sexta-feira, 18 de abril de 2014

Uma faca só lâmina

João Cabral de Melo Neto e o estilo da faca
Uma faca só lâmina



O poema “Uma faca só lâmina”, de João Cabral de Melo Neto, se compõe


de 348 versos, divididos em nove partes intituladas por letras maiúsculas de A a


precedidas por uma introdução e seguidas de um epílogo. Cada uma contém oito


quadras de rimas pares. Ele se constrói a partir de relações comparativas,


baseadas em três objetos: a bala, o relógio e a faca. O primeiro verso já indica


tratar-se de uma espécie de discurso interrompido. O leitor se depara com a


expressão “Assim como”, que provoca a sensação de continuação de uma fala


anterior. Outras expressões, “qual”, “igual a” aparecem no restante do poema e


perpetuam essa idéia. Ao mesmo tempo, pressupõe-se um diálogo e, portanto, a


existência de um interlocutor, devido ao “vossa anatomia” presente no verso 24






A dificuldade de falar sobre o objeto leva ao uso de uma série de


metáforas. Não se consegue descrever o objeto a partir dele próprio, então se


utilizam outros objetos para construir imagens a fim de tentar chegar até ele.


Embora se encontrem no lugar da coisa comparada, não a representa, são


insuficientes. Estabelecem-se comparações, relações, porém não se chega ao


objeto por meio delas, mas ele parece se esquivar, se esvair.


Seja bala, relógio,


Ou a lâmina colérica,


É contudo uma ausência


O que esse homem leva.






A indefinição do objeto se define pela ausência, talvez, por isso, a


dificuldade, por não se conhecer os limites da ausência. Em A, três estrofes se


iniciam pelos contraditórios versos “...o que não está/ nele está como...” É a


presença da ausência, paradoxo caracterizador, que habita tanto o corpo físico


quanto o espiritual. Haveria uma condição humana de ausência, capaz de garantir


universalidade a todos os homens.






Os casos exemplares da bala, que pesa, do relógio pulsante e da faca, que


corta, suprimem metaforicamente a coisa comparada, mas ao mesmo tempo é


designada por elas como ausente. Todas as imagens carregam significações


contraditórias. Ao invadir um corpo, uma bala torna-o mais pesado, mas o que se


agrega a esse corpo, na verdade, não pretende lhe acrescentar nada, pois está ali


para lhe tirar a vida. O relógio, que pulsa impiedosamente, parece querer lembrar


que a cada movimento retira mais um instante da vida do homem, que


irremediavelmente não mais voltará.


Apesar de fazer uso da “bala” e do “relógio”, a imagem mais próxima é a da


faca, mais especificamente da “faca que só tivesse lâmina”.


porque nenhum indica


essa ausência tão ávida


como a imagem da faca


que só tivesse lâmina


O próprio título da obra já demonstra essa carência, uma faca cujo cabo lhe


falta, daí a dificuldade de pegá-la. Como segurar uma faca com apenas a lâmina?


Como manuseá-la? Quem tentar segurá-la, certamente se cortará, pois ela é toda


corte, pronta para cortar e machucar o tempo todo, totalmente potência arisca


para ferir. E essa justamente é a sua natureza: do corte, da ferida impiedosa. A


parte B se dedica a descrevê-la pela essência que a caracteriza:


medra não do que come


porém do que jejua.






Ela não perde o corte por cortar, mas por não cortar. Traz em si essa


potência inegável, que precisa se manifestar para ser ela mesma com mais


intensidade, para se mostrar em toda a sua plenitude.


a lâmina despida


que cresce ao se gastar,


que quanto menos dorme


quanto menos sono há






Os versos componentes da parte C abordam o cuidado necessário com o


objeto, no manuseio dele, ou seja, quem o utiliza deve se assegurar de algumas


precauções. Contudo, “o importante é que a faca/ o seu ardor não perca”, há os


interessados na manutenção dessa faca só lâmina para que a madeira não a


corrompa. A madeira pode corromper, por ocupar o espaço que também poderia


ser lâmina e, assim, menos lâmina, menos corte. Também a madeira constitui o


local reservado para quem pretende segurar a faca, lembrando a responsabilidade


da mão que a direciona. A faca é potência de corte, mas sozinha ela não sai do


lugar. Todo poder de destruição que encerra depende da mão humana para vir à tona.






Mesmo parada, guarda a potência “talvez que não se apague/ e somente


adormeça” na “maré-baixa”. O fato de manter-se inativa não significa que assim


permanecerá.


