domingo, 21 de abril de 2013

Navio Negreiro e A Canção do Africano - Castro Alves

Castro Alves



Antônio Frederico de CASTRO ALVES

            Nasceu, em 1847, na fazenda Cabaceiras, município de Muritiva, BA, e faleceu em Salvador em 1871, de tuberculose.
            Depois dos estudos preparatórios em Salvador, vai, em 1862, para Recife em cuja Faculdade de Direito ingressa em 1864, sendo colega do líder estudantil Tobias Barreto. Reforça a incipiente campanha liberal-abolicionista. Não se destaca pela aplicação aos estudos. Faz-se orador e poeta.
            Em 1868 chega a São Paulo, acompanhando a atriz Eugênia Câmara com quem vivia desde Recife. Em São Paulo torna-se aclamado orador e poeta.
            Numa caçada nos arredores de São Paulo, fere o calcanhar esquerdo. Sobrevém a gangrena. Amputam-lhe o pé. Ferido em sua vaidade e já tuberculose, volta à Bahia, em 1869, certo já de sua morte próxima.

OBRAS:  Espumas flutuantes (1870), A Cachoeira de Paulo Afonso (1876), Os Escravos (1883), Gonzaga ou A Revolução de Minas ( drama encenado na Bahia em 1867).
           
ASPECTOS:
A)    POETA SOCIAL: corajoso defensor dos princípios de liberdade, de justiça social, apologista do progresso, Castro Alves defendeu, com versos inflamados e ousadas figuras, os escravos, revelando corajosamente a miséria física e moral em que eram obrigados a viver. Citem-se as poesias: Vozes d’África, Navio negreiro, A mãe do cativo, A Cruz da estrada. Conhecido, por isso, como o poeta da abolição ou o poeta dos escravos.
Defendeu ainda o povo, esquecido, inculto e injustiçado (O Povo ao Poder) e o papel civilizador da imprensa (O livro e a América).
B)    POETA AMOROSO: Libertado já do clima do mal-do-século, Castro Alves é realista no amor. Não sonha com amadas impossíveis, vaporosas. Inspira-se nas mulheres que o cercam como Eugênia Câmara, Teresa e outras.
C)    POETA DA NATUREZA: Foi um excelente pintor da nossa natureza. Citem-se O Baile na Flor, Crepúsculo Sertanejo.

OS   ESCRAVOS



O Navio Negreiro
(Tragédia no mar)



'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.


'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...


'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.


Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!


Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!


Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!


Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................


Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!


Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.



II

 
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.


Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!


O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!


Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...



III

 
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!



IV

 
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...


Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!


E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...


Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!


No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."


E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


 
V

 
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!


Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...


São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...


São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.


Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
...Adeus, ó choça do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...


Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.


Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...


Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...



VI

 
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

 
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!



São Paulo, 18 de abril de 1869.
(O Poeta, nascido em 14.03.1847,
tinha apenas 22 anos de idade)





Navio negreiro



Hélio Pólvora



O poema Navio Negreiro pertence à fase de Os Escravos, que Castro Alves começou a compor em, ou por volta de 1865, quando ainda no Recife, tocado, sem dúvida, pela atmosfera libertária que empolgava a mocidade acadêmica. Mas,embora trazendo a data de 18 de abril de 1868, ele foi declamado antes, pelo Poeta, no Teatro São José, em São Paulo, no dia 7 de julho daquele ano, e com extraordinário êxito. E possível que Castro Alves o tivesse concluído ou revisto para a ocasião.

Tinhas o Poeta, então, 21 anos de idade. Apenas 21. Três anos depois, em 1871, estaria sob o que ele denominara "lájea fria" nos seus pressentimentos de morte, que eram constantes, persistentes e, iga-se logo, muito mais sinceros do que fazia crer a morbidez dos Românticos e, sobretudo, dos Simbolistas.

Passaram-se, pois, 128 anos sobre o poema famoso. É importante considerar-se um texto literário em relação ao fluir do tempo. O tempo tem, de todas, talvez a maior capacitação crítica: imprime à obra a pátina que a enobrece ou nela deixa o azinhavre que a corrói. No caso de Navio Negreiro, as estrofes grandiosas, grandiloqüentes, repassadas de ira, fervendo na justa indignação do Poeta, preservam o que em crítica literária se chama o espírito do tempo: ambiente, razões históricas, intenções do autor, correntes literárias. Mas, transcendendo o espírito do tempo, o poema castroalvino estabelece, como se verá mais adiante, uma ponte direta com a época atual.

