quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Pai contra Mãe - Machado de Assis


Uma leitura possível de "Pai contra mãe", de Machado de Assis

                                                  Márcio Ricardo Coelho Muniz (UEFS)
     O ensaio propõe uma leitura do conto "Pai contra mãe", de Machado de Assis, apontando nele uma
consciência, revelada pelo autor, dos problemas que atingiam a classe emergente de assalariados do final do
século XIX, assim como uma preocupação com a questão da escravidão. Consciência e preocupação essas
constantemente negadas, pela crítica especializada, a Machado de Assis.
Palavras-chaves: Machado de Assis; conto; "Pai contra Mãe"; Literatura Brasileira; Literatura do Século XIX.
"A abolição é a aurora da liberdade;
esperemos o sol; emancipado o preto,
resta emancipar o branco."
(Machado de Assis. Esaú e Jacó)
"a ordem social e humana nem sempre
se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel."
(Machado de Assis. “Pai contra mãe”)
"Pai contra mãe" sempre me pareceu uma espécie de companheiro temático de outro
conto de Machado de Assis, "O caso da vara"2. Ambos têm como figuras centrais um homem
branco livre e uma negra escrava. Os dois tratam da questão da escravidão e do jogo de poder
que a relação acima encerra.
No que diz respeito a "O caso da vara" essa explicação sempre me satisfez. Neste,
Damião, seminarista sem vocação, fugido do seminário, troca a vara com que Sinhá Rita irá
castigar a negra Lucrécia - pelo trabalho não terminado - pelos favores que a mesma Sinhá
Rita lhe prestará intercedendo junto ao padrinho e, por este, ao pai, no caso da fuga do
seminário. Neste conto, que o autor situa em 1850, fica clara a relação de favor que
1 Este texto foi publicado na Revista de Estudos Acadêmicos Unibero, São Paulo, v. 4, p. 25-31, 1996, ISSN:
14143577.
 "O caso da vara" está em Páginas Recolhidas, livro de contos publicados em 1899.
caracterizava as relações sociais no século XIX brasileiro, tão bem descrita por Roberto
Schwartz em seu Ao vencedor as batatas3.
Em "Pai contra mãe"4, ao contrário, as relações homem branco livre e mulher negra
escrava nunca me pareceram suficiente para a explicação plena do sentido do conto. Apesar de
o título ser um forte signo indicador dessa relação e de que, ao ler o conto, confirmamos na
figura do pai um homem branco livre e na mãe uma mulher escrava, outros dados chamaramme
a atenção, conduzindo-me a outras conclusões. Como se sabe, a tendência da escrita
machadiana é levar o leitor pouco atento a crer em sua primeira, e quase sempre superficial,
leitura, quando, na realidade, o significado profundo do texto está em pormenores, em
sutilezas e dados despretensiosos sobre os quais raros são os leitores que se detêm. Por isso,
antes de revelar o teor das conclusões referidas acima, apresentarei quais foram os dados que
me fizeram chegar até novas conclusões.

"Pai contra mãe" é publicado em 1906, em Relíquias de casa velha, nome sugestivo
para um livro de contos. Na realidade, não só de contos, pois lá está, abrindo o volume, o
famoso soneto "A Carolina". O título nos é explicado pelo próprio Machado na "Advertência"
ao livro. Nesta, ele se compara ao dono de uma casa que resolve arejar e expor as relíquias
que acumulou durante os anos:
"Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que
aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título."
(MACHADO DE ASSIS, 1952: 05.)
Como se vê, ao se crer no que nos indica tal "Advertência", o que vai escrito no livro
nada pretende, não possui nenhum plano de composição e nem mesmo nada de muito grave
será tratado, afinal, são apenas "relíquias velhas" que o autor decide arejar e expor, ficando na
dependência do leitor aprovar as boas escolhas e absolver as más. Porém, como já nos chamou
a atenção Alcides Villaça:
    Em "As idéias fora do lugar", capítulo de Ao vencedor as batatas, Roberto Schwarz analisa as relações sociais
do século XIX brasileiro sob o prisma do "favor". A partir da caracterização e da análise desse fenômeno social,
Schwarz busca ver essas relações espelhadas na obra machadiana. "O caso da vara" é um texto exemplar para se
perceber a caracterização do "favor" dentro da literatura de Machado de Assis. Cf. SCHWARZ, 1990.
   A relação baseada no "favor" também pode ser observada em "Pai contra a mãe", porém acredito que o foco da
escrita machadiana neste conto está dirigido para uma situação mais crítica do que a caracterizada pelo "favor".
“Nos prefácios e nos títulos de seus livros de contos, Machado de Assis processa
um certo rebaixamento do gênero. Finge bocejar diante do tempo longo da vida
que é preciso preencher de algum modo, e publica seus escritos com a estampa da
vagueza e da indeterminação (...) Nada que pretenda substância." (VILLAÇA, 1984: 08)
Assim se dá com Relíquias de casa velha. O primeiro conto do livro é nada mais nada
menos que "Pai contra mãe". Temos que concordar que classificar a história de Cândido
Neves como "relíquias velhas" não ajudará muito o leitor a entender o conto. Ao contrário,
qualquer leitor que leve a “Advertência” ao pé da letra tomará um belo susto ao acabar a
leitura de "Pai contra mãe". Este nada tem da leveza pretendida ou, ao menos, anunciada por
Machado. Longe disso, é um conto com um tom de crueldade poucas vezes visto no nosso
autor.
