porta de sua própria sepultura. Confessa a morte de Johann para vingar-se daquele que a levou a prostituir-se. Geórgia prostituta vingou nele Geórgia - a virgem. Esse homem foi quem a desonrou, desonrou-a a ela que era sua irmã.


ESTRUTURA NARRATIVA


No final da peça Macário, Álvares de Azevedo apresenta a personagem título aproximando-se de uma janela e observando, dentro de uma taverna, vários jovens conversando. Assim, na verdade, inicia-se o livro A Noite na Taverna. Seu começo é encadeado à peça, mas não se trata de um texto dramatúrgico. É um livro de narrativas curta em prosa, e não teatro. A obra é estruturada em abismo. Cada capítulo é uma história contada dentro de outra história. São, portanto, contos ligados através da estrutura conhecida como moldura narrativa - uma narrativa geral une todas as outras. Tal recurso, conhecido também como contos enquadrados, remete às mais antigas coletâneas de contos da literatura universal, como As Mil e Uma Noites, o Decameron, de Bocaccio e os Contos de Canterbury, de Chaucer.

Em Noite na Taverna, cada conto tem um narrador diferente. Cada um dos homens conta a sua história medonha, afirmando que “não é um conto, é uma lembrança do passado”. Afirmações como essa são típicas do Romantismo. Procuram, assim, estabelecer a veracidade de textos bastante inverossímeis, histórias fantásticas, impossíveis de acontecer na realidade. Os homens reunidos na taverna procuram impressionar seus ouvintes, acrescentando detalhes cada vez mais imaginativos, macabros e chocantes a seus relatos amorosos, ditos pessoais e verídicos. Antônio Cândido explica que, em Álvares de Azevedo, “elementos macabros estariam compondo com estes, de maneira peculiar, o par romântico Amor e Morte.”

A obra está dividida em dois planos: uma narrativa externa, que apresenta os rapazes já bêbados na taverna e prestes a contar cada um sua história, e as várias narrativas internas ou aventuras apresentadas - os contos são nomeados segundo o nome daquele que os narra e também protagoniza - Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann, diferenciando-se desse esquema a introdução e a finalização, chamadas respectivamente Uma Noite do Século e Último Beijo de Amor.


TEMÁTICA


Os contos giram em torno dos temas do amor e da morte, que são relacionados pela presença de momentos de necrofilia, incesto, assassinatos, canibalismo, loucuras várias. Assim, o amor está sempre na fronteira com a morte e a sexualidade se reveste de culpas e punições. O tema não envereda, de fato, pela senda do sobrenatural, mas sim pelo extravagante e hiperbólico. Necrofilia, catalepsia, amor obsessivo, infanticídio, assassinato do esposo, ingratidão, aborto, adultério, sonambulismo, suicídio, emprego de narcótico como recurso amoroso, incesto e fratricídio são as matérias primas para as histórias contadas pelos personagens. E tudo isso, precedido por um vivo debate filosófico.

Capítulo 1 A temática desenvolvida aqui é a oposição entre a imortalidade/mortalidade da alma, a afirmação do prazer versus a negação do prazer, a existência de Deus versus a inexistência de Deus. Daí o autor colecionar uma série muito grande de citações filosóficas, que remtem para um ou outro dos temas, deixando o leitor suspenso entre dois termos.

Capítulo 2 - O tema é a necrofilia, a morte, a catalepsia e o amor obsessivo.

Capítulo 3 - O amor obsessivo, o adultério, o ciúme, o assassinato do marido, a miséria de uma vida desregrada e o amor exclusivamente carnal que logo finda constituem-se na temática deste capítulo.

Capítulo 4 - A temática é o desencontro, a ingratidão, o aborto, o adultério, o sonambulismo, o a amor obsessivo, o suicídio e o arrependimento.

Capítulo 5 - Traz uma simetria interessante entre a conduta do personagem Claudius Hermann e a do Duque Maffio. temática deste capítulo é o amor obsessivo e a perversão sexual.

Capítulo 6 - Os temas são o incesto e o fratricídio.

Capítulo 7 - A temática do último capítulo é a vingança do destino, a fatalidade da ignorância e o suicídio.

Ao longo de Noite na Taverna são introduzidos, na literatura brasileira, temas relacionados ao fantástico e ao macabro. No todo, predomina a intenção de fugir da realidade na bebida e na fantasia. Os personagens estão saturados de extrema melancolia e pessimismo, características dominantes do Ultra-Romantismo, no qual os autores se preocupavam em descrever paisagens sombrias e acontecimentos misteriosos.