Alguns fizeram a Castro Alves a ressalva de ter escrito e declamado Navio Negreiro em plena efervescência republicana, quando já fora extinto o tráfico de escravos africanos para as lavouras do Brasil. De fato, a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o odioso comércio, fora promulgada antes, a 4 de setembro de 1850. Mas nós sabemos bem como são as leis no Brasil. Dizem que há leis, aqui, que pegam ou se anulam. Nunca nos faltaram leis, e muitas vezes leis bem intencionadas, mas lhes falece o instrumento fiscalizador. Afinal, não é a justiça da lei que lhe dita a eficácia e lhe impõe respeito e acatamento, mas, exatamente, a sua complementação — ou seja, as providências tomadas para que se faça cumprir a lei.

No caso da lei Eusébio de Queirós houve, provavelmente, mais idealismo do que esforço de aplicação. Tanto assim que, embora declarado extinto o tráfico, em 1850, foi necessária outra lei — a Nabuco de Araújo, de 5 de junho de 1854, portanto quatro anos após — para impedir que barcos negreiros continuassem a descarregar nas costas brasileiras. Se, naqueles quatro anos, o "brigue imundo" a que se refere Castro Alves não fora varrido dos mares, é de supor-se que ele continuasse em rota por mais anos, entre África e Brasil. Leis de proibição do tráfico, emanadas da Bahia, também foram desrespeitadas por algum tempo.
Todos nós sabemos que o fim da escravidão negra no Brasil foi obtido por etapas devido à resistência dos proprietários de latifúndios que temiam, naturalmente, o esvaziamento repentino da economia. Esses proprietários tinham assento majoritário nas Assembléias, confrontavam abertamente o Imperador ou, então, estavam nelas representados pelos deputados e senadores que eles elegiam. Veja-se que, entre a Lei Eusébio de Queirós e a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 1888, decorrem 38 anos de acesa campanha abolicionista. Se a Marinha Britânica, com todo o seu poderio, com o domínio que tinha dos oceanos, mostrava-se incapaz de conter o comércio negreiro, o que esperar-se da ação repressora da nossa Marinha imperial ?

Com certeza o "veleiro brigue", no dizer do Poeta, continuou a navegar com a sua carga de homens seqüestrados nos porões. Evaristo de Morais, citado por Jorge Amado no ABC de Castro Alves, vê os barcos de escravos ainda em atividade plena no momento em que Castro Alves os fulmina com a sua ira condoreira. Sim, o Poeta desconhecia pormenores do comércio que, se utilizados, imprimiriam ao Poema uma verdade por assim dizer documental. O baiano Édison Carneiro, em posfácio à edição de Navio Negreiro pela Livraria progresso Editora, de Salvador, em 1959, enumerou alguns equívocos, entre os quais o da cena no convés, que Castro Alves pintou com mão pesada, igualando-se nas vergastadas dos versos aos chicotes dos marinheiros, por esquecer-se ou ignorar que no convés os negros africanos revivesciam das crueldades nos porões.
Mas são pormenores que não comprometem a beleza, a majestade, a fúria do poema. Navio Negreiro é um poema historicamente atual. Não somos ingênuos ao ponto de supor que a escravidão do homem pelo homem esteja extinta. Ela assumiu aspectos novos, não tão ostensivos, naturalmente, como no passado, porém velados, ou semivelados. Voltaremos a este ponto daqui a pouco.

De todos os Estados brasileiros, a Bahia, que até 1870, pelo menos, comandava a economia brasileira, foi o que recebeu o maior contingente de braços negros. É natural que, em pleno movimento abolicionista, quando os republicanos se utilizavam do tema como bandeira de luta, Castro Alves o assumisse. Já lembramos que a composição de Os Escravos foi iniciada no Recife, em 1865. Um dos poemas desta série, e que datava de 1863, falava no "sangue escravo que nodoa o chão". Poucos anos depois, em São Paulo, o Poeta seria atraído para a batalha entre monarquistas e republicanos. Surge, no estridor dessa batalha, o Navio Negreiro. De composição posterior são Vozes d’África. Não houve repentismo, não houve adesão de última hora, não houve oportunismo poético da parte de Castro Alves. Houve, isto sim, um compromisso anterior, amadurecido na sua consciência de Poeta libertário, de Poeta que, conforme anotou Jamil Almansur Haddad, foi o pregoeiro não apenas da Liberdade, no singular, mas de todas elas: a liberdade política, a liberdade social e até mesmo a liberdade sexual.



* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Com o subtítulo de "Tragédia no Mar", o poema Navio Negreiro é produto direto da escola romântica de conteúdo liberal. É um poema comprometido com uma idéia em movimento, uma ideia-força que ainda perdura. O teme é realista na sua pungente atualidade, a forma que o reveste segue, porém, o modelo romântico calcado no discurso que se dirige mais ao ouvido, sem aquela densidade e simplicidade de efeitos que marcaria algumas peças castroalvinas de sua fase derradeira. Poeta cênico quando seguia o vôo do condor, Castro Alves descortinava cenários, descrevia horizontes com uma imaginação plástica. Eis porque o baiano Hildon Rocha observou que, nele, eloqüência e poesia se misturavam, "prevalecendo a primeira
nos momentos de improvisação e circunstância".

Mas, diremos nós, há no Navio Negreiro, além da estilística fônica que arrebata, uma força motriz que transcende os efeitos, às vezes fáceis, da retórica, os moldes transitórios da semântica, para ficar bailando sob forma daquela "selvagem, livre poesia" a que se referiu o Poeta baiano. Eis, portanto, a nossa conclusão: a poética do cantor dos escravos está presa à palavra, depende do fluxo encantatório da palavra, e, no entanto, preserva uma essencialidade que a transfigura, projeta e despoja, fazendo-a valer não somente pela imagem m si mesma, mas também pelo que a imagística vem a representar na sua metamorfose artística.

‘Stamos em pleno mar...

O Poeta, claro está, dirige-se a um auditório. Na sua função de criador e ao mesmo tempo apresentador da cena, pretende traçá-la, esquematizar o cenário, como se assomasse ao palco próprio dos acontecimentos que irá denunciar. O poema começa, pois, descritivo — e a afirmação inicial, reiterada nas próximas três estrofes, pretende reforçar, na sua enfatização estilística, uma atmosfera de sugestão poderosa.

...Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;

Esta comparação, primeira metáfora do poema, é perfeita. Parece até que o Poeta pretende renunciar ao descritivo a fim de realizar o poema mergulhado no seu cerne, de dentro para fora, a partir de suas vezes intrínsecas. O luar seria "uma dourada borboleta" porque visto, como se a esvoaçar, do brigue em movimento, a subir e descer sobre as ondas. Mas a interiorização da perspectiva não tarda a se desfazer nos veros de ação. As vagas correm. Os astros saltam. O mar "acende as ardentias". O brigue corre. O Poeta, da sua órbita privilegiada, vê e descreve.

A primeira parte de Navio Negreiro contém onze estrofes compostas em quartetos eruditos, com dois versos rimados,
decassilábicos. A intenção de Castro Alves foi mostrar as duas imensidades — o oceano e o firmamento, que "ali se estreitam
num abraço insano". A onisciência do Poeta cede lugar, pela primeira vez, à interrogação, à dúvida, na quinta estrofe:

Donde vem ? onde vai ? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço ?

Este será o primeiro toque de mistério, a sugestão que há de inquietar o auditório. O quadro panteísta impressiona pela
plasticidade. Ao referir-se à "música suave" das vagas, à "doce h armonia da brisa", à orquestra do mar e ao sibilar dos ventos nas cordas, o Poeta cria nesse enleio do homem com a Natureza as condições que lhe acentuam, a partir da quarta parte, a indignação. As três primeiras partes constituem, assim, uma antítese, provavelmente deliberada, das três seguintes. A poética castroalvina assenta muito no jogo das antíteses. Há um constante paralelismo de idéias e imagens, e esse paralelismo foi acentuado por Eugênio Gomes quanto à composição de Navio Negreiro. O leitor é levado a deduzir que o quadro grandioso descrito no proêmio do poema não pode permitir a nódoa infamante, "este borrão" que é o brigue negreiro.

Albatroz ! Albatroz ! Dá-me estas asas.

O recurso, tão habitual na poemática clássica, do apelo às musas, às entidades, encontra aqui uma variante. Castro Alves socorre-se do albatroz a fim de inquirir, mais de perto, o motivo por que o "barco ligeiro" foge "do pávido poeta". Todo o horror da cena é entrevisto, de inopino, na terceira parte do poema, constituída de uma única estrofe — uma sextilha em versos dodecassilábicos. Ainda antes, na segunda parte, em décimas de redondilha maior, com rimas alternadas, Castro Alves insiste no objetivo do contraste, ao cantar o fado e a glória dos marinheiros de todo o mundo:

Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu !...