O início de "Pai contra mãe" é bastante atípico na escrita machadiana: quatro grandes
parágrafos descritivos. Todos sabemos que a descrição não aprazia a Machado. Seu interesse
estava nos fatos, nos acontecimentos, nas ações, enfim, era agindo que o homem se revelava
para nosso autor. Então, qual o sentido dessa considerável descrição iniciando um conto?
Podemos somar a essa questão, ainda, a importância da introdução em qualquer texto, pelo
seu caráter de apresentação da obra e conquista do leitor. Porém, antes de buscarmos resposta
para essa pergunta, vejamos o que descreve o narrador.
O primeiro período do primeiro parágrafo é bastante revelador. Diz ele: "A escravidão
levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais"5. Tem-se
aqui alguns dados para os quais vale a pena chamar atenção. Primeiro, para a questão
temporal. O tempo verbal usado na primeira oração é o pretérito perfeito - "levou". Isto indica
que o assunto de que se tratará é passado e findo. Sabemos que Relíquias de casa velha foi
publicado em 1906. Porém, nem todos os seus contos estão datados. Daqueles que possuem
data, os quatros últimos do volume, dois são anteriores à Lei Áurea: "O caso de Romualdo"
(1884) e "Pobre cardeal" (1886). Os outros dois são posteriores à libertação dos escravos:
"Um sonho e outro sonho" (1892) e "Um quarto de século" (1893); e, é lógico, o soneto "A
Carolina", feito após a sua morte, ocorrida em 1904. Ora, a falta de data e a publicação de
contos com datas anteriores e posteriores à Lei Áurea poderiam trazer dúvidas quanto à data
de produção de "Pai contra mãe". No entanto, o narrador dirime essa possível dúvida
colocando o tempo de narração posteriormente ao fim da escravidão no Brasil. Isso importa,
veremos mais tarde, principalmente porque a ação da história que irá narrar decorre dentro do
Brasil escravagista: "Há meio século, os escravos fugiam com freqüência". É de se notar,
ainda, que esse "há meio século" remete a ação de nosso conto para um momento muito
próximo ao tempo de "O caso da vara": "Não sei bem o ano; foi antes de 1850", diz o seu
narrrador-personagem deste. Se datarmos "Pai contra mãe" de 1889, um ano após a Lei Áurea,
ou de 1906, ano da publicação de Relíquias de casa velha, as datas da ação narrada nele não
ficam, assim mesmo, distantes da história de Damião e Lucrécia: 1839 ou 1856.
Outro dado de interesse daquele primeiro período é o fato de vir ali expresso um
possível assunto do conto: a escravidão, seus ofícios e os aparelhos destes. Ao menos, é a
expectativa que se cria de imediato ao se ler o período. Como veremos, o narrador não deixará
o leitor na expectativa.
Uma terceira informação que chama atenção no referido período é o reconhecimento
da escravidão como uma instituição social. Aquela inicia o período, esta o fecha. As duas são
complementares e definidoras uma da outra. Será justamente a escravidão como instituição
social que dará “status” de ofício à atividade descrita no quinto parágrafo e que será também o
ofício do personagem principal: pegar escravos fugidos.
A seguir àquele período, o narrador parte para a descrição dos aparelhos "por se
ligarem àquele ofício". O "ferro ao pescoço", o "ferro ao pé" e a "máscara de folha-deflandres"
são alguns desses aparelhos. As descrições são também bastante peculiares. O
narrador não se limita à simples descrição do objeto:
"(a máscara de folha-de-flandres) tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e
era fechada atrás da cabeça por um cadeado";
mas também descreve sua função e utilidade social:
"a máscara fazia perder o vício da embriaguez dos escravos, por lhes tapar a boca (...)
com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do
senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos (...) Era
grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco,
e alguma vez o cruel".
  Apesar de a edição de consulta ser a da W. M. Jackson Editora, todas as citações serão feitas pela Antologia
presente em BOSI, 1982, por ser essa a de mais fácil acesso ao leitor contemporâneo.
A esta afirmação que é dita ao leitor com a mesma "naturalidade" com que apresenta o
assunto que encerra, como se o seu sentido fosse consensual porque natural, somam-se duas
outras no segundo e terceiros parágrafos. Ao falar sobre o "ferro no pescoço", afirma o
narrador: "Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal". E ao comentar acerca das
constantes fugas que ocorriam "há meio século" e sobre as pancadas que sofriam os negros
fujões, diz:
"havia alguém em casa que servia de padrinho, e o dono não era mau; além disso, o
sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói" (grifo meu).
Ora, esses três comentários, com nítido teor irônico - porque falam de algo sério e
grotesco num tom de fingida naturalidade - intercalados com descrição dos objetos e com a
freqüência das fugas, são bastante significativos. Não só pelo óbvio conteúdo crítico, porque
irônico, pois permitem ao leitor inferir uma posição do narrador em relação ao assunto
aparente do conto; mas também porque esses comentários já adiantam explicações acerca da
ocupação da personagem principal do conto.
