sexta-feira, 2 de maio de 2014

A menina de lá.Guimarães -Rosa Primeiras histórias.

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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Casa de Pensão, de Aluísio de Azevedo

para ler ou imprimir a obra clique aqui
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000014.pdf




 
Análise da obra

A obra foi baseada num fato real: a Questão Capistrano, crime que sensibilizou o Rio de Janeiro em 1876/77, envolvendo dois estudantes, em situação muito próxima à da narração de Aluísio Azevedo. Neste livro, o autor estuda as influências da sociedade sobre o indivíduo sem qualquer idealização romântica, retratando rigorosamente a realidade social trazendo para a literatura um Brasil até então ignorada.

Autor fiel à tendência naturalista difundida pelo realismo, Aluísio Azevedo focaliza, nesta obra, problemas como preconceitos de classe, de raças, a miséria e as injustiças sociais. Descreve a vida nas pensões chamadas familiares, onde se hospedavam jovens que vinham do interior para estudar na capital. Diferente do romantismo, o naturalismo enfatiza o lado patológico do ser humano, as perversões dos desejos e o comportamento das pessoas influenciado pelo meio em que vivem.

Casa de Pensão é uma espécie de narrativa intermediária entre o romance de personagem (O Mulato) e o romance de espaço (O Cortiço). Como em O Mulato, todas as ações ainda estão vinculadas à trajetória do herói, nesse caso, Amâncio de Vasconcelos. Mas, como em O Cortiço, a conquista, ordenação e manutenção de um espaço é que impulsiona, motiva e ordena a ação. Espaço e personagem lutam, lado a lado, para evitar a degradação.

As teses naturalistas, especialmente o Determinismo, alicerçam a construção das personagens e das tramas.

Romance naturalista de 1884, em que o autor, de carreira diplomática bastante acidentada, move personagens que se coadunam perfeitamente com a análise dos críticos de que seus tipos são, via de regra, grosseiros, não se distinguem pela sutileza da compreensão, nem pela frescura dos sentimentos. São eixos de relações da estrutura da presente narrativa a Província - Maranhão, a Corte - Rio de Janeiro, a casa paterna e a casa de pensão.

Estilo

O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão desde a abertura do romance, quando Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes...". O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro."  Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem.

Está presente também na obra o sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. Como já mencionado, a estória do romance se baseia num caso real.

Linguagem

Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos.

Não se pode dizer que a linguagem do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.

Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise (é uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal). São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Se me não engano, você está certo." Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum.

Foco narrativo

O autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais.

Temática

Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. Em O Cortiço o meio social é mais baixo; na Casa de Pensão é médio.

Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na Casa de Pensão de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor...

Personagens

Os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais:

Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos - (João Capistrano da Silva) estudante, acusado de sedução. Foi absolvido.

Amélia ou Amelita - (Júlia Pereira) a moça seduzida, pivô da tragédia.

Mme. Brizard - (D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino) é uma viúva, dona da casa de pensão: 

João Coqueiro - Janjão - (Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido).

Dr. Teles de Moura - (Dr. Jansen de Castro Júnior) advogado da família da moça.

Enredo

Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.

Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, forçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires.

Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.

"Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores."

A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro...

O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê-la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...

Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.

"Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca.

Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado...

Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.

Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos.

A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...

Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris...