RECURSOS DE EXPRESSÃO


Ao longo de Noite na Taverna, Álvares de Azevedo emprega diversos recursos expressivos. Entre eles, destacam-se os diálogos intertextuais. O autor dialoga com autores e textos vários, os quais demonstra conhecer profundamente.

Na primeira parte da obra, o autor faz referências às canções de Tieck, à filosofia de Fichte, Shelling, Epicuro, Hume, Spinoza e de Schiller. Refere-se à poesia épica de Homero: “(...)aí, há folhas inspiradas pela natureza ardente daquela terra como nem Homero as sonhou (...)”. E à literatura de Hoffmann: “(...) uma história sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos - como Hoffmann (...)”.

A parte 3 também é recheada de diálogos entre o autor e outros autores e/ou obras, tais como o Otelo, de Shakespeare, a novela Dom Juan, Dante, Byron, o Fausto, de Goethe, o Hamlet, de Shakespeare e o poeta português Bocage. O próprio nome do livro, a ação dos personagens dialogando em uma taverna, pode ser uma referência direta à vida e obra do poeta português. Álvares de Azevedo interage com a Bíblia:

(...) como Satã quarenta séculos depois fez a Cristo e disse-lhe: Vê, tudo isso é belo - vales, montanhas, águas do mar que espumam, folhas das florestas que tremem e sussurram como as asas dos meus anjos - tudo isso é teu...”

A parte 6 parece toda inspirada na tragédia Édipo Rei. Sem ter conhecimento, Édipo mata o pai e se casa com a mãe; por ignorância, Johann torna-se amante da irmã e mata o irmão. Quando toma conhecimento do infortúnio, Édipo vaza os próprios olhos, o que de certa maneira, faz Johann ao transformar-se em um ébrio para esquecer seu destino. Por fim, ambos sofrem por não darem atenção à lição do oráculo de Delfos: conhece-te a ti mesmo.


PROTAGONISTAS


O protagonistas ou personagens principais de Noite na Taverna são, basicamente, os jovens Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann, Johann e Artur que se encontram reunidos na taverna. Além deles, Geórgia, que reaparecendo já no final do livro, acrescenta uma nota de plausibilidade às histórias narradas. Todos os protagonistas são do tipo anti-herói, pois que, mesmo em posição de herói pelas coisas que contam, mostram-se iguais ou inferiores aos outros componentes do grupo. Ou são vítimas da adversidade ou são presa de seus próprios defeitos de caráter.


PERSONAGENS SECUNDÁRIOS


Os personagens secundários vão sendo introduzidos no enredo através das narrativas dos convivas, com exceção da taverneira, do velho que interrompe Bertram e de Geórgia, que participam da ação na taverna. Assim, temos a moça do cemitério, o guarda, o ébrio, o ébrio, os companheiros, o escultor. Ângela, o pai de Bertram, o esposo de Ângela, o filho de Ângela, o velho nobre, a filha do nobre, o pirata Siegfried, o homem que tenta salvá-lo e é morto, a amante do velho que interrompe a narrativa, o dono do cérebro que preencheu a caveira exibida pelo velho, o capitão da corveta, a esposa do capitão, os marinheiros, os piratas do barco que ataca a corveta. Godofredo Walsh, Laura, Nauza, a velha da cabana, os camponeses. Eleonora, o criado venal, o Duque Maffio, a dona da estalagem, os amigos no bilhar, a mãe de Artur, G. (irmã), o desconhecido (irmão).

A falta de indicação de nome e caracterização dos personagens secundários confere aos personagens principais um individualismo acentuado. É como se eles não tivesses suas próprias vidas, existindo apenas em função dos narradores.Pode-se perceber que, quase sempre, os personagens secundários são planos, pois que caracterizados, no máximo, com um pequeno número de atributos.Comumente, são personagens plano tipo, isto é, personagens reconhecidos apenas por determinado acento invariável, como por exemplo, o guarda, o escultor, etc.