O quinto parágrafo apresenta o ofício de pegar escravos fugidos. "Ofício do tempo" era
também "instrumento de força com que se mantém a lei e a propriedade". Essa sucinta e clara
descrição revela significativamente os porquês das afirmações anteriores. Trata-se aqui de
uma instituição não só social, mas também comercial, por isso a necessidade de leis que
assegurem a propriedade. A força, já expressa pelos aparelhos descritos atrás, faz-se então
necessária. Daí a um ofício que a aplique é um passo. "A ordem social e humana" requeria
esse tipo de ofício que "não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantém
a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita nas ações reivindicadoras". Esta
"nobreza implícita" contém a mesma carga irônica das outras afirmações e a elas se liga na
composição do quadro escravagista brasileiro da segunda metade do século XIX.
Vale, neste momento, chamar atenção para o discurso irônico que tenho ressaltado.
Esse pode muito bem ser lido como um discurso conservador que busca assegurar o direito à
propriedade. Direito para o qual Machado sempre chamou atenção, principalmente porque via
nele a mola propulsora e organizadora da sociedade6. Se o leio como irônico é porque outros
textos machadianos, utilizando-se da mesma ironia, afirmam sua defesa pela liberdade
humana e sua condenação ao processo escravagista - não é necessário lembrar que tanto a
  Para análise de um possível discurso “conservador” em Machado de Assis cf. FAORO, 1976; e BOSI, 1982.

defesa quanto a condenação são feitas não veementemente, mas através do discurso da
dissimulação próprio de Machado -; e, também, porque acredito que mesmo "Pai contra mãe"
nos dá elementos para afirmar esse discurso irônico. Alguns desses elementos já foram
apontados e outros virão no decorrer da análise.
Voltando ao quinto parágrafo, após explicitar a função social da atividade de pegar
escravos e ressaltar sua implícita nobreza, o narrador passa a caracterizar o "profissional" que
detinha esse ofício. A primeira afirmação relativa a este, se não contradiz a sua "nobreza",
aponta para o desmonte dessa: "Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo..."
Não é, portanto, por entretenimento nem por conhecimento acumulado que se toma tal
atividade como profissão. Ao contrário:
"a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e
alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam impulso ao homem
que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem".
Como se vê, fica nítido o rebaixamento da "nobreza implícita" do ofício. Só se metia a
pegar escravos fugidos o homem marginalizado pela sociedade. Claro está que o caráter de
"nobreza" do ofício só era percebido pelos proprietários dos escravos. Numa sociedade
escravagista, como a brasileira do século XIX, o caçador de escravos era um ser socialmente
necessário para a manutenção da ordem - leia-se propriedade - mas, ao mesmo tempo, tal
atividade era desempenhada por homens não "ajustados" socialmente: ou muito pobre ou
inapto ou servil.
4.
São com essas características de homem desajustado socialmente e miserável que
aparece na narrativa a personagem principal do conto: Cândido Neves.
"Cândido Neves, - em família, Candinho -, a pessoa a quem se liga a história de uma
fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos".
Com esse período, o narrador muda o rumo do texto. A partir daí ele irá nos contar a
história de Candinho. Como disse atrás, o ofício de pegar escravos era praticado por homens
que se encontravam à margem da sociedade. Nosso personagem é esse tipo de homem. Notese
que ele não era um vadio, um vagabundo, mas sim "carecia de estabilidade". De tudo um
pouco ele tentou fazer na vida: tipografia, caixeiro, fiel de cartório, contínuo, carteiro etc.
7
Alguns ofícios, não teve paciência para aprender; outros, como o de caixeiro, não agradavam
porque "a obrigação (...) de atender e servir a todos feri-o na corda do orgulho"; outros, ainda,
não dariam rendimentos suficientes para sua sobrevivência, caso da tipografia.
Na vida de Candinho apareceu Clara, moça órfã, que morava com tia Mônica. Ambas
cosiam para sobreviver. Clara "queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um
pescar de caniço, a ver se o peixe passava longe..." Quando se deu o encontro, Cândido só
acumulava dívidas com um primo, entalhador de ofício. Esta situação caracteriza uma questão
muito peculiar na obra Machadiana. Nos romances da chamada primeira fase, a união do
homem e da mulher através do casamento resultava quase sempre na ascensão social de um
dos dois. O matrimônio significava a união de interesses sociais e econômicos que faziam
daquele um negócio comercial. Na relação de Cândido e Clara não há mais que a união da
miséria. Ele, cheio de dívidas, sem emprego certo e vivendo de favor com o primo, não tinha
o que oferecer; ela, por sua vez, órfã, pobre e dependente de uma tia que nada possuía, nada
poderia dar. Como afirma Raymundo Faoro:
"Agora, a reunião do homem e da mulher, procurada pela mulher para suavizar as
amarguras materiais, soma misérias, transmitindo a falta de pão à prole desgraçada".