A cesura entre a contemplação plácida, satisfeita, e a descoberta brutal do brigue, fermenta a indignação. A quarta parte, em estrofes heterométricas, combinando alexandrinos com hexassílabos,presta-se admiravelmente ao verso direto, cortante e afiado, que fulge, no ar, em lampejos de ira concentrada, quais estalos de chicote:

Era um quadro dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho
Em sangue a se banhar.

As palavras, sobretudo os adjetivos, valem pela carga emotiva. Parecem varadas de luz, como os vitrais. São palavras-objeto, usadas com todo o impacto semântico. Elas refulgem, prismáticas e cromáticas, na sua função de espelhos. O enleio fonético, sendo imediato, acentua a musicalidade. De tão audíveis, as palavras parecem conter em si mesmas, na sua identidade imediata, de superfície, os transportes do poema. Carecem ainda, é verdade, da revalorização semântica, da música interior, da densidade de idéia que Castro Alves iria obter mais tarde, em "Crepúsculo Sertanejo" e outros quadros de A Cachoeira de Paulo Afonso, conforme anotação de Eugênio Gomes que subscrevemos. E, no entanto, aquelas palavras, entregues à sua força imanente, apoiadas na grandiloqüência do discurso, comunicam em cheio a poesia. Pouco importa que estejamos avisados contra a sedução fácil, o repentismo, o barroquismo de efeito externo. O contágio vence a vacina das prevenções. Observou, a esse respeito, o poeta Godofredo Filho, na introdução à edição de 1959 de Navio Negreiro pela Livraria Progresso Editora, de Salvador: "... as relações de sua linguagem ordenam-se à base de uma dinâmica que, em determinados estágios, ele já não poderá controlar. Os sintagmas, progressivos, como que se projetam em espiral".

A quinta parte, em décimas de redondilha maior, com rima variada, acentua o exercício de indignação. O poema passa do motivo às conseqüências. A declamação procura sensibilizar mais ainda as consciências, através da imprecação e da apóstrofe. O Poeta interpela o Deus dos desgraçados. Apela para a fúria das tempestades, noites e astros. Convoca o tufão a varrer dos mares o brigue dos horrores:

Quem são estes desgraçados
Que não encontram m vós
Mais que o rir calmo da turbas
Que excita a fúria do algoz ?


Encontram-se nessas estâncias alguns dos mais conhecidos — e conseqüentemente admirados — versos da poética de língua portuguesa. Ainda que a África seja, ali, uma vaga ressonância, sem maior documentação geográfica, a imaginação se precipita espumejante nas suas ardentias. E, mais uma vez, na capacidade de motivar e comover, o Poeta exerce a predominância dos sentidos, força uma aceitação imediata. É que a sua oratória também se embebe de subjetividades. No fervor de suas causas, na exaltação do temperamento libertário, o Poeta pôs toda a alma e firmou, então, a arquitetura do poema.

A última parte de Navio Negreiro, em oitavas heróicas, decassílabos camonianos, ajusta-se aos açoites finais da
indignação de Castro Alves na montagem de dois quadros díspares — o canto da Natureza não conspurcada, a poluição do mar pelo barco de escravos — e, entre um e outro, o hemistíquio de suas interrogações. Novamente aí, no majestoso final, estão alguns dos versos mais encantatórios e flamejantes da escola que Castro Alves personificou no Brasil:

Meu Deus ! Meu Deus ! mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia ?
(...)
Auriverde pendão da minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança.


Este final, concebido em forma de estuário, é uma peroração. Ao conclamar os heróis do Novo Mundo, o Poeta deixa no ar, de chofre, toda a carga emotiva do discurso. Os ecos ressoam. Estão predestinados a se reproduzirem nos contrafortes da nossa sensibilidade.




* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Definitivamente, a obra literária não é um ato isolado de criação. Mais importante do que o que dizer é o como dizer. No mais, predomina a rotina de idéias. Navio Negreiro, com um tema e uma temática tão sedutores, há de ter também as suas fontes paradigmáticas. Josué Montello citou uma: em Estampas Literárias, de 1956 (Organização Simões, Rio de Janeiro), ele admite que o poeta Guilherme Braga, autor de Heras e Violetas, volume lançado em 1869, no Porto, teria influenciado Castro Alves. Com efeito, em poema de 1863, o português escreve:

Que perguntas sem fim ! Ninguém responde !
Deus em que nuvem negra assim se esconde,
Ó alma, que o não vês ?

E Guilherme Braga também invoca Cristóvão Colombo:

Colombo, inda te espera o mar profundo...
Vai pedir outra vez um novo mundo
Aos países do sol !