QUESTÃO CAPISTRANO


Notório crime passional ocupou as manchetes dos jornais cariocas e foi inspiração para o enredo do romance "Casa de Pensão"
Em janeiro de 1876, a cidade do Rio de Janeiro foi assolada pela notícia de um crime envolvendo dois amigos. A história, que tomou ares de novela ao dividir opiniões, suscitar debates e causar comoção, ficou conhecida como Questão Capistrano, devido ao sobrenome de um dos jovens envolvidos na tragédia.
Pode-se considerar que o caso de polícia, protagonizado pelos inseparáveis amigos João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira, foi popularizado porque continha todos os ingredientes de uma boa trama: romance, amizade, honra, vingança e assassinato. Assim, a opinião pública envolveu-se nos acontecimentos, dividiu-se em juízos, mas, sobretudo, polemizou.
O tema mereceu destaque na biografia de Aluísio Azevedo escrita por Raimundo de Menezes que, no capítulo "O crime do estudante Capistrano", relata as minúcias do acontecido. Eis como o enredo que inspirou o romance "Casa de Pensão", de Aluísio Azevedo, principia...
A viúva baiana Júlia Clara Pereira, com dificuldades para sustentar as despesas da família somente com a quantia advinda das aulas de piano, delibera alugar outra casa, maior e mais confortável, que lhe possibilitaria alugar alguns quartos e, com isso, prosperar sua renda mensal. Assim, muda-se com os filhos Antônio Alexandre Pereira e Júlia Pereira para a rua do Alcântara, sob o número 71, local em que estabelece uma casa de pensão.
Entre os primeiros pensionistas encontra-se o paranaense João Capistrano da Cunha, colega de Antônio Alexandre na Escola Politécnica, considerado confiável e, portanto, acolhido carinhosamente no seio da família Pereira.
Com o convívio cotidiano, Capistrano e Júlia enlaçam um namoro, no qual a concupiscência leva o desventurado jovem a adentrar o quarto da moça, em uma madrugada de janeiro de 1876, e no ímpeto violentá-la.
Após a filha relatar o acontecido na noite anterior, Dona Júlia exige explicações do estudante que, com pretextos, intenta adiar o matrimônio, compromisso que repararia o dano causado. Feita a promessa, João Capistrano atravessa semanas e meses sem movimentar-se no sentido do cumprimento de sua palavra até que desaparece de vez, sem deixar notícias. Com isso, a família apresenta queixa-crime na delegacia mais próxima, acompanhados do causídico dr. Jansen de Castro Júnior, para pleitear uma indenização de 50 contos pelo prejuízo à honra da menina Júlia.
O julgamento tem início e a imprensa não tarda em estampar seus desdobramentos nas colunas diárias sobre o caso, inflamando a opinião pública a se manifestar ora a favor do casamento reparador dos danos causados ora a favor da imputação de uma severa pena ao jovem sedutor.
No Tribunal, João Capistrano da Cunha tem como defensores os advogados Busch Varela e Duque Estrada Teixeira, além do conselheiro Saldanha Marinho. Figura como promotor público interino o dr. Ferreira de Oliveira, que produz vigorosa acusação. Completando o cenário, tem-se uma agigantada massa popular desejosa de acompanhar os detalhes do julgamento.
Após a contestação do dr. Bush Varela, há a réplica do promotor, seguida pelos dizeres de Duque Estrada Teixeira e Saldanha Marinho. O resultado dos enérgicos debates é a absolvição do jovem Capistrano que, para festejar o veredicto favorável, reúne os amigos no Hotel Paris, em festança exuberante comentada por toda sociedade fluminense.
Para Antônio Alexandre, a irresignável sentença demandaria que ele próprio tomasse uma atitude para restaurar a honra de sua família e, principalmente, de sua irmã, cujo incessante choro denota a vergonha e a profunda prostração. Deste modo, articula por três dias uma possível solução que impusesse ao ex-amigo uma lição.
Assim, o irmão inconformado sai à procura do estudante, encontrando-o à rua da Quitanda, quando caminhava para casa de um negociante. Empunhando uma arma de 25 cápsulas, atira em João Capistrano pelas costas, ceifando-lhe a vida em plena luz do dia. E, após tentar sem sucesso a fuga, é preso em flagrante e entregue à Justiça.
Os alunos da Politécnica, comovidos pelo crime e enlutados, homenageiam o falecido, tornando o enterro praticamente uma glorificação pública. Até o próprio Visconde do Rio Branco, diretor da Escola, suspende as aulas por dois dias.
Pelo assassinato, Antônio Alexandre é levado a julgamento a 20 de janeiro de 1877 e tem a defesa elaborada pelo já conhecido dr. Jansen de Castro Jr. Neste momento, o público que alimentava antipatias pela família Pereira, compadece-se pelo irmão que agiu em defesa da honra. Com isso, o mesmo júri que remiu Capistrano também absolveu seu assassino... por unanimidade de votos! E, por paradoxal que pareça, aqueles que na véspera homenageavam o colega morto foram quem também ovacionaram o amigo que ganhava a liberdade.

