Carlos Drummond de Andrade se afasta do
coloquialismo e recorre à métrica rigorosa para falar da melancolia e do
desencanto
Carlos Drummond de Andrade, que em "Claro Enigma" abandona o tom coloquial e aproxima-se de temas mais abstratos
Les événements m’ennuient", ou "os
acontecimentos me entediam". A epígrafe, de autoria do poeta francês Paul
Valéry, prenuncia a temática predominante em Claro Enigma (1951),
a melancolia e o desencanto com a vida que se encaminha em direção à morte.
Desenganado com a capacidade de intervir no mundo, Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987) experimenta o fim da esperança engajada que conhecera em meados dos
anos 40, em A Rosa
do Povo.
A mudança de foco, contudo, nada tem a ver com um eventual distanciamento da realidade.
Drummond muda de objeto poético, afastando-se dos fatos concretos para falar de
ausências, perdas e temas abstratos como o tempo e a vida. "O poeta
volta-se para os seus mitos, dá razão ao inato transcendentalismo, colocando-se
a par dos grandes poetas do idioma. Não mais a lírica admiração do próprio ego,
mas o descortino dos arquétipos", na opinião do crítico Massaud Moisés. É
a poesia metafísica que, para o poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna,
"une o choro individual ao coletivo".
Este sombrio retrato é feito do sentimento de culpa que oprime o poeta e da
visão crepuscular que dá o tom da obra: a noção da impossibilidade,
estabelecida entre o transitório e o definitivo, a essência das coisas e seu
fracasso diante do tempo. Marca-se, também, a volta definitiva de um tema
fundamental: o amor, descrito sempre como vivência dolorosa. "Mas o que
antes aparecia travestido de ironia, nesse momento cede lugar a recorrentes
imagens de violência e mutilação", diz o crítico Vagner Camillo.
Do ponto de vista formal, Claro Enigma afasta-se do estilo livre e coloquial
dos modernistas; divide-se em seis partes: Entre Lobo e Cão; Notícias Amorosas;
O Menino e os Homens; Selo de Minas; Os Lábios Cerrados; A Máquina do Mundo.
Aqui o poeta se mostra mais atento à métrica e à forma dos versos, atitude
tomada pela crítica da época como um retrocesso. Mas logo comprovou-se que
Drummond tinha plena consciência dos riscos de alienação existentes na arte
pela arte. A releitura de formas antigas fortificou seus versos.
Entre os poemas que compõem o livro, A Máquina do Mundo é considerado por
muitos o maior da literatura brasileira. O título faz alusão ao trecho de Os
Lusíadas em que a Vasco da Gama é revelado o funcionamento da máquina do mundo,
após o navegador ter conquistado o caminho para as Índias. Todo composto em
tercetos, a versão do poeta mineiro mostra o eu-lírico que, durante um fim de
tarde, recebe a visita da máquina. Circunspecto, ele a desdenha friamente.
Então a experiência, que a princípio parecia grandiosa, se desfaz: "(...)
baixei os olhos, incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta/ que se
abria gratuita a meu engenho". Revela-se aí o conflito fundamental
eu-mundo, presente em toda a obra de Drummond, a recusa que faz da tentativa de
entender a história, tal como experimenta em A Rosa do Povo. "É o clímax da trajetória do
gauche, quando sujeito e objeto se fundem, a aparência e a essência se
integram", diz o crítico Affonso Romano de Sant’anna.
A mudança de foco, contudo, nada tem a ver com um eventual distanciamento da realidade. Drummond muda de objeto poético, afastando-se dos fatos concretos para falar de ausências, perdas e temas abstratos como o tempo e a vida. "O poeta volta-se para os seus mitos, dá razão ao inato transcendentalismo, colocando-se a par dos grandes poetas do idioma. Não mais a lírica admiração do próprio ego, mas o descortino dos arquétipos", na opinião do crítico Massaud Moisés. É a poesia metafísica que, para o poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna, "une o choro individual ao coletivo".
Este sombrio retrato é feito do sentimento de culpa que oprime o poeta e da visão crepuscular que dá o tom da obra: a noção da impossibilidade, estabelecida entre o transitório e o definitivo, a essência das coisas e seu fracasso diante do tempo. Marca-se, também, a volta definitiva de um tema fundamental: o amor, descrito sempre como vivência dolorosa. "Mas o que antes aparecia travestido de ironia, nesse momento cede lugar a recorrentes imagens de violência e mutilação", diz o crítico Vagner Camillo.
Do ponto de vista formal, Claro Enigma afasta-se do estilo livre e coloquial dos modernistas; divide-se em seis partes: Entre Lobo e Cão; Notícias Amorosas; O Menino e os Homens; Selo de Minas; Os Lábios Cerrados; A Máquina do Mundo. Aqui o poeta se mostra mais atento à métrica e à forma dos versos, atitude tomada pela crítica da época como um retrocesso. Mas logo comprovou-se que Drummond tinha plena consciência dos riscos de alienação existentes na arte pela arte. A releitura de formas antigas fortificou seus versos.