(FAORO, 1976: 326)
Após o casamento a vida não era boa, mas era feliz. A patuscada unia os três. "Os
mesmos nomes eram objetos de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas
davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço". Faltava o filho que os dois queriam, um só. E
ele veio, "era fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura". Tia Mônica, no
entanto, desespera-se. Um filho significa mais uma boca a alimentar e a vida a cada dia mais
difícil. Cândido a esta altura já desempenhava o ofício de pegar escravos fugidos. "Tinha
glória nisto, falava da esperança com capital (...) Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um
encanto novo". E além do encanto a profissão "só exigia força, olho vivo, paciência, coragem
e um pedaço de corda". Mas os ganhos eram incertos e, a partir de um momento, outros
desempregados passaram a desempenhar o mesmo ofício. O dinheiro passou a rarear e a
situação foi ficando cada dia mais difícil. "A natureza ia andando, o feto crescia..." Perto da
época do beber nascer, sem dinheiro para o aluguel, os três são despejados e vão morar de
favor em quartos que a previdente tia Mônica havia arranjado com uma senhora amiga. Como
comenta o narrador, "a situação era aguda". É justamente numa situação aguda que o narrador
promove nova virada na história que conta.
8
Antes, porém, de se entrar no novo fio dessa narrativa, vale guardar algumas
observações. Como se viu, além do gosto pelas patuscadas, é a pobreza o principal elo entre as
personagens Cândido, Clara e tia Mônica. Pobreza que não impedia o riso, pois esse se digeria
sem esforço, mas impedia a vinda de um filho, a suspirada ventura do casal que queria "um,
um só, embora viesse agravar a necessidade". Ora, Machado está a apresentar para o leitor de
suas "relíquias velhas" uma situação que está longe da leveza pretendida, expressa nos
prefácios de seus livros. O estado de miséria do trabalhador do século XIX - não muito
diferente do nosso, devemos reconhecer - está sendo descortinado nessas páginas
“despretensiosas”. A necessidade material, a falta de especialização profissional e a falta de
uma política trabalhista jogavam o trabalhador livre em um estado semelhante ao do negro
escravo, pois embora tivesse garantida a liberdade, aquele não tinha a certeza do pão diário.
Modernamente diríamos que a liberdade é bem supremo e assim, provavelmente, também
pensavam os abolicionistas. Machado, contudo, enxergava um pouco mais longe. Para ele,
segundo um crítico de sua obra:
"liberdade sem pão não representa nada, se excluída a perspectiva do futuro, futuro na
terra, com participação nos bens que ela dá (...) O problema supremo é o pão, difícil
de conquistar com suor, as canseiras e a labuta de todos os dias". (FAORO, 1976: 326)
Retomemos a narrativa. Nascida a criança, um menino como desejava os pais, o
conselho dado dias antes por tia Mônica de que levassem a criança à Roda dos Enjeitados –
espaço onde se abandonavam as crianças que não se poderia criar - teve que ser aceito, pois,
afinal, "a carne e o feijão (iam) faltando (...) como é que a família (haveria) de aumentar?”
Porém, a Providência, que não abandona nem Candinho nem Clara, manda ajuda.
Cândido, ao levar o filho para a Roda dos Enjeitados, na rua da Ajuda - não nos escape
a ironia dos nomes! -, vê um vulto de uma mulher e identifica nela sua salvação, assim como a
de seu filho. O vulto era de Arminda, mulata que há dias Candinho buscava pelas ruas da
cidade. Fugida, seu senhor oferecera cem mil-réis para quem a capturasse. A quantia não era
astronômica, mas resolveria de imediato a falta de carne e de feijão na mesa. Nosso caçador
não titubeia. Deixa a criança com um farmacêutico que, dias antes, havia lhe fornecido
informações sobre a negra fugida e segue atrás dela. Logo depois a alcança, domina-a e a leva
para seu senhor.
Chega-se aí ao ponto mais cruel e, provavelmente, o mais desvirtuador de uma leitura
superficial do conto. Arminda estava grávida e do caminho em que foi pega até a casa de seu
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senhor implora pelo perdão de Cândido, alegando, a seu favor, sua gravidez e a crueldade de
seu senhor. Candinho não se sensibiliza com os rogos da escrava e continua a arrastá-la pelas
ruas. "Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?" - responde aos rogos da negra. Chegado à
casa do reclamante, que logo atende ao chamado de Cândido, este entrega a escrava, recebe
sua recompensa e parte, porém, não tão rápido que deixe de presenciar o aborto sofrido por
Arminda, provocado pela luta com ele e pelo medo dos castigos futuros.
De volta a casa com a criança e os cem mil-réis, o pai feliz relata a história da caça e
do aborto de Arminda. Tia Mônica perdoa a vinda do bebê já que com ele vinham os cem milréis
e, diz o narrador:
“[Tia Mônica] não poupa palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da
fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não
se lhe dava do aborto. - Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração".
A crueldade desse final assusta o leitor que espera apenas "relíquias velhas" e também
o leitor acostumado com o tom de "vagueza e indeterminação" da narrativa machadiana.