JORNAIS DA ÉPOCA

Na Gazeta de Notícias, de 20 de novembro de 1876, lia-se:
"A população de nossa cidade foi ontem sobressaltada por um triste acontecimento, terrível desenlace de um drama, que há pouco, todos presenciamos e que além de duas famílias, veio encher de luto a mocidade acadêmica, roubando-lhe um de seus membros.
(...)
Às dez horas da manhã, na rua da Quitanda, o estudante da escola Politécnica João Capistrano da Cunha, que há três dias o júri absolveu da acusação de ter violentado D. Júlia, foi assassinado com dois tiros de revólver por Alexandre Pereira, irmão de D. Júlia."
Já o conservador Jornal do Comércio, sob o título ASSASSINATO CAPISTRANO, assim mesmo, em caixa alta, estampava em suas páginas do dia 21 de novembro:
"Ontem, logo depois do meio-dia, algumas ruas das mais centrais, e com especialidade a da Quitanda..."
E segue o relato, em linguagem esmerada, que lembra a da ficção, para finalmente fechar o texto informando que os advogados que cuidaram da defesa e absolvição de Capistrano levaram-no ao cemitério:
"Carregaram a princípio o caixão os Srs. conselheiro Saldanha Marinho, Drs. Duque Estrada Teixeira, Busch Varela, Pinto Júnior e os Srs. Matos Cruz e Nunes de Sá. Era na verdade uma cena bem comovente aquele féretro, rodeado de mancebos que, trajados de preto e com a tristeza estampada no rosto iam levar à última morada o companheiro de todos os dias, tanto nas árduas lidas do estudo, como nos descuidosos prazeres da mocidade."

DA REALIDADE À FICÇÃO
Observa-se, portanto, que o crime foi narrado por vários gêneros diferentes, mostrando-se arqueável e apto a transitar na convergente fronteira da realidade jornalística e da ficção literária. Assim, a Questão Capistrano resgata a dicotomia emblemática da fatualidade e da ficção, exemplificada com maestria na trama naturalista de Aluísio Azevedo.


As várias Canções do Exílio




Parodiar a Canção do exílio, de Gonçalves Dias, tornou-se aos poucos uma conduta literária. Os poetas Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e José Paulo Paes, entre outros, serviram-se desse poema, para, a partir da matriz romântica, fazer uma espécie de desvelamento do país. O nativismo de outrora desaparece em meio ao olhar crítico, que, a cada novo momento, apanha uma faceta do Brasil e, ao mesmo tempo, reavalia um ponto de vista. Oswald não des­merece a riqueza nacional, “Minha terra tem mais ouro/ Minha terra tem mais terra” (Canto do regresso à pátria), porém, remete-se a ela lembran­do-se também dos que a manusearam em benefício de poucos: “Minha terra tem palmares”. A astúcia de Oswald é admirável. Ele encontra con­vivendo ao lado da riqueza natural (“palmeiras”) a dor e a miséria que marcam a escravidão (“palmares”). No entanto, o poeta não deixa de ser também inocente. Ao reavivar o estigma da escravidão, Oswald desmisti­fica, de um lado, os atrativos e as benesses do solo pátrio, de outro, entre­tanto, parece retomar a inocência de antes, na medida em que mistifica a modernização11. Ao final do poema é feita uma espécie de súplica:
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo
José Paulo Paes, por sua vez, valoriza em sua versão o entredito. Diferente do momento histórico do poeta modernista, o terreno sobre o qual José Paulo se desloca pode ser considerado minado. A dificuldade de se impor às claras contra a ditadura o obriga a ser um homem de meias palavras. Mas são murmúrios que dizem muito dos apuros do cotidiano. O sussurro e a elipse são reveladores do sistema de opressão. O poema Canção de exílio facilitada limita a conversa ao mínimo, e o mínimo faz as palavras se encherem de significado:
lá?
ah!
sabiá…
papá…
maná…