(Porém quando a maré


já nem se espera mais,


eis que a faca ressurge


com todos seus cristais)


Seja bala, relógio ou faca está interiorizado, como mencionado na


introdução (“enterrada no corpo”, “submerso em algum corpo”) e reiterado em G


(“encerrado no corpo”). Não se pode retirar, faz parte do ser humano, lhe é


indissociável, próprio, e do qual ninguém pode privá-lo. Uma ausência que o


integra, da qual não se pode fugir, pois lhe é inerente (“leva às vezes na carne,


“leva no músculo”), justamente a ausência que torna o corpo “mais desperto”, dá


“maior impulso” ao homem.






Afinal, a insatisfação, o descontentamento, o inconformismo levam o


homem a se superar, a ir além daquilo que esperam dele, a ultrapassar os seus


próprios limites. O desejo incontrolável nasce da falta, de uma carência


insuportável. No entanto, satisfazer um desejo nunca lhe garante a plenitude, pois


essa falta permanente, essa incompletude inerente produz mais e mais desejos


em busca de realização. O homem nunca se dá por satisfeito, nunca está


completo, sempre lhe faltará algo. É essa falta que faz ele estar sempre em busca,


à procura de. Lidar com essa eterna insatisfação e incompletude fortalece o homem.


Em volta tudo ganha


A vida mais intensa






Em meio à rotina, o lado mais cortante se revela. É preciso coragem para


se arriscar, aquilo que parece ruim, pode ser bom, depende do olhar, da vontade,


da disposição para se rasgar. Bala, relógio, faca paradas, imóveis, parecem


inofensivos, mas guardam a potência, como o homem. Basta um simples gesto


para afirmar a essência de cada uma delas, mas é necessária a atitude. No caso


do relógio, atitude em forma de reflexão (que também é ação), pensar sobre o que


se fez e o que se fará com o tempo disponível, como aproveitá-lo da melhor


maneira possível. Atitude sempre requer coragem. E pensar talvez seja o que


mais necessite disso, pois o pensamento leva o homem ao sofrimento, à angústia


de perceber os rumos que a vida tomou, ao assumir os sonhos desfeitos, as


desilusões inevitáveis.






Na parte H e no epílogo, o poema se refere explicitamente à linguagem. A


incapacidade da linguagem já se evidenciara nos primeiros versos, diante das


metáforas sempre insuficientes para se atingir o objeto. Agora se afirma a utilidade


das imagens citadas (bala, relógio, faca), pois o esforço da construção das


metáforas exige que o poeta vá além do uso cotidiano das palavras. Asfixiadas


“debaixo do pó”, “despercebidas” no dia-a-dia tornam-se “palavras extintas” “no


almoxarifado”. Para lhes dar vida novamente, é preciso recuperar a potência


oculta que as caracteriza, essência inerente sempre pronta a ser renovada.


Pois somente essa faca


dará a tal operário


olhos mais frescos para


o seu vocabulário.






A linguagem também trabalha com esse jogo de presença e ausência.


Diante do leitor, o poema está presente, mas para que se configure de forma mais


plena, requer que se leia o que está ausente e, ao mesmo tempo, presente na


ausência, nas entrelinhas dos versos. Quando a palavra se liberta do seu


referencial e, trabalhada poeticamente, contempla a ambigüidade, liberta-se das


amarras da linguagem e se faz mais linguagem. Ao rasgar a si mesma, revela-se


em toda a potência inerente de criação e, se recriando, reinventa o mundo ao


redor.






A transgressão linguística decorre justamente da capacidade


que tem o signo poético, movido pelo vigor da linguagem, de


querer ser e não apenas significar. Assim ele se configura


como um anti-signo e a ambiguidade se apresenta então,


como a marca no texto poético da ação libertadora da


linguagem. (SOARES, 1978, p.33)






Se “a criação poética é todo um trabalho de recriação e libertação”


(SOARES, 1978, p.64), todo o poema “Uma faca só lâmina” consiste numa


“dialética de aproximação a um objeto cuja própria natureza recusa a apreensão”.


(BARBOSA, 1975, p.149) O conflito dramático que alimenta a obra se baseia na


luta entre aquilo que se quer dizer e aquilo que pode ser dito. E, para poder dizer,


o poeta se utilizará de


O que em todas as facas


é a melhor qualidade:


a agudeza feroz,


certa eletricidade,


mais a violência limpa


que elas têm, tão exatas,


o gosto do deserto,


o estilo das facas.






O gosto do deserto, o estilo das facas é o estilo que norteia a própria


composição do poema. João Alexandre Barbosa considera que, na maior parte da


obra de João Cabral de Melo Neto, pode-se perceber o sentido de “imitação da

  1. forma”, ou seja, como o poeta aprende com os objetos uma maneira de imitar a


realidade. Isso ocorre com a imagem da “pedra”, em outros poemas, e aqui no


caso da “faca”. Essas imagens expressam a linguagem da carência e da dureza,


da secura, e estabelecem a relação de dependência entre a composição e a


comunicação, pois os objetos lhe ensinam como ler a realidade, que se torna a


estratégia pela qual é possível falar no poema. Aquela experiência única que


aparentemente não se deixa apreender provoca outra experiência única, o poema,


que se multiplica nas interpretações de cada leitor. O aprendizado dessa


linguagem da carência se configura como orientação aos procedimentos que


contribuem para a intensificação daquilo que o poema diz.