CARACTERIZAÇÃO DOS PERSONAGENS


SOLFIERI - Um jovem boêmio, alcoólatra, persistente, pois que faz de tudo para alcançar o amor da mulher.
A MULHER AMADA POR SOLFIERI - Era como um anjo para ele, uma pessoa que sofria de catalepsia e depressão.
BERTRAM - Ruivo, de pele branca e olhos verdes. Alcoólatra e boêmio. Influenciado pela amada, muda seu jeito de ser, transformando-se em um ser obscuro e viciado, provocando a própria decadência.
ÂNGELA - Morena andaluza, calma e pura na visão de Bertram. No decorrer da história, mostra seu lado agressivo e malévolo.
A MULHER DO COMANDANTE - Branca, melancólica, triste e carente. Era pura, mas no desenvolvimento da trama, mostra seu lado infiel.
O COMANDANTE - Um homem bonito, com rosto rosado, de cabelos crespos e loiros, valente e brutal, mas um bom marido.
GENNARO - Um pintor bonito quando jovem, puro, pensativo e melancólico. Cínico e despreocupado acerca dos sentimentos alheios. Devotado à Nauza.
LAURA - Filha de Godofredo do primeiro casamento. Pálida, de cabelos castanhos e olhos azuis. Amava Gennaro, de uma forma pura e sem malícia.
GODOFREDO WALSH - Professor de pintura de Gennaro. Era robusto, alto e forte. Agia por impulso, vingativo.
NAUZA - Jovem e bonita, era a mulher de Godofredo. Carente, encontrava carinho nos braços de Gennaro.
CLAUDIUS HERMANN - Muito rico, não se importava com a desonra nem com o adultério. Só pensava na amada Eleonora.
A DUQUESA ELEONORA - Bela, pura e vaidosa. Pele alva e cabelos negros. Amava o marido, mas resolve fugir com Claudius porque não queria ser acusada de adultério pela sociedade que tanto prezava.
O DUQUE MAFFIO - Marido de Eleonora. Amava-a tanto que foi levado ao assassinato e ao suicídio.
JOHANN - Jovem boêmio, obsessivo, curioso e nervoso. Desonra a própria irmã e mata o irmão sem o saber.
ARTUR OU ARNOLD - Loiro, de feições delicadas, possuía o rosto oval e faces avermelhadas. Amava muito Geórgia.
GEÓRGIA - Irmã de Johann. Pura, inocente e apaixonada. No decorrer da história, entrega-se para o irmão, pensando que ele era o amado. Volta, no final, para vingar-se.
O IRMÃO DE JOHANN - Protetor, tenta matar o homem que desonrou a irmã.


TEMPO

O texto apresenta basicamente, três tempos:
1) A conversa entre os convivas, na taverna, ocorre no presente, tempo que predomina nos capítulos 1 e 7;
2) As histórias contadas pelos rapazes situam-se no passado, que predomina nos capítulos 2, 3, 4, 5 e 6, se bem que no início, durante e no fim de cada narrativa, os personagens retornam rapidamente para a taverna. A interação dos tempos (presente, passado e presente do passado) produz no leitor a impressão de estar se movendo em um mundo estranho, mágico, no qual acaba sendo introduzido, ao sabor da narrativa;
3) Os diálogos existentes em todas as narrativas conferem atualidade às histórias narradas pelos personagens principais.

A única referência histórica que dá uma vaga noção de localização cronológica do encontro na taverna está presente no relato do velho que interrompe a narrativa de Bertram: (...) e banhei minha fronte juvenil nos últimos raios de sol da águia de Waterloo - Apertei ao fogo da batalha a mão do homem do século. Assim, o velho seria jovem em 18 de junho de 1815, quando Napoleão enfrentava o Duque de Wellington, em Waterloo. Em razão desta referência, pode-se situar o encontro fictício na taverna mais ou menor na época em que o texto foi escrito.

No livro de Álvares de Azevedo, nada há de seguro ou definitivo em relação ao tempo. Datas, épocas ou duração dos fatos são apenas superficialmente sugeridos. Foi escrito tanto em tempo cronológico quanto em tempo psicológico. O tempo que decorre dentro da taverna é real: (...)Cala-te,Johann! Enquanto as mulheres dormem(...) Ocorre o que chamamos de flash back. A partir do momento em que os jovens começam a contar suas histórias, eles mergulham nas lembranças do passado e o tempo passa a ser psicológico: Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão(...) No decorrer do enredo, há uma alternância entre passado, presente e futuro, tempo real e tempo psicológico. Quando um personagem faz sua narrativa, retorna, uma vez ou outra, ao ambiente da taverna, não permanecendo sempre no tempo psicológico.


ESPAÇO


Espaço é o local onde se passa a ação. É ele que dá conta do lugar físico onde ocorrem os fatos. Se a ação for concentrada, com poucos fatos narrados ou quando o enredo é psicológico, haverá menos variedade de espaços. Em Noite na Taverna, muito ao contrário, tem-se uma narrativa cheia de peripécias, com grande afluência de espaços diferentes.