Entre os poemas que compõem o livro, A Máquina do Mundo é considerado por muitos o maior da literatura brasileira. O título faz alusão ao trecho de Os Lusíadas em que a Vasco da Gama é revelado o funcionamento da máquina do mundo, após o navegador ter conquistado o caminho para as Índias. Todo composto em tercetos, a versão do poeta mineiro mostra o eu-lírico que, durante um fim de tarde, recebe a visita da máquina. Circunspecto, ele a desdenha friamente. Então a experiência, que a princípio parecia grandiosa, se desfaz: "(...) baixei os olhos, incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta/ que se abria gratuita a meu engenho". Revela-se aí o conflito fundamental eu-mundo, presente em toda a obra de Drummond, a recusa que faz da tentativa de entender a história, tal como experimenta
O CLARO
ENIGMA DE UM TÍTULO:
Julieta Haidar (ENAH)
AMAR, DE DRUMMOND DE ANDRADE
Amar, este
poema de Drummond de Andrade, de seu livro
Claro enigma, de
1951,
juntamente com outro poema do mesmo autor, O enterrado vivo, d’ O fazendeiro
do ar, de 1954, foram objeto de um ensaio
publicado na Revista de Letras, da
Universidad
de Puerto Rico, em Mayagüez, em 1975. Uma das razões de reunir em um
mesmo
trabalho poemas relativamente próximos quanto à publicação, mas
aparentemente
distantes quanto aos títulos, foi a disforia marcante em ambos, de
enunciação
contundente no segundo e amargurada no primeiro. A preocupação maior
foi seguir
com rigor ensinamentos da época sobre abordagem do poético, do poético no
verbal. A
observação da coerência no tratamento
dos planos do conteúdo e da
expressão,
a sua correlação específica quanto à forma, o foco do sentido incidindo no
discurso e
seus procedimentos de desenvolvimento, a diagramação, o desenho na folha
impressa
foram alguns dos princípios que fundamentaram a leitura e análise dos dois
poemas.
No entanto, ao longo do tempo, a alegria de
ver e ouvir o primeiro poema -
Amar -
declamado em ocasiões festivas escolares ou, na mídia, por atores renomados se
confundia
com o incômodo pela empatia eufórica com
que sempre era lido.
Normalmente
tomado em fragmento, descontextualizado pois do todo, verificava-se que
o título da
peça funcionava como um indicador forte para essa orientação: amar, em
oposição
paradigmática a odiar.
Resolvemos,
então, desenvolver uma nova leitura, não mais com o foco voltado
para
poeticidade que se realiza em várias e distintas dimensões do texto poético,
mas
orientado a provar a disforia disseminada ao longo
dele, e de forma incontornável. Para
isso, ao
contrario da análise anterior, utilizamos e enfatizamos algumas categorias que
nos
pareceram mais adequadas para a abordagem do objeto central desta nova leitura.
Por esta
razão, de natureza metodológica, embora conhecendo os aportes teóricos
de Greimas
sobre o poético, expostos em diferentes ocasiões, como em Sémantique
structurale (1966) ou no ensaio ‘Pour une théorie du discours poétique’ (do
livro
Essais de
sémiotique poétique – 1972 - que traz estudos teóricos e práticos de dez
outros
autores), resolvemos nos restringir mais especificamente à reflexão
desenvolvida
na última
parte de seu livro Du sens – Essais sémiotiques (1970).
Em seu
estudo sobre palavras cruzadas, Greimas aponta entre estas e a linguagem
poética o
traço comum de tratar-se em ambos os casos de comunicação diferida. A
partir
dele, além da antipoeticidade das palavras cruzadas, Greimas assinala a
seguinte
diferença:
enquanto nas palavras cruzadas parte-se de um inventário de definições de
sentido
para chegar-se ao não-sentido das denominações, a linguagem poética parte do
aparente
não-sentido para o sentido.
Uma forma
de diferir a comunicação encontra-se expressa na já bastante
conhecida
conceituação de figura estilística: a distância entre duas expressões
diferentes
de um mesmo
conteúdo. Esta conceituação pressupõe, de um lado, a dicotomia
expressão
vs conteúdo e, de outro, a dicotomia equivalência vs distância. O trabalho do
leitor, na
busca da significação, consiste, portanto, na identificação da distância, isto
é,
das
expressões diferentes e, a seguir, na supressão dela através da identificação
de um
mesmo
conteúdo. Essa atividade pressupõe que nada no plano da expressão se opõe à
existência
de conteúdos formuláveis de formas distintas.
A figura
estilística é, portanto, uma figura que
se dá no discurso, lugar de
encontro do
significante e do significado, lugar
também de distorções devidas às
exigências
contraditórias da liberdade e das injunções da comunicação, às oposições
das forças
divergentes da inércia e da história. (GREIMAS, 1966, p.42, trad.nossa)
1.1 Se a figura estilística é uma relação de
plano da expressão e plano do
conteúdo
numa proporção de +1E/ 1C ,
faz-se necessário um exame da natureza das
unidades de
expressão, isto é, das unidades de comunicação, e das unidades do plano do
conteúdo,
ou seja, das unidades de significação.
As unidades
de comunicação são de dimensão e estrutura diferentes e são
descritas
através de categorias morfossintáticas e semânticas: lexemas, paralexemas,
sintagmas e
enunciados. Em todo discurso as unidades sintáticas servem de quadro a um
tipo
específico de isotopia: uma isotopia
gramatical que se manifesta graças à
concordância
e à recção. Constituída de um pequeno número de classemas, a isotopia
gramatical
se encarrega não propriamente da manifestação do conteúdo mas de sua
transmissão.
Greimas identifica essa função
gramatical com a função fática
jakobsoniana,
a qual é realizada por morfemas
gramaticais, cuja densidade semântica é
relativamente
fraca, essa isotopia tem função translativa:Esta noção de translação, diz
Greimas (1966, p.116), tomada de
Tesnière,
explica muito bem o papel desempenhado pelos morfemas
gramaticais,
os quais tomam os lexemas como os termos-objetos de
uma
sub-linguagem e os transmitem, como o jogador que passa a bola
para o
companheiro, com a ajuda da redundância gramatical até o fim
último que
é o destinatário.