Escritor acostumado a tratar de temas graves e problemáticos com a ligeireza e a leveza de
operetas (VILLAÇA, 1984: 08.), Machado de Assis não possui muitos momentos como esse
final - e se poderia incluir também o início - em sua obra. O embate cru de interesses e a
narrativa realista de um aborto, provocado por violências, não são comuns na pena
machadiana. Acredito ser esse, inclusive, um dos fatores que levam tantos leitores a ver nesse
conto a escravidão como grande tema (BOSI, 1982: 205.).
Óbvio está que não discordo totalmente desta leitura. Seria prova de ingenuidade não
crer que a escravidão é também tema desse conto. Contudo, acredito que o olhar machadiano
está focado mais atentamente para outra questão: a emergência do trabalhador livre no Brasil
escravagista da segunda metade do século XIX.
Em seu livro sobre a obra de Machado de Assis, Raymundo Faoro ajuda-nos a
compreender melhor a visão de mundo machadiana. Diz o crítico:
"O enquadramento social do trabalhador livre no contexto da miséria permitiu a Machado
de Assis medir o escravo sob ângulo original. Somente ele insistiu na calamidade que a
alforria poderia significar para o cativo. O escravo seria livre, mas ficaria sem trabalho e
sem pão, entregue à mendicância. O senhor, só ele, lucraria com o ato de generosidade
ao se desfazer de uma boca inútil, envelhecida ou estropiada pelo trabalho. A liberdade
não passava, nas circunstâncias, de retórica cruel ou de mentira". (FAORO, 1976: 326.)
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Machado, através de "Pai contra mãe", mostra como o negro livre e, no caso, o
trabalhador branco pobre estão em situação muito semelhante ao negro escravo. Ganha a
liberdade, ou mesmo já a possuindo por uma questão de origem, o trabalhador livre possuía
pouca perspectiva num país em que a bipolaridade social e econômica era, ainda, a principal
característica. Ou seja, de um lado o senhor branco, rico, nesse momento não mais
escravagista, e do outro o negro livre e o branco em estado pleno de miséria, vivendo numa
sociedade em que as possibilidades de mudança são remotas. É esta a situação que Machado
anuncia dentro de "Pai contra mãe". A figura central do conto é, como vimos, um trabalhador
miserável que forma uma família também miserável. Parece-me que Machado já antevia o
que seria a realidade do Brasil durante muitos anos - e sabemos que pouco mudou até hoje.
Obviamente, não é minha intenção ver em Machado um "sociólogo de plantão" em pleno final
do século XIX, início do XX. Como, novamente, nos ensina Faoro: "Há menos do que uma
doutrina na sua obra e mais do que o protesto intuitivo" (FAORO, 1976: 326.). Machado,
como homem de seu tempo, sensível aos acontecimentos pós Lei Áurea, observador e analista
cuidadoso dos fatos, viu pouca mudança real nas transformações ocorridas no final de século
XIX brasileiro7.
5.
Voltemos a "Pai contra mãe". Agora, com essa perspectiva de leitura em mente,
podemos entender o porquê de Machado voltar a escrever sobre a escravidão após seu
término. Não é mais ela o seu alvo, mas sim o fruto de seu fim: o trabalhador livre. Fácil
entender o porquê do início e do fim do conto terem a escravidão e seus processos tão
ressaltados e também o tempo escolhido para a narração da história. Não podia Machado falar
de uma classe – se se pode denominá-la como tal - que mal começava a emergir na sociedade
brasileira. Não se pode esquecer que não se está falando do operário, figura que só será
realidade no Brasil a partir de nossa "revolução industrial", iniciada na década de vinte de
século XX. Machado só poderia tratar daquela espécie de trabalhador, nunca do operário: são
caixeiros, quitandeiros, contínuos, tipógrafos, caçador de escravos...
7 Confira o posicionamento de Machado de Assis sobre as transformações ocorridas no final do séc. XIX
brasileiro, em particular sobre o fim da escravidão, que se pode entrever na crônica de 19 de maio de 1888,
inserida em MACHADO DE ASSIS, J. M. Bons dias! Ed. intr. e notas de John Gledson. São Paulo/Campinas:
Hucitec/Ed. da Unicamp, 1990.
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Mas, por que inserir essa história dentro do período da escravidão? Além do fato
explicado acima, é dentro do Brasil escravagista que nosso autor poderá distinguir os dois
trabalhadores - o livre e o escravo - e também os aproximar na condição da miséria.
Ressaltando a liberdade de nossas personagens, inclusive pelos nomes, Neves e Clara - e
Machado não quer que o leitor não deixe de perceber sua dica, portanto chama sua atenção
relatando a brincadeira com os nomes -, ele demonstra como isso faz diferença pessoal, porém
socialmente pouco significa. Cândido Neves - que de cândido revela nada ter, vide a profissão
e as cenas finais do conto - acredita que seu estado de liberdade o faz diferente e superior ao
negro escravo. Daí não lhe apetecer ofícios com caráter servil, mas sim aqueles em que ele
possa, utilizando-se da força, exercer o poder de livre e branco e impor a ordem. Há diversas
passagens em que o narrador sutilmente demonstra que Cândido gostava de ter a autoridade e
os modos do senhor. Por exemplo, quando busca, junto ao farmacêutico, informações acerca
da escrava fugida, comenta o narrador: "Cândido Neves parecia falar como dono da escrava..."