O ensaísta gaúcho Augusto Meyer, em artigo no Correio da Manhã, de 2.2.1963, intitulado "O Navio Negreiro", e em O Estado de S. Paulo, de 5.8.1967, sob o título "Navios Negreiros", estabelece pontos de contato entre o poema de Castro Alves e o de Heinrich Heine. O tema, pelo menos, é idêntico. O Das Sklavenschiff de Heine se teria inspirado, por sua vez, ao que parece, no Béranger de Les Negres et les marionettes. É de Heine, aliás, a epígrafe em francês com que o Poeta baiano abre Os Escravos.
Mas as semelhanças entre Castro Alves e Heine estariam limitadas à descrição oceânica e à dança dos escravos. Ainda assim, cuidadoso, Augusto Meyer faz o reparo: "De qualquer modo é bom lembrar que fonte, no sentido restrito e literário, não envolve senão uma idéia de sugestão, subsídio, informação, estímulo, não implicando necessariamente a idéia de influência".


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

O comércio de escravos trazidos em barcos negreiros não foi um tema circunstancial na poética castroalvina. O compromisso do Poeta, nele e em outras peças de teor social, ia além da emotividade, era mais fundo. Por isso, Eugênio Gomes fala em "compromisso moral". Lembra o ensaísta que, a partir de 1864, quando aderiu ao abolicionismo, Castro Alves passou a defender as liberdades públicas em geral. Ele já tinha proclamado, por exemplo, que:


A praça ! A praça é do povo
Como o céu é do condor.

No seu evangelho pelos humildes, o Poeta torna-se, até, anticlerical, ao sugerir que o manto do Papa servisse para cobrir os ombros nus dos excluídos. E nenhum poeta do seu tempo, para espanto, aliás, da jovem burguesia intelectual que o admirava e o aplaudia, investiu com maior furor contra o tirano — contra todos os tiranos:

Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.

A escravidão é um tema indissociável da condição humana. A palavra trabalhar, em português, deriva de tripaliare, que, em latim vulgar, significava martirizar com o tripaliu — um instrumento de tortura. Em inglês, slave, escravo, vem de slav, eslavo — porque os eslavos foram os escravos dos impérios europeus antigos, principalmente o Império Romano. Os impérios chinês e otomano floresceram graças ao braço escravo. O Sul dos Estados Unidos, com a sua vocação agrícola, manteve a escravização do negro africano em regime mais duro que o nosso. A palavra rabota, em russo, quer dizer trabalho, e tem como raiz rab, que significa escravo. O sociólogo Theodore Zeldin, em seu livro An Intimate History of Humanity afirma que, "antes dos doze milhões de africanos serem seqüestrados para escravização no Novo Mundo, as principais vítimas eram os eslavos", os quais, "caçados pelo romanos, cristãos, muçulmanos, viquingues e tártaros, foram exportados para o mundo inteiro" e "deram seu nome à escravidão". Segundo ele lembra, a Arábia Saudita foi o último país a abolir formalmente a escravidão — o que só fez em 1962.

Parece que o romancista inglês Graham Greene tinha razão ao referir-se, por intermédio de um personagem seu, aos que nascem para ser "second men". Teríamos então a humanidade dividida, a grosso modo, em primeiros homens, os que detêm o bastão de mando, e os segundos, que são os que trabalham. Eis uma reflexão que nos repugna a consciência, mas que é oportuna para o tricentenário de morte de Zumbi dos Palmares.

O poeta Castro Alves, aliás, também saudou Palmares. Num poema escrito em agosto de 1870, na Fazenda de Santa Isabel, ele disse, a propósito do quilombo histórico:

Ninho, onde em sono atrevido,
Dorme o condor... e o bandido !...
A liberdade... e o jaguar !

Eu pergunto, agora, se houve poeta que defendesse, mais do que este, os oprimidos, os injustiçados, os excluídos, os escravizados de todos os tempos e de todos os lugares, desde que o mundo é mundo. Eu pergunto se outro houve que, sensível aos fatos sociais da condição humana fragilizada ainda mais pelas péssimas condições de vida que lhe são impostas, houvesse tão destemidamente cantado o povo como fez castro Alves no poema "Prometeu".

 Canção do Africano

Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão ...
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
"Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!
"0 sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia;
Ninguém sabe como é belo
Ver de tarde a papa-ceia!
"Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar ...
"Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro".
O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!
O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.
E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!
Fonte: www.secrel.com.br

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