A
redundância gramatical é dupla: de um
lado, a iteratividade das classes
gramaticais
e, de outro, a iteratividade dos mesmos esquemas elementares em que são
forjadas as
mensagens. A construção sintática não é, no entanto, tão transparente: ela
cria um
terceiro tipo de redundância graças, por exemplo, aos processos de derivação, à
reiteração
dos mesmos semas em lexemas e
translativos. Lembra Greimas (1966, p.
116)
(...) a
gramaticalização da manifestação seria algo excelente se as
funções de significação e as de comunicação fossem
claramente
distintas. Infelizmente, as estruturas de comunicação
(...) significam e
as
estruturas de significação (...) se gerenciam para comunicar: daí
resultam as
contínuas distorções do discurso.
1.2 Às
unidades de comunicação acima enumeradas não correspondem
unidades de
significação exatamente da mesma dimensão e estrutura. Não há
isomorfismo
entre estas duas unidades de natureza distinta.
As unidades gramaticais são unidades não-semânticas. Dentre elas, nem
mesmo o
lexema, de status sintático bastante claro, pode ser considerado unidade de
significação.
É antes um quadro gramatical que possibilita a manifestação de sememas
diferentes (GREIMAS, 1970, p. 305); é um modelo de
funcionamento e não uma
unidade de
conteúdo; é um modelo virtual que subsume todo o funcionamento de uma
figura de
significação recoberta por um formante
anterior a toda manifestação no
discurso;
este só pode produzir sememas particulares (GREIMAS, 1966, p.51)
A unidade
semântica é a resultante do encontro de pelo menos dois lexemas. Ao
não se
considerar mais o lexema como a menor unidade de sentido, a sequência do
plano do
conteúdo manifestado seria então a
composta da combinatória de dois
sememas. O
contexto é, portanto, a unidade de discurso superior ao lexema e é nesse
nível de
articulação do conteúdo que se processa todo o sistema de compatibilidades e
incompatibilidades
sêmicas.
Os
elementos constitutivos da sintaxe semântica são, portanto, os sememas.
Dados os
elementos constitutivos, a sintaxe oferece um corpo mínimo de regras de
construção
com as quais os sememas são arranjados em
esquemas sintáticos
elementares.
1.3. O
discurso é uma hierarquia de unidades de comunicação que se encaixam
umas nas outras.
A manifestação discursiva da linguagem consiste no estabelecimento
de relações
hipotáticas. Essa propriedade do
discurso que permite acrescentar
determinações
sucessivas não pode ser confundida com a propriedade da expansão. Esta
consiste na
capacidade de unidades de comunicação de dimensão e estrutura diferentes
serem
reconhecidas como equivalentes através da neutralização da hierarquia
sintática.
A
propriedade que tem uma sequencia em expansão de ser considerada como
equivalente
a uma unidade sintaticamente mais simples. A equivalência define o próprio
funcionamento normal de uma língua: uma atividade metalinguística em que se
valorizam
as relações de conjunção e disjunção.
Á mensagem
em expansão se opõe a decodificação compressiva da condensação.
A expansão encontra sua expressão na definição e a condensação, na
denominação.
A definição é uma expansão sintagmática que mantém com o termo a
definir - denominação - uma equivalência baseada na existência de alguns semas
comuns. Na
equivalência se dá uma identidade sêmica parcial que é suficiente para dar
conta do
funcionamento metalinguístico do
discurso e para autorizar uma análise
semântica.
Isto quer dizer também que entre dois segmentos justapostos um conjunto de
semas
permanece fora da área da equivalência: esta se processa entre a base
classemática
da denominação e os elementos genéricos da definição.
1.4. Em seu
ensaio sobre palavras cruzadas, após diferenciar a atividade do autor
e do leitor
- um cria a distância deixando a equivalência implícita e o outro suprime a
distância
explicitando os processos de camuflagem da equivalência -, Greimas (1970,
p.288-9 )
diz:
Já de início, o título do poema coloca a pergunta: por que amar e não amor? Uma
O contexto frasal é bastante complexo. É necessário proceder-se a toda uma análise não
4.0
A partir da segunda metade da estrofe II, o fulcro de significação se
desloca
4.2
A estrofe III está constituída de manifestações do complemento objeto,
5.1
A definição a - ( definição de
Este o nosso destino) sintetiza na forma de
7.0
A contradição acima referida se encontra expressa na última estrofe do
poema
O Exercício da Lucidez
Cristiane Escolastico Siniscalchi
Universidade de São Paulo (USP)
Mestrado em Letras
sinisescol@uol.com.br
O mundo não vale o mundo,
Tal como sombra no vale,
Referências Bibliográficas
Kelley Dias Foini (CES/JF)
Thereza da C. A. Domingues (CES/JF)
Em Claro Enigma existe uma relação que exagera em uma dimensão
Em Claro Enigma há uma reconciliação com o passado, e a memória
O poema “Memória”,em Claro Enigma é
analisado por Affonso Romano de
Tanto num caso como no outro, a
tarefa do linguista consiste em descrever
os processos
de manipulação de conteúdos, considerados
equivalentes enquanto núcleos de
Dn
(denominação) e de Df (definição) e
que sofrem uma série de conversões , transformações para
serem finalmente recobertos, na
manipulação lexemática, por expressões diferentes,
distanciadas e muitas vezes
desconhecidas. Pouco importa que o resultado dessa explicitação de
manifestação se apresente sob a forma
de regras de conversão ou de uma descrição de redes de
relações: basta que estas
manifestações não sejam consideradas como orientadas, uma vez que,
teoricamente pelo menos, o processo
criador do autor toma caminhos que o processo
interpretativo do leitor deve
reencontrar e percorrer no sentido inverso.
Nossa hipótese de trabalho consiste então em dizer que, dada a
equivalência entre os
conteúdos de Dn e Df, esta só pode
ser estabelecida pela supressão da distância (Di):
C (Dn) ≥ C (Df) - Di .