No entanto, socialmente, sua situação pouco difere da dos escravos, pois apesar de ter um
ofício - paradoxalmente de caçador de escravos fugidos -, isto nem sempre garante
subsistência para ele e sua família. Quando a família quer crescer, ele tem de deixar o fruto
desejado na Roda dos Enjeitados, caso contrário, morreriam de fome. Machado sabia que
havia desaparecido o cativeiro, "mas ficaram de pé as instituições que sujeitam, prendem e
agrilhoam o trabalhador livre" (FAORO, 1976: 333.).
Triste condição deste trabalhador que para salvaguardar a sua vida e a de sua família
tem de ter uma profissão tão desumana e desqualificada socialmente. Mais triste este trágico
final em que, para salvar seu filho, Cândido teve que colaborar com a morte do filho de
Arminda e, mais ainda, que isso não o sensibilize. Como indica Faoro, há nesse conto quase
que uma vingança de classe. Assim como o proprietário de sua antiga casa não cedeu frente a
sua "inclinação de promessa e súplica", da mesma forma Cândido Neves não cede aos rogos
de Arminda, ao contrário, ainda a repreende pela fuga e pela gravidez.
Ano(s) após a Lei Áurea, não havia mais sentido voltar à questão do escravo, no
entanto já se vislumbravam para Machado os problemas e as dificuldades que iriam enfrentar
o novo e o velho trabalhador livre. Neste caso, a cor da pele terá sua significância relativizada.
A miséria não distancia quem dela faz parte, ao contrário, ela iguala os participantes na hora
da partilha.
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Claro está que este era um problema que preocupava nosso escritor e que,
contradizendo o que afirmaram tantos e tantos críticos, Machado não estava alheio a essa e a
outras questões nacionais. Apenas, acredito, tinha consciência que o período da inflamação
indignada da juventude já havia passado e que, no momento, a única arma de que dispunha, e
a melhor, era a sua literatura. Com humor, com um pouco de perversidade para com seus,
então, inocentes leitores, com muita lucidez e com a conseqüente ironia, o Bruxo do Cosme
Velho apreende e revela suas opiniões e visões sobre o mundo que o cerca. Foi ele quem
escolheu as relíquias, cabe ao leitor aprovar a boa escolha e absolver a má.


A opção pelo conto Pai contra Mãe de Machado de Assis, justifica-se por ser uma representação de uma parcela importante da produção literária do autor e por sua característica enquanto gênero, que deixa registradas maneiras de análise e certa visão dos fatos. Através da análise de elementos como a ambivalência no texto machadiano, responsável pela comparação com o Cândido, de Voltaire, o pessimismo e os aspectos da estrutura narrativa como a perspectiva do narrador, a construção do nome das personagens e a função que a personagem principal desempenha dentro do enredo, pretendemos mostrar como a ironia se constrói em uma narrativa breve, cuja ação é inerentemente curta, com um número reduzido de personagens, também como o leitor poderá construir uma compreensão a partir da leitura deste conto.
Para Muecke, “a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ative não uma, mas uma série infindável de interpretações subversivas”  Também segundo Teixeira, o texto de Machado apresenta realmente uma característica de ambivalência, que produz esta série de interpretações: “a ambivalência é, pelo que temos visto uma das principais características do texto maduro de Machado de Assis”, para ele a frase machadiana “é extremamente maliciosa”, contendo raramente um único significado. E essa forma mais elementar de ambivalência chama-se ironia, pois, conforme este autor, é a “figura que, em sentido restrito, consiste em sugerir o contrário daquilo que se afirma”, assim nós podemos dizer tratar-se de “uma inadequação voluntária e astuciosa entre a forma e o conteúdo de um enunciado, isto é, um contraste entre a aparência e a essência do que se diz”.
Essa ambigüidade machadiana faz com que o seu texto não aponte apenas para uma compreensão, pois como nos diz Kleiman, “o texto não é um produto acabado que traz tudo pronto para o leitor receber de modo passivo” . Cabe, então, a este leitor verificar se as suas expectativas vão ao longo da leitura do texto sendo confirmadas ou refutadas, porque ainda, como nos diz a autora, “uma das atividades do leitor, fortemente determinada pelos seus objetivos e suas expectativas, é a formulação de hipóteses de leitura”
Assim, para a compreensão de um texto, como este conto, que possui uma estrutura de compreensão mais aberta, que permite a construção de interpretações distintas, variando de leitor para leitor, há a exigência de um maior esforço deste, pois como nos diz Paulino, “quanto mais aberto é um texto, mais exige investimento do leitor” . Além disso, para o autor “o texto exige do leitor várias competências, como a ligada aos conhecimentos prévios: da língua, de texto e de mundo”.