De início, o espaço é a própria taverna, onde o diálogo é travado. A medida que se desenvolve a trama e as histórias de cada um vão sendo contadas, temos como espaço da narrativa: o palácio, o cemitério, a igreja, a ponte e as ruas da cidade; a casa, o quarto da casa (Solfieri); a casa do pai, o jardim da casa de Ângela, a casa dela, diversos locais pelos quais viajam juntos (não especificados), o palácio do nobre, o local onde joga com o pirata Siegfried (não especificado), o rochedo de onde salta para a morte, os diversos locais citados pelo velho que interrompe o narrador (Waterloo, Bélgica, taverna em Portugal, túmulo de Dante na Itália, Grécia e outros não especificados), a corveta, o mar, a cabine do comandante (sugerida), o navio pirata, a jangada e o brigue inglês Swalow (Bertram); a casa do mestre, o quarto de Gennaro, o quarto de Laura, o quarto do casal, a cabana na montanha, a cabana dos camponeses (Gennaro); o teatro, o palácio de Eleonora, o quarto dela, as ruas da cidade, os corredores e o pátio do castelo, o carro, a estalagem, o quarto alugado, a casa do casal Claudius e Eleonora, o quarto do casal (Claudius Hermann); o bilhar, o hotel, o quarto de Artur, fora da cidade, o sobrado da amante de Artur, a escada da casa, a porta de saída, a calçada na rua, o quarto da irmã (Johann).


AMBIENTE


É o conjunto de espaço acrescido de suas características socioeconômicas, morais, psicológicas, em que vivem os personagens. Em resumo, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, recheados de um clima.

Em Noite na Taverna, o ambiente é macabro, projeção dos conflitos vivenciados, ele reflete o pensamento mórbido e alucinado dos personagens. Todo o clima, como o tema, é noturno: histórias que e desenrolam na calada da noite, penumbra, melancolia, fumo, álcool, depressão e, por analogia, as características morais, religiosas e psicológicas traduzem o mesmo tom: são depravados, ébrios, assassino e boêmios.


NARRADOR


O livro é, inicialmente, narrado em terceira pessoa, apresentando os personagens na taverna. Após essa introdução, passa a ser narrado em primeira pessoa, na qual cada personagem tece sua trama.


CONCLUSÃO


Álvares de Azevedo revolveu delicadas feridas da sociedade brasileira da época e a afrontou tabus, e com isso - assim como em diversos outros pontos - ele seguiu as pegadas de Lord Byron - em cujas obras aparecem também traços não-conformistas e anti-sociais. Em Noite na Taverna não há justiça, probidade, remorso nem compaixão. Os rapazes na taverna, enquanto contam suas aventuras, são como anjos da morte e da destruição semeando a ruína e o desastre por onde passam. Sua postura é narcisista. Apenas buscam o prazer e a satisfação dos próprios desejos.

O texto não está construído de forma a incutir susto ou medo no leitor (como seria o caso na literatura de horror ou sobrenatural), mas antes, provocar o estranhamento e a repulsa. No entanto, uma das suas qualidades é, justamente, prender a atenção, página a página, através do emaranhado das situações descritas . Sem dúvida, as noites de vícios e devassidão narradas por Álvares de Azevedo, chamaram a atenção e chocaram o público leitor da década de 1850.

Noite na Taverna apresenta um mundo que não era o de Álvares de Azevedo, nem o de sua infância em família, nem o de sua mocidade e amadurecimento. Sua biografia deixa claro o tipo de valores nos quais ele foi criado: os da sólida e tradicional família brasileira, abastada, convencional e letrada. Orgias, a crueldade, a fealdade e os vícios de seus personagens em nada correspondem à realidade ou à vida do poeta. Somente o desejo de fuga da realidade explica tal escrito em que o amor é encarado pelo autor de maneira pervertida. Na vida real, nada mais era do que filho e irmão dedicado. Os sentimentos expostos em Noite na Taverna são puramente intelectuais.