A partir de tal hipótese de
trabalho, é possível descrever a distância do ponto de vista
sintático e, a seguir , as
equivalências e as distâncias semânticas.
As definições apresentam uma
organização interna: são segmentáveis em duas unidades
discretas, passíveis de uma conversão
negativa aplicada simultânea ou sucessivamente aos dois
termos. Essas unidades que se
encontram ligadas por uma relação hipotática se encontram
também em uma relação de
complementaridade que exige o estabelecimento de uma isotopia
única indispensável à equivalência Df
= Dn.
1.5. Durante toda a análise das
palavras cruzadas de Greimas, permanece subjacente o
outro termo da comparação,declarado
desde o início do ensaio e retomado no final: a linguagem
poética. Tendo sempre em mente o
princípio que em La linguistique structurale
et la poétique
(1970, p.218) considera o impulso
revolucionário dado às pesquisas – o princípio da projeção
de equivalências na cadeia
sintagmática de Jakobson -, Greimas chega à conclusão de que na
linguagem poética é a existência de
uma isotopia geral do texto que possibilita a leitura
homogênea das definições.
Baseando-se no princípio de Jakobson,
afirma que a relação
hipotática dos lexemas de uma
definição pode ser neutralizada em favor dos sememas, os quais,
situados num plano semântico
homogêneo, se encontram em relação de conjunção e disjunção.
Numa definição de um texto
poético não ocorre, portanto, uma
hipotaxe de sememas mas uma
conjunção. De modo geral, pode-se
dizer que, se a ambigüidade de uma definição pode ser
resolvida graças à articulação
binária de sua organização interna, o mesmo não ocorre com a
denominação. Em princípio as
denominações – lexemas isolados- são indeterminadas quanto à
significação; elas dependem das
relações que mantenham com as definições correspondentes.Desta mútua
dependência das definições e denominações resultam, de um lado, a
reiteração de semas e, de outro, o
fechamento circular do discurso. Essas
duas consequências
fundamentam a originalidade do texto
poético. Segundo Greimas (1970, p.272),
A originalidade dos objetos
literários (o termo é absolutamente impróprio), parece poder
definir-se por uma particularidade da
comunicação: o esgotamento progressivo da informação,
correlativo ao desenvolvimento do
discurso; esta, ao cortar o fluxo das informações, dá uma
nova significação à redundância, a
qual, longe de constituir uma perda de informação, vai pelo
contrário valorizar os conteúdos
selecionados e enclausurados. A clausura neste caso transforma
o discurso em objeto estrutural e a
história em permanência.
Passemos, agora, à analise de um
poema de Carlos Drummond de Andrade, à procura dos
caminhos que, através do conceitos acima expostos, nos
conduzam à construção de um
subcódigo próprio, a um
micro-universo semântico específico, à apreensão dos mecanismos
discursivos responsáveis pela
criação, disseminação e sustentação da disforia a que nos
referimos.
2.0.
A M A R
Drummond de Andrade
Que pode uma criatura senão,
Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer,
Amar e malamar,
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados,
amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em rotação universal, senão
Rodar também, e amar?
Amar o que o mar traz à praia,
O que ele sepulta, e o que, na brisa
marinha,
É sal, ou precisão de amor, ou
simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do
deserto,
O que é entrega ou adoração
expectante,
E amar o inóspito, o áspero,
Um vaso sem flor, um chão de ferro,
E o peito inerte, e a rua vista em
sonho, e uma ave de rapina.
Eis o nosso destino: amor sem conta,
Distribuído pelas coisas pérfidas ou
nulas,
Doação ilimitada a uma completa
ingratidão,
E na concha vazia do amor a procura
medrosa,
Paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e
na secura nossa
Amar a água implícita, e o beijo
tácito, e a sede infinita. (Notícias
amorosas – Claro enigma (1988)
Já de início, o título do poema coloca a pergunta: por que amar e não amor? Uma
resposta imediata mas provisória é
oferecida pelo texto pela constante repetição da forma verbal
ao longo do poema, atingindo
inclusive o verso do fecho. Uma segunda
resposta decorrente da
primeira seria a que opusesse o
caráter estático do substantivo à dinamicidade do verbo,
indicando-se com isso a intenção de
focalizar-se não o sentimento mas a
atividade, o processo.
É necessário, no entanto, todo um
exame acurado para confirmar-se ou não essa significação
baseada simplesmente em uma distinção
morfológica, ou seja, numa denominação.
Tomando como pressuposto que a
relação do título de um poema e o próprio poema é
uma relação de denominação/definição,
de condensação/expansão, estabelecemos como
hipótese de trabalho que a relação
entre título e texto é a que define a figura estilística, ou seja,
duas expressões diferentes para o
mesmo conteúdo.
2.1.O poema é composto de cinco
estrofes, todas elas de muitos versos, excetuando-se a
última, constituída, em franco
contraste com as anteriores, de somente dois versos. Tal contraste
não é homologado por um outro: a
forma amar comparece nas três primeiras estrofes e na
última, enquanto a penúltima, a IV,
se caracteriza pela presença reiterada da forma amor. Após
a reiteração de amar
nas três primeiras estrofes, a sua volta na última é enfatizada pela
interpolação de uma estrofe marcada
pela sua ausência, substituída pela forma
amor. Pode-se
dizer ainda que essa volta está
também posta em destaque não só pela
interpolação referida
como pela diferença numérica dos
versos da estrofe. A sua forma nominalizada no alto da folha
de papel, solta no meio do silêncio
do espaço em branco ao redor, se oferece como significante
à espera da descoberta de seu
significado.