Através da análise de alguns elementos deste conto podemos observar como essa ironia se constrói em Machado. Pessimista e irônico denunciava os interesses que se escondiam sob as ações aparentemente nobres penetrando no íntimo das personagens, revelando-lhes uma vida interior intensa na tentativa de compreender o ser humano e suas atitudes: “amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar”  Aqui revela ao leitor o verdadeiro motivo de as amigas de Clara, lutarem para que ela não se casasse, parecia ser pelo nobre motivo “amizade”, já que o futuro noivo não era muito apegado ao trabalho e “dado em demasia a patuscadas” ·. Como amigas não gostariam de vê-la sofrendo. Mas, o verdadeiro motivo oculto sob essa ação era a “inveja” por não terem um pretendente sequer.
O narrador do texto é outro elemento importante para a construção da ironia nesta narrativa. Em terceira pessoa, a sua perspectiva aproxima o leitor do tempo e do espaço através de relatos históricos sobre os fatos que envolviam a escravidão, como na descrição das crueldades das quais os escravos eram vítimas. Pareciam ser transformados em coisas, deixando de ser humanos. Por exemplo, quando fugiam “grande parte era apenas repreendida; havia alguém em casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, por que dinheiro também dói”  O escravo, essa coisa, objeto, mesmo quando fugisse, não poderia sofrer muitos castigos, já que estes poderiam impedi-lo de prestar os serviços necessários a seu senhor, inutilizando-o, causando assim, grande prejuízo. Quando o narrador comenta “nem todos gostavam da escravidão” e “nem todos gostavam de apanhar pancadas”, qual pessoa gostaria de viver em completa escravidão, à mercê dos mandos e desmandos de alguém e, ainda por cima, levar algumas pancadas? Com sua ironia, parece que é ele, quem dá uma pancada nesse sistema de escravatura.
Segundo Teixeira, outra forma da ambivalência em Machado é a intertextualidade. Para o autor esse tipo de ambivalência é estabelecido através da relação intencional entre o texto que se escreve num dado momento e os outros que o antecederam na história da cultura. Podemos dizer que, trata-se, então, de um diálogo entre um texto do presente e um texto do passado. A intertextualidade é ambivalente porque aponta ao mesmo tempo em duas direções: para a vida concreta das personagens e para os símbolos da tradição literária. Grande parte dos textos machadianos é marcada por essa simultaneidade de significados, fenômeno ao qual se dá o nome de dialogismo ou polifonia. Não é difícil antever as dificuldades para uma leitura correta do estilo dialógico ou polifônico -, tão abrangente nas mãos de Machado de Assis, pois através desse procedimento ele, de alguma forma, incorpora a seus textos toda a história da humanidade. E tal diálogo se estabelece, via de regra, de modo irônico e contestatório. [10]z
Essa questão, do diálogo do texto machadiano com outros textos, podemos perceber através do processo de construção da personagem principal, Cândido, que do latim significa “alvo”, “puro”, “imaculado” [11]. Nome que foi grandemente popularizado pelo título de um livro de Voltaire, sátira ao otimismo de Leibniz, então em voga, que nos diz que nos encontramos no melhor dos mundos possíveis. É pertinente a comparação do Cândido de Voltaire e o de Machado, já que ambos são responsáveis por ironizar uma idéia vigente ou um sistema: um o otimismo desenfreado; e outro, o sistema da escravidão em que negros são tratados como objetos e não como seres humanos. Podemos dizer que os dois Cândidos estão longe de demonstrar que o mundo em que vivem é o melhor dos mundos possíveis.
O protagonista da obra de Voltaire é também chamado Cândido, o otimista, já que atravessa um sem fim de desventuras e sempre busca encontrar o lado positivo da situação, seguindo os ensinamentos de seu mestre Panglós. O seu caráter é o reflexo de sua alma, é sensível, apaziguador e sensato: “o seu rosto era o espelho da alma. Era de entendimento claro e espírito simples; e creio que foi essa a razão por que lhe deram o nome de Cândido” [12]. Aqui podemos dizer que reside a ironia do Cândido machadiano, pois seu caráter não revela nenhuma candura, antes pelo contrário mostra-se insensível ao aborto da escrava, é extremamente desumano arrastando-a pelas ruas até a casa do seu senhor, pois o que realmente importa para ele é conseguir alcançar o seu propósito, que é ficar com o seu filho. O egoísmo é sua marca principal.
A idéia de progresso e perfeição na obra de Voltaire está basicamente ligada ao trabalho: “quando o homem foi posto no jardim do Éden, foi ali posto para trabalhar, ut opereratur eum, o que prova que não foi criado para repouso” [13]. Este faz um homem tornar-se perfeito, além de dar-lhe melhores condições de vida, ou seja, ninguém é realmente feliz até que comece a trabalhar. Extremamente irônico, Machado constrói um Cândido que tem uma aversão ao trabalho, para ele todo oficio é custoso, além disso, muitas vezes, quem trabalha não recebe o que merece. Assim seus “empregos foram deixados pouco depois de obtidos" [14]. Então lhe restou o oficio de pegar escravos fugidos, já que este estava destinado aos inaptos para outros trabalhos, como era o seu caso. Ele, porém, tinha necessidade de estabilidade, e considerava isso má sorte ou infelicidade constante, ao contrário do Cândido de Voltaire, sempre otimista. Este, todavia, no fim da obra aceita que é mais importante a ação sobre a reflexão filosófica. Melhor que ficar pensando nos dramas existenciais é colocar-se a trabalhar, pois só o trabalho pode ser o remédio para muitos males, o que não pensa o nosso Candinho.