Álvares de Azevedo inscreve sua obra na tradição do romance gótico. Pode-se avaliar como provenientes do romance gótico inglês, não apenas vários dos temas de Azevedo, como incesto e assassinato entre familiares, como ainda o gosto pelos incidentes sensacionais - raptos, fugas, aventuras em rápida sucessão, etc. Provavelmente, esses são elementos que foram injetados na poética de Álvares de Azevedo não apenas através de Hoffmann (Contos Fantásticos), mas também de Byron, de quem era assíduo leitor. O poeta inglês derramou pelo mundo uma mensagem de decadência e melancolia, erotismo e depravação, rebeldia e morbidez, que afinal alcançou e estudante paulista e toda uma geração brasileira. Os valores góticos fizeram de Noite na Taverna uma coletânea de brutalidades e perversões, cujas sementes são a descrença, o cinismo e o deboche. Em Azevedo, o recurso a elementos do romance gótico significa uma revolta contra a moral burguesa e sua rigidez de costumes. É, sem dúvida, uma produção noir. Antônio Cândido assinala:

(...) marcada pelo incesto, a necrofilia, o fratricídio, o canibalismo, a traição, o assassínio - cuja função para os românticos era mostrar os abismos virtuais e as desarmonias da nossa natureza, assim como a fragilidade das convenções. Associados a isto a modo de correlativo, a noite, a tempestade, o raio, o naufrágio, o tufão - constituindo o arsenal daquele belo sublime que podia costear o horrível, como indicam algumas páginas críticas de Álvares de Azevedo.

As histórias de Noite na Taverna são carregadas de fantasia. São homens devassos que se apaixonam por mulheres perdidas ou virgens misteriosas que terminam por perder-se. A sexualidade é sempre punida com a loucura e com a morte e o amor jamais se realiza plenamente. A atmosfera das cidades é corrompida e nebulosa, povoada de figuras fantasmagóricas. A imaginação romântica de Álvares de Azevedo marca de forma exuberante os contos do livro, narrados num estilo repleto de adjetivos e reticências. Em síntese, Azevedo escreveu:
- em tumulto,
- sem muito senso crítico;
- com traços de perversidade;
- demonstrando um cansaço precoce da vida;
- corporificando as várias tendências psíquicas de uma geração;
- com uma viva fantasia;
- apresentando características como egocentrismo, dualidade, auto-ironia, pessimismo e humor negro, ou seja, como um legítimo representante do ultra-romantismo.

Como escritor brilhante que foi e poeta original e talentoso, a qualidade de sua obra surpreende pela precocidade com que foi concebida. Seus textos refletem o ambiente de sua época, onde a literatura estava impregnada de pessimismo, ceticismo, morbidez e pressentimento da morte.
disponível em: www.coladaweb.com

A Luneta Mágica Joaquim Manuel de Macedo

A luneta mágica, de Joaquim Manuel de Macedo


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A Luneta Mágica, de Joaquim Manuel de Macedo, é um romance numa linha diferente de suas obras mais famosas, que descreve de uma maneira bem-humorada e crítica a realidade sócio-cultural do Brasil do final do Segundo Império.

Este livro é uma obra que se afasta do romance ligeiro de complicações amorosas e desenlaces piegas, não se aproxima de nada. Paira indecisa entre a fábula, o conto de fadas, e a historieta, tudo entremeado de digressões pseudo-filosóficas.

As freqüentes e nem sempre oportunas especulações sobre o Bem e o Mal se conduzem através de um discurso em que predomina o lugar-comum romântico, enunciado por um narrador que proclama sua miopia física e moral desde a primeira página.

Em primeira pessoa, Simplício, o narrador, conta-nos suas desventuras de míope que a duas polegadas dos olhos não distingue um girassol de uma violeta.

Uma espécie de fábula moral, este livro acaba por nos fazer pensar a respeito da relatividade do Bem e do Mal, além de nos dar um retrato bastante realista da sociedade da época.

Fruto da pena de um dos mais célebres romancistas brasileiros, A luneta mágica é uma história densa, fechada sobre si mesma, num esquema completo. Com uma tessitura filosófica que a perpassa do princípio ao fim, a novela é fantástica, metafórica, poética, lembrando um pouco a ficção científica quando a magia se configura em instrumentos de precisão: as lunetas utilizadas por Simplício.

A trama só poderia ocorrer com alguém como Simplício: um rapaz absurdamente míope, e mais absurdamente ainda crédulo, que narra detalhadamente as suas desventuras. Aprendiz de feiticeiro, ao desencadear forças que não sabia controlar, Simplício passa a enxergar normalmente ao receber de um misterioso armênio, cujo nome não é mencionado uma única vez, a luneta mágica, onde foi aprisionada uma salamandra (não o anfíbio, mas uma criatura de fábula). O mágico adverte o rapaz:

"Além do número de três minutos está a visão do mal, que o meu poder de mágico não te pode impedir; porque a visão do mal é a vingança da salamandra escrava; mas a fixidade dessa luneta além do número de treze minutos é a visão do futuro, e essa eu ta impeço."