2.2. As estrofes em que se apresenta
a forma amar, na realidade retomam simplesmente
a pergunta formulada logo nos versos
iniciais:
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
O contexto frasal é bastante complexo. É necessário proceder-se a toda uma análise não
só da modalização introduzida pelo
verbo poder como também pela forma interrogativa, de
valor nitidamente retórico e,
consequentemente a esta, da restrição forte expressa pelo senão.
Por ora tomemos aquilo que está
evidente na questão formulada pelo poema: a disforia
manifesta nos dois versos iniciais,
introdutórios, é confirmada, de forma mais clara, na primeira
parte da estrofe II pela
transformação da enunciação em enunciado, em um enunciado reflexivo:
Que pode, pergunto, o ser amoroso (...) senão rodar também, e amar?
O primeiro dado com que se conta é a
disforia atribuída ao verbo amar, contrariando a
euforia pressuposta no sistema por
sua oposição à disforia de odiar.
Considerando-se ainda simplesmente o
verbo que realiza o núcleo do predicado
da
proposição, verifica-se que os três
verbos subsequentes se encarregam de não
só confirmar
reafirmando o que expressam os dois
primeiros versos, mas principalmente de estabelecer
equivalências. Se equivalência
implica semelhança e diferença, identidade e distância, pode-se
dizer que nessas sequências –
binárias e ternárias – dos três versos ocorre uma isotopia antes de
mais nada gramatical, graças à
reiteração da mesma classe morfológica, graças à reiteração do
mesmo esquema sintático
elementar. Dá-se, pois, uma identidade
sintática, numa relação
isomorfa.
A distância no plano da expressão,
praticamente total em esquecer e parcial (através dos
prefixos) em desamar, malamar, é
neutralizada pela disforia contextual de
amar. Com relação
ao primeiro verbo, essa distância só
é vencida, parece, após o exame de sua significação decorrente da posição
ocupada por ele na sequência do
verso. Vamos ater-nos somente aos
compostos. Nestes, como se disse, a oposição
paradigmática da disforia lexicalizada pelos
prefixos é neutralizada pela disforia
de amar
no contexto geral do poema: a oposição
desaparece, assim. Essa neutralização possibilita, de um lado, a
equivalência semântica entre o
verbo original (amar) e os seus
compostos (desamar, malamar) e, de
outro, mantém em
suspenso a categoria da quantidade
relativa manifestada na articulação Ø( des-)
VS ± (mal-).
Da mesma forma que na estrofe I,
introduz-se na estrofe II um verbo cuja
expressão, como esquecer, manifesta a
primeira instância de distanciamento:
(... que pode senão)
rodar também, e amar?
A comutabilidade sintática entre
amar/rodar está afirmada enfaticamente
uma vez que o
novo lexema ocupa no verso exatamente
a mesma posição ocupada por amar na estrofe anterior;
na sequência é amar que se apresenta como o segundo termo da
equivalência. Entre a estrofe I
e a II ocorre uma inversão:
(...que pode senão)
I - amar e esquecer ; malamar; desamar
II - rodar e amar.
Essa inversão, ao colocar uma relação
de permuta entre os termos, neutraliza a pertinência
distintiva da posição e reafirma a
equivalência dos lexemas.
Tanto
esquecer quanto rodar
se distanciam de amar. No entanto, se ao primeiro é
necessário percorrer toda uma
trajetória complicada que leve à equivalência, no segundo verbo
parece mais fácil estabelecer uma
base isotópica. Para isso é preciso situar o lexema no contexto
geral do poema.
3.0 Deixando de lado por ora todos os
demais aspectos introduzidos pela sua natureza
retórica, pode-se considerar
como uma das frases de base da
proposição dos versos iniciais a
seguinte:
X ama Y
X é realizado na estrofe I pelo
sintagma uma criatura, enquanto Y se reduz a Ø. Na
estrofe II, esse sintagma é
substituído por o ser amoroso enquanto Y continua Ø, embora só na
primeira parte em que esta estrofe se
divide. Num primeiro momento, a tônica recai, portanto,
na relação SN – SV. Tanto assim que os seus constituintes
básicos, o sintagma sujeito e o
núcleo do predicado, recebem
determinações em oposição à ausência do complemento objeto:
Uma criatura, entre criaturas,
e até de olhos vidrados, amar?
Na estrofe II, a ênfase sobre o
sujeito persiste na forma de substituições e de expansão
ou condensação: uma criatura cede
lugar a o ser amoroso e entre criaturas
passa a sozinho,
que se especifica em rotação universal. Já com relação ao
predicado algumas alterações se
observam. A partir da estrofe II não
se verifica na posição de até de olhos
vidrados nem
expansão nem condensação semelhante
às da posição sujeito. Faz exceção solenemente
na estrofe III, justificável pelo
sintagma objeto. Em contraposição ganha relevo a partir
da segunda parte da estrofe II a
função objeto, atualizado em todas as estrofes em que
ocorre o enunciado de base. Essa não atualização de sintagmas circunstanciais
e a
importância atribuída ao objeto fazem
supor uma relação de suplência do circunstancial
pelo objeto. Isto é, a significação manifestada por até de olhos vidrados pode se
apresentar veiculada nas demais
estrofes pela articulação dos sintagmas objeto3.1. Uma análise contextual de
amar revela a existência de duas classes contextuais
de lexemas aptos a ocupar a posição
X: uma classe do universo humano e uma
classe do universo animal. Tem-se
aí a categoria /animado/ que se disjunge
em
/humano/ vs
/ animal/. Um rápido cotejo no campo
lexemático de criatura revela como semas
constantes os seguintes: /animado/, /produto natural/ e,
como contextuais /humano/ ou /
animal/. Em um subconjunto de
contextos, criatura é equivalente
ao lexema homem. Isso
significa que se tem, no enunciado uma criatura ama de isotopia humana, um emprego
estilístico de criatura, o qual
obriga a procura dos semas disjuntivos que motivaram, a partir da
equivalência referida, a escolha de
tal expressão.