O esforço desse “querer dizer” converge numa espécie de conflito


dramático existente em “Uma faca só lâmina”: insistir no dizer mesmo diante de


toda a extrema dificuldade de se expressar. Isso levaria à afirmação de Escorel


(2001, p.131) de que “a essência do drama é o conflito entre pólos contrastantes”.


Na dramaticidade do fazer de João Cabral, convivem a subjetividade lírica e o


objetivismo social. Assim, o que o define como um “poeta essencialmente


dramático” é a interação dialética do sujeito que se projeta no objeto e do objeto


que se introjeta no sujeito.






Essa tendência dialética se afirma na luta dramática das tentativas de se


conseguir falar sobre um vazio, que se exprime numa sensação de discussão


entre as metáforas de “Uma faca só lâmina”. A própria seleção dos objetos já


consiste numa escolha subjetiva, portanto objetividade e subjetividade não


constituem conceitos tão estanques e opostos quanto supõe a visão lírica


tradicional.






Por isso, Secchin (1985, p.221), formula a hipótese da poesia do menos, na


qual Cabral amputa o excesso de significações pelo “desejo de que as ‘lições’ do


real emanem de processos localizáveis nas próprias coisas, e não dos


investimentos apriorísticos da subjetividade.” Contudo, também não ocorre a mera


substituição do “culto do eu” pelo “culto do objeto”, pois essa dicotomia ingênua


deve ser questionada. A explicação do eu só tem sentido se serve para valorizar o


coletivo, que se mescla à voz individual. Qualquer poeta não deve pretender se


fechar em si mesmo para se isolar, mas encontrar o que também fala sobre os


outros homens, o universal, a fim de permitir que os leitores leiam a si mesmos e


não o poeta.






A linguagem não pode com o instante primeiro da apreensão perceptiva.


Quando se usa a linguagem, ela não substitui a experiência original, que é única,


mas cria outra realidade, o próprio poema, a partir da experiência primeira.


e daí a lembrança


que vestiu tais imagens


e é muito mais intensa


do que pôde a linguagem,


e afinal à presença


da realidade, prima,


que gerou a lembrança


e ainda a gera, ainda,


por fim à realidade,


prima, e tão violenta


que ao tentar apreendê-la


toda imagem rebenta.






Conclusão


Seja “poesia do menos” ou “imitação da forma”, independentemente de


conceitos teóricos, a poética cabralina simultaneamente constrói a sua própria


ética, que permeia toda a obra e, também, se faz presente em “Uma faca só


lâmina”.


Para Benedito Nunes (1974, p.171), a imagem da “pedra”, que contém “o


ideal ético de resistência fria, de dureza obstinada e agressividade”, se transforma


na lâmina da faca. Se a pedra conserva uma resistência moral, a faca guarda em


sua natureza cortante, aguda, penetrante e agressiva uma inquietação torturante.


A edição das Poesias Completas, de 1968, traz o subtítulo que não


constava na publicação original de 1956, em Duas Águas, “(ou: a serventia das


idéias fixas)”. Uma “ideia fixa” corresponde a um desejo obsessivo, que se


consolida pelo não agir, que se refaz de forma permanente, justamente porque


não se concretizou, “seu modo de ser é um não-ser ativo” (NUNES, 1974, p.101),


que se nutre da própria carência.


Em uma faca composta apenas de lâmina basta encostar para se dar o


corte, porque tal como se alimenta uma ideia fixa a cada dia, a lâmina guarda uma


ausência torturante dentro de si, potência pronta para se manifestar num simples


gesto. Da mesma forma, a visão ética severa, que acompanha a poética do


esvaziamento, serve não para esvaziar o homem, mas para mostrar como a falta


produz o desejo que move o ser humano, capaz de colocar em atividade o que se


mantém aparentemente inativo, porém conserva sua potência destruidora intacta


pronta para se manifestar a qualquer momento. Em Cabral, a carência e a


ausência geram produtividade, o esvaziamento constitui parte do processo para a


plenitude do ser.


Quanto mais longe se vai na literatura, mais adiante se vai no próprio


homem. A poesia é ambígua e contraditória, porque o próprio homem também é


um ser essencialmente ambíguo e contraditório. Portanto, sempre há algo a ser


explorado no reverso do que se mostra.










Roberta da Costa de Sousa, mestranda em Teoria da Literatura



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