E acrescenta que a luneta se quebrará nas mãos de Simplício, se ele tentar a experiência.

Simplício, claro, se deixa levar pela mórbida curiosidade de conhecer a terrível visão do Mal, e fixa a luneta (monóculo) por mais de três minutos. Resultado: tudo, mas tudo mesmo, se lhe afigura perverso, maléfico, traiçoeiro. Detalhista, o autor entra em minúcias curiosíssimas, espalhadas por uma infinidade de capítulos curtos. Vejam algumas amostras:

"O beija-flor é como a serpente pela extensibilidade da língua, e esta ainda nele se duplica, estendendo dois filetes, que lhe servem como as garras às aves de rapina. Finalmente assassino e destruidor, ele mata e devora em cada dia dezenas e dezenas de insetos inocentes, fracos e incapazes de defender-se, ousando sem continência, nem respeito ir arrancá-los do mais doce asilo, do seio mimoso das flores!..."

Após essa diatribe contra o colibri, que a visão do mal lhe revela ser um ente malvado e sádico, Simplício prossegue em suas decepções com a Natureza: "Vi uma pulga. A perversa estava cheia de sangue, talvez meu, com que se havia regalado (...) Inimiga declarada do homem e da senhora, ousa devassar o leito da honestidade e do recato, morder sem piedade a menina, a donzela, a esposa, a matrona (...) Vi o mosquito: outro monstro sanguinário dez vezes mais bárbaro que a pulga; porque a pulga farta-se do sangue em silêncio, e não zomba das vítimas, e o mosquito, à semelhança dos selvagens e dos bárbaros que dançavam festivos em roda dos cadáveres de suas vítimas, o mosquito, digo, bebe sangue ao som da música, ou antes e depois de bebê-lo em nossos corpos, canta enfadonho, insuportável, desatinador, insistente como o grilo."

E assim por diante: o cupim é "implacável", um "inseto-monstro", a aranha é "assassina, terrível". Se simples animais irracionais, inocentes, causaram tanto horror desvendados à "visão do mal", imaginem o que Simplício não vê nas pessoas! Para começar perde a confiança nos parentes com quem mora: o irmão Américo, a tia Domingas e a prima Anica. Todos eles se transformam, a seus olhos, sanguessugas exploradoras.

A visão do mal arrasta Simplício ao ceticismo, ao desespero, ao ponto de admitir: "Achei-me na terra sem um parente amado, sem um parente possível, sem uma noiva possível, sem sociedade possível..." O curioso é que quando Simplício troca de luneta e passa a ver o bem em todos e em tudo, sua situação não melhora. De certa forma até piora porque, confiando em todos, acaba vítima dos mais descarados vigaristas, emprestando dinheiro e assinando documentos, até colocar a família em pânico e ser ameaçado de interdição.

É incrível a credulidade de Simplício: com a visão do bem eis o que ele vê, quando visita a penitenciária: "Será incrível, mas é verdade: não há um só daqueles infelizes condenados que não seja inocente dos crimes que lhes imputam."

Essa credulidade pode até ser irritante para o leitor: será Simplício um completo imbecil? Será possível que ele não questione nem por um momento o que lhe mostram as lentes mágicas? Aliás em nenhum lugar do livro se explica como funciona a visão mágica, de que maneira o personagem percebe as qualidades morais que descreve. Isso deve ter sido embaraçoso para o autor, Joaquim Manuel de Macedo, e ele preferiu contornar a questão. Simplício admite a sua miopia moral; mas na verdade se ele não fosse assim o livro não poderia ser escrito. O autor levou o assunto à exacerbação, com o protagonista à beira da loucura sob o efeito da luneta, e só assim a mensagem pôde ser passada com todo o seu vigor. Assim, se a luneta mostra o mal, Simplício crê no mal; se mostra o bem, ele crê no bem.

Será maniqueísta a visão do livro? Não; é o anti-maniqueísmo. Nesse mundo, e principalmente nos seres humanos, as coisas boas e más estão misturadas. Por isso não se espera que as pessoas sejam inteiramente boas ou más. Por não compreender isso Simplício caminha para a auto-destruição, que só o armênio sem nome, o único que controla os acontecimentos, irá impedir na hora certa.