A resposta é sugerida
primeiro pelo sintagma entre
criaturas e depois , na estrofe II,
pela expansão em rotação
universal. A espacialidade manifestada
pelo primeiro e especificada
como terrena pela segunda põe em
destaque um traço discreto anteriormente apontado: o
de /produto natural/ .
Na estrofe II, a expressão uma
criatura é substituída por o ser amoroso. A
divisão do novo sintagma sujeito em duas unidades
discretas (o ser/ amoroso) deixa ver
a lexicalização do sema /ser/, eixo da
articulação de /animado/ vs /inanimado/ e presente
em criatura na forma de seu primeiro sema. Por outro
lado, o artigo definido indicando
pronominalização e a transformação em adjetivo, dada pelo
sufixo -oso, revelam o
sintagma como resultante da
transformação do enunciado: uma criatura ama.
Tem-se aí uma transformação de uma
predicação funcional em uma predicação
qualificativa. Além da distância
estilística entre as duas expressões que realizam a
função sujeito, verifica-se ainda uma
distância entre o enunciado da estrofe I como um
todo e o sintagma sujeito do
enunciado da estrofe II. Nessa distância, traduzível em
termos de redução de uma predicação
funcional em qualificativa, processa-se uma
retomada metalinguística da primeira
pela segunda. A esta retomada a nova expressão,
resultante de uma lexicalização,
explicita semas não perceptíveis numa leitura isolada
da primeira expressão. Explicitar
semas suspensos no enunciado anterior, eis a função
da segunda unidade do sintagma o ser
amoroso.
Quais semas? Uma resposta pode ser tentada pela comparação da forma
derivada de substantivo – amoroso
– com a forma derivada de verbo –
amante –
preterida no poema.
3.2. A língua portuguesa oferece as duas possibilidades de derivação,
cada qual
manifestando um ou vários semas
específicos. Considerando-se que o adjetivo resulta
da transformação de uma predicação
funcional, cujo núcleo é realizado por um verbo, a
forma de maior probabilidade seria a
verbal: pergunta-se, por isso, qual a razão da
isotopia instituída pelo termo
escolhido.
Procedendo-se a uma comparação dos
campos lexemáticos em que se distribuem
as duas formas, chega-se a uma
conclusão parcial. É necessário confrontar os resultados
obtidos com os dados que oferecem
comparações com outros pares homólogos
existentes na língua (ardor-oso/
ard-ente; estudi-oso/ estudante) e ainda com aquelas
formas - substantivas ou verbais - que não possuem
par.
3.3. Antes, porém, é preciso examinar
a relação do sujeito sintático-semântico
dos enunciados com o seu predicado,
tendo em vista ser o sujeito da estrofe II uma
condensação da predicação funcional
da estrofe I. E, a seguir, examinar a relação dos
dois enunciados entre si, tendo em
vista o funcionamento metalinguístico do discurso
que aí se processa.Na estrofe I,
entre o sujeito e o predicado, deixadas de lado as significações
instauradas pelos processos retóricos
apontados, não parece apresentar-se nenhum
problema. Na estrofe II, no entanto,
a tautologia primeiro evitada e depois realizada - o
ser amoroso roda – o ser amoroso ama, assinala duas perspectivas inversas à
abordagem da equivalência. A
tautologia, numa primeira instância, afirma uma
identidade semântica, um sentido óbvio; esse sentido óbvio impõe, numa segunda
instância, uma leitura a partir da
não-identidade sintática dos segmentos justapostos. Em
oposição à tautologia de o ser
amoroso ama, a primeira predicação (roda)
cumpre de
imediato aquilo que Greimas atribui à
escritura poética: diferir a comunicação. Em
contraposição, portanto, à isomorfia
sintática de roda / ama e uma criatura / ser
amoroso, caracterizada como lugar de
substituições paradigmáticas, no caso da
tautologia a divisão do enunciado em
dois segmentos (o ser amoroso / ama)
denuncia
uma relação heteromorfa entre eles.
De acordo com Greimas, a relação
heteromorfa
entre termos equivalentes oferece a
possibilidade de intercâmbio, de permutas
sintagmáticas dentro do quadro do
próprio enunciado: o ser amoroso ( Dn) =
(o que)
ama ( Df).
Essa equivalência horizontal não pode
ser estabelecida logo de início entre os
componentes do enunciado da estrofe
I: uma criatura / ama.
Isto porque é
indispensável a mediação da
transformação realizada na estrofe II para que a
equivalência sintática substitutiva
seja complementada por uma equivalência semântica.
Para que criatura substitua integralmente ser amoroso,
a leitura deve percorrer duas
direções sucessivas: a primeira, da
estrofe I para a II, e a segunda, da estrofe II para a I.
É só então que a equivalência
heteromorfa de criatura /ama se torna viável.
Se se concorda com Greimas quanto à
distinção entre escritura substitutiva
“essentielle” e escritura
permutacional “evenementielle”, a condensação do enunciado
da estrofe I pelo sintagma nominal da
estrofe II se processa graças à passagem de uma
perspectiva “evenementielle” para uma
perspectiva “essentielle”. Como, no entanto, a
relação heteromorfa da estrofe II se
apresenta na forma de uma predicação funcional,
verifica-se numa segunda leitura que
a escritura “evenementielle” está determinada por
uma perspectiva “essentielle”.
3.4.