É conveniente também citar a ironia presente na construção das outras duas personagens do conto. Clara, cujo nome do latim significa “brilhante”, “luzente”, “ilustre”, além da tonalidade, seu nome é ligado ao brilho (de distinção). Distinção essa não revelada por sua personalidade que mesmo em meio à perda de seu filho, não esboça nenhuma reação e é sempre submissa aos desmandos da tia. Mônica, a tia, significa só, sozinha, viúva, o que não acontece no texto, pois está, geralmente, perto do casal, abrigando-os, participando de suas decisões, opinando, não fica sozinha vive em companhia dos dois.
Para dar verossimilhança aos fatos e reforçar a ironia à escravatura e à diminuição dos seres, o espaço ambiente, na cidade do Rio de Janeiro, é fundamental, pois sabemos que os nomes das ruas em que se desenrola a ação, são nomes reais, e que muitos são os mesmos até hoje. Fato que torna essa narrativa extremamente passível de verossimilhança externa.
Segundo Teixeira [15], Machado de Assis apresenta um pessimismo, cuja fonte está em Schopenhauer, pensador alemão, que afirmava que a essência do universo é a vontade ou o querer, entidade da qual emana a parte verdadeira dos indivíduos. Mas a vontade, tanto em estado cósmico quanto individual, é má, pois provoca a agitação, o egoísmo, o ciúme. Por isso a nossa personagem principal age como age, coloca a sua vontade de continuar com o filho acima de qualquer outra coisa, por isso é levado a agir com egoísmo, luta corpo a corpo com a escrava para poder entregá-la a seu senhor, e receber o dinheiro da recompensa, sem ao menos pensar que poderia agir de outra forma para não maltratá-la, já que estava grávida.
Vladimir Propp, em Morfologia do conto maravilhoso, conceitua como função da personagem na narrativa o “procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação” [16]. Relaciona trinta e uma funções ao estudar, pormenorizadamente, contos populares russos, porém, identificamos algumas destas facilmente no conto de M. de Assis. Através delas podemos perceber como se desenrolou a ação da personagem principal, dentro de um enredo curto, sendo ele um pai que vai lutar para continuar com seu filho, a ironia aqui consiste em não ser a mãe a responsável por essa luta, já que em nossa concepção, a mãe é mais ligada ao filho, por isso mais difícil perdê-lo.
Na primeira função, definida por Propp como afastamento, podemos salientar a tentativa de Candinho em deixar o ócio em que vivia e aprender um ofício, já que agora estava apaixonado por Clara e queria ter em que trabalhar quando casasse.
Na VI, definida como ardil, o Cândido Neves sofreu com as interferências da Tia Mônica que era contra o casamento da sobrinha com a nossa personagem e também das amigas de Clara que “tentaram arredá-la do passo que ia dar”.
Em XII, que trata da reação do herói, Candinho ficou muito triste por que agora ele tinha um filho para sustentar, as dificuldades aumentaram e ele, que agora virara caçador de escravos fugitivos, não conseguia empreitada que lhe rendesse algum dinheiro.
Na função XIV, o herói luta para conquistar um objeto, quando a nossa personagem descobriu em suas notas de escravos fugidos o anúncio da fuga de uma mulata em que a gratificação subia a cem mil-réis, achar a escrava seria a salvação, não teria que entregar seu filho à roda de enjeitados como queria a tia de sua mulher: “agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves. Saiu de manhã a ver e indagar...”.
Podemos salientar também a presença da função XXI, definida como perseguição quando Cândido, ao ir entregar seu filho, encontrou por acaso a escrava fugitiva, deixou o filho em uma farmácia e saiu em sua perseguição: “atravessou a rua, até o ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma”.
Na XXVI, a tarefa é realizada e, na XXVII, o herói é reconhecido. A nossa personagem captura a escrava, entrega-a a seu dono, e recebe a recompensa e volta para casa entre lágrimas com seu filho nos braços. Tia Mônica que não queria saber da criança, ouve a explicação e perdoa a volta do pequeno, uma vez que ele trazia um bom dinheiro para a subsistência da família.
Tendo em vista os aspectos observados, somos levados a crer que Machado ao construir este conto utilizou elementos que acetuam o tom irônico de suas palavras. Pois o conto, enquanto gênero, caracterizado por ser uma narrativa breve e cuja ação é inerentemente curta deve ser bem objetivo, sem muitos rodeios. Através da análise dos elementos semânticos, da ambivalência no texto machadiano, responsável pela comparação com o Cândido de Voltaire, do pessimismo e dos aspectos da estrutura narrativa como a perspectiva do narrador, a construção do nome das personagens e a função que a personagem principal desempenha dentro do enredo, esperamos ter conseguido mostrar como o autor consegue a apresentação de uma ironia extremamente rica, trabalhada minuciosamente, a fim de que nenhum aspecto do texto se desvie do propósito dele que é criticar as várias facetas do ser humano e do sistema social vigente na época em que este conto foi escrito

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