Há uma riqueza filosófica nessa novela cuja posição é singular na ficção brasileira; riqueza essa disfarçada, de certo modo, pela ingenuidade do estilo, estribado na ingenuidade do personagem central.

ENREDO

Como já vimos, a história narra a história de Simplício, um rapaz que padece de um mal terrível, uma dupla miopia: a miopia física, que o impede de ver ou distinguir qualquer coisa a duas polegadas de distância dos seus olhos, e a miopia moral que o impede de entender ou distinguir as idéias alheias ou de ajustar suas próprias idéias. Trata-se de um parvo, ingênuo.

Simplício ficou órfão aos 12 anos de idade e, desde então, vive com o mano Américo, que administra sua herança, com a devota tia Domingas e com a prima Anica. Certo dia, apesar de sua miopia, foi convidado para fazer parte de um júri. Lá conhece o Sr. Nunes que lhe fala do Reis, um gravador de vidros, capaz de resolver seu problema de miopia.

Depois de muitas tentativas, de lentes do mais alto grau, Reis reconhece que não pode ajudar Simplício, sua miopia é muito forte. Condoído, no entanto, com a dor do rapaz fala-lhe do Armênio - um artista de habilidades mágicas trazido da Europa pelo próprio Reis para trabalhar em sua oficina.

O desejo de Simplício de ver era tão grande que ele acaba aceitando ir visitar o Armênio. Este promete-lhe uma luneta mágica, mas avisa-lhe também que em pouco tempo o rapaz vai ter a convicção de que é melhor ser cego do que ver demais.

Assim, depois de pensar muito sobre tudo o que o Armênio havia lhe falado e consultar sua família, Simplício vai ao encontro do mágico no horário marcado, à meia-noite. Lá presencia o ritual de construção da luneta. Depois de muitas luzes, fogos e palavras mágicas, finalmente o mago entrega-lhe o objeto mágico, mas não antes de lhe avisar sobre os poderes e perigos da luneta: Simplício não deveria fixá-la mais de 3 minutos sobre qualquer objeto ou ser humano, pois assim passaria a ter a visão do mal (vingança da salamandra presa no vidro) e, além disso, não deveria também fixá-la em nada além de 13 minutos, pois esta seria a visão do futuro e, neste caso, para própria proteção do rapaz, a luneta se quebraria.

Ansioso com a possibilidade de enxergar, Simplício volta para casa e espera o amanhecer para experimentar a luneta. Maravilhado com a visão da aurora, acredita que será impossível ver qualquer coisa má nesta cena e decide, portanto, fixar sua luneta por mais de 3 minutos. De repente, fica horrorizado com o que vê: "-Meu Deus!... como a aurora é enganadora e falsa!... e como o sol é feio, terrível e mau!!!". Concorda com o Armênio e diz que basta a visão da superfície e das aparências, a felicidade do homem está nas ilusões dos sentidos, nos enganos da alma, quer ser feliz e, portanto, não fará mais uso da visão do mal. No entanto, nosso jovem ingênuo, acaba por não resistir à visão do mal e começa a fixar sua luneta sobre tudo e todos.

A visão do mal permite-lhe ver a 'verdade' sobre: prima Anica, moça fria, sem sentimentos, mulher-cálculo, incapaz de amizade, interessada em casar Américo ou com Simplício por causa da fortuna; mano Américo, ambicioso avarento, rouba a família na administração dos bens; tia Domingas, invejosa, fofoqueira, sovina, deseja o casamento da filha com Américo pela fortuna.

Estas descobertas deixam Simplício horrorizado e decepcionado fazendo-o decidir procurar um advogado para administrar seus bens e uma esposa para formar uma nova família. Procura o Nunes para que este o ajude com seus planos. No entanto, ao fixar sua luneta sobre o velho, descobre um farsante e interesseiro.

Passa-se um mês e ele só encontra decepções, ninguém em quem confiar, nada em que acreditar. Os amigos são todos interesseiros, exploradores, as moças são todas falsas e impuras.

De repente, a cidade inteira comenta sua loucura e ele passa a ser perseguido e execrado em todos os locais. A família decide que ele está doente, tranca-o em casa e quer destruir sua luneta. A visita de um médico, no entanto, impede que ele seja declarado louco. Todos concordam que ele foi iludido pela magia e que com amor e carinho conseguirá superar tudo.