sofá…
sinhá…
cá?
bah!
Embora o pano de fundo se mantenha, a versão de Cacaso é mais lúdica, mais irônica e menos elíptica, o humor lhe serve de instrumento para abordar a tensão e os dilemas que faziam do cotidiano uma zona de combate (ainda que nesse combate não pudesse ser incluída a maioria dos brasileiros). O poema resume em sua trajetória (as alamedas são muitas e variadas entre si) um modo de ver o Brasil que pode ser visualizado do ponto de vista romântico, bem-humorado ou lúdico e, ao mesmo tempo, desencantado. Caminha-se, assim, das belezas às mazelas nacionais:
Jogos florais12
I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho
vira direto vinagre.
II
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
(será mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?)

temos a impressão de avistar em Jogos florais um pouco da nostalgia da Canção do exílio: a natureza em seu esplendor e o saudosismo que faz embevecer o espírito colocam-se por instantes. O sentimento teria sido preservado se não se substituísse notadamente o “sabiá”: “Minha terra tem palmeiras/ onde canta o tico-tico.” O atrevi­mento e a malícia que se associam ao “tico-tico” passam a habitar natu­ralmente a imagem do “sabiá”; e vice-versa, a amabilidade que define o sabiá marca o comportamento do “tico-tico”. O “sabiá” torna-se uma ave de rapina: “vive comendo o meu fubá”.
Alude-se aqui ao choro de Zequinha de Abreu Tico-tico no fubá. Cacaso mostra-se consciente do alcance dessa parodia no momento em que mescla com precisão o saudosismo do poema romântico à ludicidade da canção. A troca das aves reforça os traços de cada um dos elementos em jogo. Acontece que com isso se invalida aquela nostalgia da abertura. A inocência, não por acaso, se esvai e, nesse escoar, cede a vez a uma visão de mundo que se mostra menos cândida e mais analítica sobre o território nacional. Basta ler com atenção a segunda estrofe para se notar o olhar de reprovação com relação ao desenvolvimento do Brasil e espe­cialmente ao “milagre econômico”, que parecia ser mesmo uma bênção: “a água já não vira vinho/ vira direto vinagre”.
Associa-se o avanço da economia ao relato bíblico, sinal com o qual Jesus revelou-se como o cordeiro de Deus a ser sacrificado para salvar os homens. Se o intuito não é necessariamente expressar o grau de falsidade do “milagre econômico” (os historiadores se encarregaram de examinar em detalhes as contradições que o constituíam), associar ao milagre o relato bíblico ajuda a escancarar a virulência da moderni­zação. A velocidade do processo é tamanha que se converte a “água” em “vinagre”. O Messias daqui não veio redimir o indivíduo, livrando-o de seus pecados, mas, sim, submetê-lo ao consumo, ao jogo de interesses, ao Deus dinheiro, etc. O poeta retira da modernização o brilho, a áurea de felicidade e a sensação de bem-estar que a ela se associam para cativar o indivíduo e prendê-lo em sua rede. A exclusão de tais mecanismos de persuasão faz sobressair o produto da modernização em curso: a agres­sividade de suas ações.
Havíamos visto em Canto do regresso à pátria, de Oswald de An­drade, uma mudança que extraiu do Brasil majestoso o custo desta ma­jestade: “Minha terra tem palmares”. A sacada do poeta modernista foi bem aproveitada em Jogos florais. Cacaso amplia o alcance dessa modi­ficação, escrevendo em maiúsculo, para surtir ainda mais efeito, o que antes vinha meio acanhado: “Minha terra tem Palmares”.