Voltando à dicotomia amoroso
/ amante, um primeiro aspecto que se
oferece é o do comportamento
sintático dos dois lexemas quanto à exigência ou não de
uma complementação equivalente à
requerida pelo verbo amar. Fazendo-se a
substituição de amoroso
por amante no sintagma em questão, confirma-se a
comutabilidade deles, sem que a forma
verbal acarrete a manifestação necessária de
uma complementação. Entretanto, um
rápido exame das condições em que tal
comutação é possível revela uma
proporcionalidade inversa no emprego das duas
formas:
a- poucos são os contextos em que a
forma amante aparece sozinha; nesses casos,
ou ela se apoia em um contexto mais
amplo que o enunciado elementar, ou se situa em
um enunciado de condensação isotópica
ou recebe uma carga generalizante (amada
amante/ ser amante de..).
b- em contraposição, a outra forma
guarda uma boa autonomia quanto à
complementação; quando se dá, ela
marca o caráter particularizante da ocorrência: X é
amoroso. X é amoroso com ...
O emprego das variantes coloca ainda
a distinção habitual / não-habitual,
integrado / não-integrado. E ainda a
questão da compatibilidade e incompatibilidade semântica. A oposição /humano/
vs / não-humano/ só é pertinente quando se articula o
traço /não-humano/ em /animado/ vs
/inanimado/ . O /humano/ é traço conjuntivo dos
lexemas em questão mas a
especificação /não-humano/ + /inanimado/ é incompatível
com
amoroso. Além do caráter eminentemente humano deste, o exame das
compatibilidades sêmicas entre os
lexemas e seus complementos não parece oferecer
subsídios à análise do poema. A
disjunção, porém, de /processo/ vs / estado/ que
aparece na oposição de
amada amante / amoroso pode talvez explicar a diferença de
proporção quanto a maior e menor grau
de integração entre sujeito e atributo. Em vista
da distribuição quantitativa dos
contextos em que os lexemas se apresentam
acompanhados ou não de complemento, pode-se
dizer que amoroso manifesta o traço
/habitual/ ou / permanente/, enquanto
em amante aparecem os termos contrários.
Quanto à transitividade ou não
decorrente se visualiza a seguinte escala:
Intransitividade ± transitividade transitividade
X é
amoroso X
é amante X é amante de...
X é amoroso com...
O metassemema lexicalizado pela
preposição com neutraliza até certo ponto a
intransitividade da forma X é amoroso, acrescentando-lhe uma
transitividade
circunstancial. Em oposição a isso e
confirmando a diferença de integração sujeitoatributo acima assinalada, os
morfemas de e com indicam uma maior integração de
atributo-complemento em amante
e menor em amoroso.
No universo restrito do poema, não se
julga a diferença etimológica das duas
formas que fatalmente apontaria o
traço /processo/ à forma proveniente do particípio
presente latino; nem se julga a maior
ou menor assimilação dessa forma verbal à classe
dos adjetivos. Não é também
pertinente a oposição sentimento/sentimental que
normalmente se reconhece em
amoroso.No poema, em amoroso se expressa um atributo
hiponímico do sujeito; expressa-se
uma qualidade fundamental e inerente ao humano.
No momento, porém, em que o ser
amoroso se define como criatura, ou seja
como produto natural, terreno, ele
assume a função actancial de uma predicação
funcional e participa de um pequeno espetáculo, que comporta um
processo, alguns
atores e uma situação mais ou menos
circunstanciada (GREIMAS, 1966, p.117). Passase, pois, de uma manifestação
mítica axiológica para uma manifestação ideológica. O
ser amoroso ou a criatura se faz ator
de um saber-fazer mítico. Ao expressar-se este pelo
verbo amar, acarretando uma
complementação – implícita ou explícita -, manifesta-se a
transitividade característica de
amante.
para a área do objeto.
O complemento direto do verbo
amar aparece de várias formas:
realizam-no
unidades de significação de estrutura
e dimensão diferentes e dos mais diferentes
campos semânticos. São unidades
expressivas cuja equivalência sintática é determinada
pela estrutura do predicado do
enunciado. Distinguem-se pela diversidade de lexema
empregado e pela estrutura do próprio
sintagma que o compõe.
Na estrofe II, a função objeto
aparece de forma oblíqua e complexa:
Amar o que o mar traz à
praia
o que ele sepulta.A
estrutura das definições do objeto de amor é, neste caso, senão a mesma,
semelhante à de um código de palavras
cruzadas. Dada a definição, parte-se
para a
denominação. Entretanto, os subsídios
oferecidos ao leitor do poema são menores que
os do decodificador de palavras
cruzadas: este conta com as balizas dos quadradinhos,
de números e posições, e dos
grafemas. Restringindo-se ao quadro dos dois versos
acima, as definições por estes
expressas são definições “evenementielles”, ou se situam
no limite desse tipo de codificação.
O jogo de cata-anaforia entre o antecedente (o
pronome) e o consequente (a frase) não permite a
identificação de um referente no
âmbito do discurso.
Mas, atendo-se ao que oferecem os
dois enunciados, duas significações se
depreendem: a variabilidade de objeto
de amor, expressa pela variedade de predicados
atribuídos ao mesmo sujeito (mar) e a
própria não identificação do objeto A mesma
isotopia gramatical liberada pela
identidade posicional, sintática dessas duas definições
continua a manifestar-se no final da
estrofe:
(amar....) e o que , na brisa marinha,
É sal, ou precisão de amor, ou
simples ânsia.
Ao lado dessa identidade, duas
diferenças se impõem: primeiro, a substituição das
predicações funcionais por
predicações qualificativas; depois, a importância do
sintagma preposicionado na brisa
marinha.