Ainda assim, Simplício não entrega a luneta e sabe que, embora não seja considerado louco será visto como um maníaco, portanto não há salvação. Decide, então, que a única coisa que poderá salvá-lo será a visão do futuro. Ele quer saber qual o seu futuro e por isso decide fixar a luneta nele mesmo, no espelho, por mais de 13 minutos. Entretanto, antes de chegar na visão do futuro, chega à visão do mal e se descobre um infame, caluniador, um inimigo da família, um homem capaz de maldizer todas as criações de Deus, um maldito... Antes de chegar na visão do futuro, a luneta quebra-se em suas mãos.

De novo, Simplício acha-se na escuridão, arrependido de ultrapassar a visão da superfície e das aparências, descobre-se, agora, sem nada, sem qualquer possibilidade de ver.

Depois de 8 dias enclausurado em casa, decide que já pode sair, as pessoas não lembrarão de mais nada - "Não há atividade de opinião que resista à extensão, à eternidade de oito dias na nossa capital".

Durante o passeio, reencontra o Reis que lhe conta sobre as fofocas do Nunes e o convence a, novamente, procurar o Armênio. Assim, fica combinado um novo encontro, à meia-noite, no gabinete do mágico.

Mais uma vez Simplício presencia todo o ritual de construção da nova luneta e ouve os alertas do Armênio sobre o uso correto da lente. Dessa vez, se fixada por mais de três minutos, ela lhe dará a visão do bem.

Ao voltar para casa, esperançoso e feliz com a possibilidade de ver novamente, Simplício decide que escreverá a todos os jornais e falará sobre as maravilhas de que o Armênio é capaz. Ele não entende a descrença do Reis nas potencialidades mágicas. Acredita que o Armênio poderá ajudar muitas outras pessoas e que, portanto, não faz sentido manter tudo isso em segredo.

Depois de se questionar sobre que mal poderia haver na visão do bem, mais uma vez Simplício desobedece o mágico e fixa sua luneta por mais de três minutos. Começa por enxergar a prima Anica, um anjo de inocência e de candura; tia Domingas, a devoção e a piedade personalizada; o mano Américo, a pura dedicação fraternal.

"-Eu tinha a febre da felicidade. O mundo e a vida me festejavam o coração; eu desejava rir, divertir-me, folgar".

Maravilhado com a visão do bem, apaixona-se pela prima Anica e por mais trinta e tantas outras moças, inclusive por Esmeralda, uma conhecida prostituta do "Alcasar Lírico". Reconhece a bondade e a pureza de coração em todos que dele se aproximam, ajuda a todos, paga jantares, dá esmolas, contribui para fundos de caridades através dos "amigos", que são cada vez em maior número. Reencontra o Nunes, visita-lhe a família, apaixona-se por sua filha, salda suas dívidas. Enfim, passa a ser explorado e ridicularizado por todos sem perceber. Quando alguns tentam lhe avisar sobre o que está acontecendo, fica confuso, pois descobre a verdade na boca destas almas boas, mas não entende como isso pode ser possível.

Mais uma vez desesperado e angustiado, descobre que a visão do bem é um martírio.

Com a alma atormentada, presencia um funeral e percebe a beleza, a felicidade da morte. Decide, portanto, que o melhor que tem a fazer é morrer. Como não tem armas ou veneno, nem meios para consegui-los, sobe até o alto do Corcovado para se jogar de lá de cima. Antes, porém, pensa uma vez na visão do futuro, dá uma última olhada através da luneta mágica para cidade, a capital do Império do Brasil. Passa-se os treze minutos e a luneta se quebra em suas mãos. Mais uma vez nas trevas, Simplício não hesita e se joga do para peito... Duas mãos possantes, no entanto, suspenderam-lhe pelas orelhas - era o Armênio.

Depois de conversarem sobre tudo o que havia acontecido, o mágico fala-lhe sobre as lições das lunetas:

"Exagerar é mentir."

"No mundo há o bem e o mal, como há na vida o prazer e a dor."

"Mas o bem é o bem, o mal é o mal como são e não podem deixar de ser para humanidade que é imperfeita: perfeito bem, absoluto mal não há para ela."

"A imperfeição e a contingência da humanidade são as únicas idéias que podem fundamentar um juízo certo sobre todos os homens... Cada qual é o que é e cada qual tem as suas qualidades, e seus defeitos."

Depois desta conversa, o Armênio decidiu dar-lhe uma última luneta mágica - A Luneta do Bom Senso. Desta vez, no entanto, Reis faz Simplício prometer segredo sobre o assunto.