A falta de liberdade de expressão é também a perda da Liberdade. O fato de se recordar, em plena ditadura militar, do ambiente onde os negros escravizados refugiavam-se para se livrar do jugo dos senhores de escravo é bem sintomático da condição dos núcleos de resistência ao longo do regime militar. Os membros da guerrilha urbana são também fugitivos. E os órgãos de vigilância corresponderiam mutatis mutandis aos capitães do mato de outros tempos. Dois momentos históricos se cruzam e, ainda que exijam dois modos de avaliar o tema da opressão, levando-se em conta todas as diferenças que os individualizam, há que se considerar, no entanto, o ambiente de opressão, o clima de terror que autoriza uma associação como esta, favorecendo, então, o confronto de dois períodos da história brasileira. É uma relação que vem a calhar. Ou viria, não fosse por certo o temor de ser um dia, quem sabe, uma das vítimas da repressão: “memória cala-te já.”
O receio de se expor em demasia reflete o cotidiano de quem se sente mesmo intimidado pelos acontecimentos e deles não consegue se desvincular a fim de lutar ao menos contra si mesmo. Os versos finais da primeira estrofe ensaiam uma reação que parece acentuar esse sentimen­to, pois, em se tratando de atenuar o que se disse até o momento, se produz uma cortina de fumaça: “Peço licença poética/ Belém capital Pará”.
A saída do poeta é fazer do verso “memória cala-te já” uma rima com “Belém capital Pará”, que, diferentemente do que se constata no Poema de sete faces, “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”, é uma solução em Jogos florais. Assim como ajuda a despistar também o disfarce da em­briaguez: “dado o avançado da hora/ errata e efeitos do vinho”
A fonte de referência parece ser de novo Carlos Drummond de Andrade: “mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovido como o diabo.” A bebida pode mudar, mas não muda, porém, a força do álcool e sua capacidade de alterar o eixo do indivíduo, que fica mais “co­movido” e mais falante do que deveria, deixando escapar naturalmen­te o que há muito está reprimido. Esse efeito do álcool se adequa bem aos movimentos da paródia: “a cavaleiro entre a razão desmistificado­ra (enquanto analisa e ironiza formas alienadas de dizer) e a pura vio­lência do instinto de morte,” que não reconhece barreiras. Ainda que se tenha silenciado a “memória”, e o “vinho” sirva de desculpa, o dedo  continua em riste, mesmo em pensamento, como traz ao final Jogos flo­rais, que anuncia, pelo avesso, os problemas do Brasil. A bola da vez é o oponente Jarbas Passarinho, ex-ministro da Educação. A pilhéria com seu sobrenome – “(será mesmo com esses/que se escreve paçarinho?)” – é uma maneira de alertar sobre as deficiências do ensino público. Ao inserir tais versos no poema Cacaso reinicia um discurso que parecia ter sido encerrado, e sua irreverência, mais uma vez, volta a servir de recurso para abordar o cotidiano e seus impasses.
Compositores também escreveram releituras da Canção do Exílio. Na MPB, o exemplo mais conhecido é a canção "Sabiá", composta por Tom Jobim e Chico Buarque. A música foi composta pelo Tom, intitulada, a princípio, Gávea. Recebeu, em seguida, a letra de Chico Buarque e passou a se chamar Sabiá.
Apresentada no III Festival Internacional da Canção, em 1968, recebeu uma sonora vaia no Maracanãzinho já que concorria com “Prá não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, a preferida pelo público. Foi taxada de alienada e desvinculada da realidade nacional por alguns e de nova “Canção do Exílio” por outros. Apesar de toda rejeição e polêmica, acabou sendo premiada.
Por ironia, no final do mesmo ano, os militares baixaram o AI-5 e fecharam o Congresso. Chico Buarque se viu pressionado a deixar o país. e o sabiá e a palmeira passaram a ser símbolos, também, do exílio político.

Sabiá

Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir
Cantar uma Sabiá...

Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira que já não há
Colher a flor que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia...

Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer...

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
E é pra ficar
Sei que o amor existe
Não sou mais triste
E a nova vida já vai chegar
E a solidão vai se acabar...
E a solidão vai se acabar...
A referência ao sabiá e à palmeira já nos remete à Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, mas de uma forma mais triste, melancólica como que para mostrar que essa volta é impossível.
No reconhecimento de uma pátria esvaziada e sem perspectiva de modificação próxima, Chico usa a negação do símbolo palmeira:

"Vou deitar à sombra
de uma palmeira que já não há
Colher a flor que já não dá"

Na música “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, os valores de sua terra foram destruídos, mas o “eu” poético tem esperança de voltar e encontrar um novo tempo capaz de modificar a realidade destruída. Durante toda a canção aparece a dualidade entre o desejo que se queria real e a realidade que se tem:

“ Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá.”
Como numa visão premonitória baseada pela situação do país, o autor da letra percebia a solidão das noites de exílio que iria viver longe das palmeiras e sabiás:

“As noites que eu não queria
E anuncia o dia.”
Mesmo existindo o sentimento de perda, existencial e político, durante toda a música ainda há o desejo do regresso para o lugar de paz – a pátria. Se na Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, a pátria corresponde a um lugar de prazer, na música Sabiá essa pátria foi desfigurada principalmente na sua essência. O exílio é de todos. O regresso, então, seria a volta a uma realidade diferente do regime militar vigente na época:

“Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir
Cantar uma Sabiá”
A esperança do regresso é viva e a saudade tem um sentido social: a recuperação da pátria perdida.
Carlos Drummond de Andrade também escreve a sua Nova canção do exílio, em 1945, que é dedicada a Josué Montello. Das diferentes leituras do poema Canção do Exílio que possibilitam o conhecimento da nossa pátria ao mesmo tempo em que nos reconhecemos como parte dela, é meu preferido.
Drummond, mais filosófico, reflete, em seu poema, sobre a distância da felicidade existente na sua terra natal e não tem o tom crítico de Oswald de Andrade e Murilo Mendes.
O poeta, em sua releitura, retoma a imagem do sabiá e da palmeira para idealizar um lugar indeterminado. Na construção “um sabiá, na palmeira, longe” percebe-se a indeterminação – de qual sabiá? Em que palmeira? Longe onde? Como sabiá e palmeira já estão plantados na imaginação do leitor, ele apenas os enuncia.
No final do poema, o poeta inverte a posição do sabiá/palmeira e, além de determinar “a palmeira, o sabiá”, através do uso do artigo definido, substantiva o advérbio “longe”, reforçando a ideia de exílio: o “longe”, lugar de onde veio. Esse afastamento constitui o seu exílio.
Drummond vai além do nacionalismo, discute sobre os lugares míticos que criamos na imaginação, em geral associados à terra natal: "onde tudo é belo / e fantástico: / a palmeira, o sabiá, / o longe".

Nova Canção do Exílio

Um sabiá
na palmeira, longe.

Estas aves cantam
um outro canto.

O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.

Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.

Onde tudo é belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)

Ainda um grito de vida e
voltar
para onde tudo é belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.

(Carlos Drummond de Andrade)
O sucesso alcançado pelo poema Canção do Exílio de Gonçalves Dias tornou-se o grande paradigma do nacionalismo literário no Brasil. Vários poetas, posteriores a Gonçalves Dias, seguiram a mesma linha explicitando um olhar otimista e, ao mesmo tempo, saudoso sobre o país.
Casimiro de Abreu, contemporâneo de Gonçalves Dias, usa a mesma temática em alguns de seus poemas.

Em 1855, Casimiro de Abreu também escreveu uma canção do exílio:

Eu nasci além dos mares

Eu nasci além dos mares:
Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
― Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!

Oh! Que céu, que terra aquela,
Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas,
Não exalas, meu Brasil!

Oh! Que saudades tamanhas
Das montanhas,
Daqueles campos natais!
Que se mira,
Que se mira nos cristais!

Não amo a terra do exílio
Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras
E as palmeiras tão gentis!

Como a ave dos palmares
Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho;
Sem carinho
Sem carinho e sem amor!

Debalde eu olho e procuro...
Tudo escuro
Só vejo em roda de mim!
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.

Distante do solo amado
― Desterrado ―
a vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país!
(Casimiro de Abreu)

Em outro poema, datado de 1856, Casimiro de Abreu usa como epígrafe os dois primeiros versos do poema de Gonçalves Dias, mostrando as qualidades que existem amplamente no Brasil por ser a “minha terra” e que não existem em qualquer outro lugar.

Minha Terra

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.
(Gonçalves Dias)

Todos cantam sua terra,
Também vou cantar a minha,
Nas débeis cordas da lira
Hei de fazê-la minha rainha;

— Hei de dar-lhe a realeza
Nesse trono de beleza
Em que a mão da natureza
Esmerou-se em quanto tinha.

Correi pras bandas do sul:
Debaixo dum céu de anil
Encontrareis o gigante
Santa Cruz, hoje Brasil;
— É uma terra de amores
Alcatifada de flores
Onde a brisa fala amores
Nas belas tardes de Abril.

Tem tantas belezas, tantas,
A minha terra natal.
Que nem as sonha um poeta
E nem as canta um mortal!
— É uma terra encantada
— Mimoso jardim de fada —
Do mundo todo invejada,
Que o mundo não tem igual.

Não, não tem, que Deus fadou-a
Dentre todas — a primeira:
Deu-lhe esses campos bordados,
Deu-lhe os leques das palmeiras.
E a borboleta que adeja.
Sobre as flores que ela beija.
Quando o vento rumoreja
Nas folhagens da mangueira.

É um país majestoso
Essa terra de Tupã,
Desd’o Amazonas ao Prata,
Do Rio Grande ao Pará!
— Tem serranias gigantes
E tem bosques verdejantes
Que repetem incessantes
Os cantos do sabiá.
(...)
(Casimiro de Abreu)

Em sua “Canção do Exílio” continua seguindo a mesma temática, apenas acrescentando ao poema uma referência à sua infância, à figura materna e substituindo “palmeiras” por “laranjeiras”.
Essa “Canção do Exílio” foi escrita em Lisboa, no ano de 1857. O poema soa como uma premonição de um desejo que na verdade se realizou, já que morreu aos 21 anos de idade, em terras brasileiras.

Canção do Exílio

Se eu tenho que morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já:
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando êste ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas
Do que a pátria não tem;
E este mundo não vale um só de beijos
Tão doces de uma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava
Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já:
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!
(Casimiro de Abreu)


O modernista Murilo Mendes, em 1930, também revisitou a Canção do Exílio de Gonçalves Dias. Se o poema de Gonçalves Dias e o Hino Nacional são uma exaltação ufanista da natureza brasileira, os versos de Murilo Mendes tem intenção oposta, pois pretendem ridicularizar esse nacionalismo exaltado.
Murilo escreve sua "Canção do Exílio", empregando o mesmo tom paródico-piadista de Oswald de Andrade. Em sua “Canção do Exílio”, utiliza o mesmo humor e sátira de Oswald, porém de forma mais ousada denuncia a invasão cultural estrangeira no Brasil. Seu poema critica a realidade cultural brasileira. Ele não aceita tudo o que vêm de fora já que também temos coisas boas que devem ser valorizadas. As nossas frutas, como são exportadas, tem o preço elevado e o poeta é um exilado em sua própria terra.
Sua terra se torna verdadeiramente seu Brasil, quando manifesta a vontade de “chupar uma carambola de verdade” e de ouvir um sabiá (pássaro ou povo), que tenha certidão de nascimento brasileira, cantar.

Canção do Exílio

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas.
Os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossa flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de identidade!
(Murilo Mendes)