As expressões sal, precisão de amor, simples ânsia são
equivalentes quanto à
posição sintática e o são também
quanto à localização no verso. As três
expressões
segmentam a unidade formal do verso
em partes bem determinadas. A distância entre
elas se situa na motivação semântica
direta de mar-praia-brisa-marinha-sal ,
e na
motivação metafórica – hipotática das duas outras. Entre brisa marinha - sal há uma
relação hiponímica, de parte para
parte no todo mar. Isso não acontece entre brisa
marinha - precisão de amor - simples
ânsia.
Em
o que na brisa marinha, é sal
volta a repetir-se uma definição
“evenementielle”, mas um pouco menos
transparente que as anteriores. Dela se
depreendem os seguintes dados: apesar
de tratar-se de uma predicação qualificativa, não
se processa uma equivalência simples em que X = sal; a restrição
imposta ao sintagma
preposicionado através de em, deixa
evidente a significação do verbo ser neste contexto:
o que na brisa marinha corresponde a
sal. Ou, tendo como eixo a espacialidade
/onde/ :
sal : mar ::
? : brisa marinha,
equação que não pode ser expressa por
: o que é da brisa marinha sal. É esta
não
identificação do referente que
possibilita a criação das metáforas subsequentes:
o que é, na brisa marinha,
precisão de amor,
simples ânsia.
As três expressões estão ligadas
entre si pela conjunção ou. O metassemema que
ela cobre pode ser ou uma disjunção
de exclusão ou uma disjunção de inclusão. Ou
ambas: daí a ambiguidade do texto. Pela exclusão,
sucedem-se três objetos de amor
diferentes. Por inclusão, realiza-se
uma explicitação metalinguística em cadeia. Se se
aceita a última alternativa, torna-se
reconstituível o percurso de uma isotopia a partir do
último termo - simples
ânsia, para chegar-se às
definições “evenementielles” desta estrofe. A palavra ânsia revela, no
contexto, o sema /carência/ no eixo da comunicação
sujeito-objeto, incidindo sobre o
sujeito. O determinante simples
explicita a relação
semântica dada pela ordem da
atualização dos lexemas precisão e ânsia. Na metáfora
precisão de amor ocorre uma nominalização em que se determina
o objeto, sem
contudo deixar de enfatizar-se a
carência no sujeito, a qual institui o objeto como tal,
isto é, o objeto é decorrência da
carência no sujeito. Em outras palavras, nas duas
expressões metafóricas se apresenta
implícito o processo de comunicação do objeto. A
verbalização do objeto em uma e sua não verbalização em outra - conferindo um
caráter particularizante à primeira e
um caráter generalizante à segunda, e ainda a
gradação de intensidade de mais para
menos, implícita na sequencia precisão – ânsia
-
colaboram na caracterização do
sujeito como um sujeito carente de. Chega-se assim às
conclusões:
a- as definições “evenementielles”
ganham sentido na medida em que se
inserem num contexto maior: esse
sentido lhes é atribuído graças ao suporte da
equivalência sintática;
b- as definições metafóricas são as
que liberam a base sêmica contextual;
c- entre as definições a- e b- intercala-se uma definição complexa,
intermediária: ela participa de a-
pela isotopia denotativa e de b- pela equivalência
sintática, estendendo a ponte de b- para a-.
Como em b- se opõem determinação e
não determinação do objeto vs marca do
sujeito, uma nova leitura de a- se torna possível. A indeterminação do
objeto em adirige o centro de significação para a relação sujeito vs variedade
de objeto. Como o
sujeito em b- é um sujeito carente de, a variedade de objetos e sua
indeterminação
levam à equivalência:
amar Y =
necessidade de.
4.1 Sobre esta estrofe e as
definições b-, uma nota ainda: a natureza hiponímica da
relação sujeito-objeto, identificável
apesar dos torneios sintático- semânticos que levam
à sua metaforização; o sujeito ama a
própria carência que o caracteriza enquanto sujeito.
É esta mesma relação que volta na
estrofe III, verso 2; este repete a mesma estrutura
sintática básica das estrofes
anteriores, localizando-se assim, quanto à complexidade,
entre as definições a- e b- :
a- amar o que o mar traz à praia
ele sepulta
amar o que é entrega ou adoração
expectante
b- amar o que é, na brisa marinha, precisão de amor
simples ânsia.
introduzidas nessa unidade formal
poética pelo núcleo do predicado. Essas
manifestações dividem-se em
expressões referenciais de diferentes campos semânticos e
em expressões metalinguísticas:a-
bamar as palmas do
deserto o
inóspito
um vaso sem flor o áspero
um chão vazio
entrega
o peito inerte
adoração expectante
a rua vista em sonho
uma ave de rapina
Os sintagmas de a- são segmentáveis
em duas unidades, em todos eles a
articulação sêmica das unidades
libera o sema /carência/, graças à incompatibilidade
/elemento preenchedor/ vs /
continente não-preenchido/ (palmas do
deserto) ;
/continente/ vs /não- conteúdo/ (vaso
sem flor, chão vazio); /órgão ativo/ vs
/ nãoenergia/ (peito inerte); /realidade/ vs / não-realidade/ (rua vista em
sonho); /predador/
vs / não-predador/ (ave de rapina).
A visão mítica disfórica dada pela
articulação sêmica desses sintagmas é
explicitada nas nominalizações:
(amar) o inóspito, o áspero,
em que a carência se manifesta graças
à articulação de /continente/ + / não-habitável/ +
/rude/. A segunda modalidade de
manifestação do objeto classificada em b-
apresenta
também duas nominalizações, ambas de
enunciados que podem ser transcritos da
seguinte forma:
F=
SN + SV
V
+ SN²
vt
As nominalizações omitem o SN²,
fazendo a significação incidir na relação SN -
SV, e não em vt -
SN² . O sujeito implícito e a não manifestação do objeto fazem ver
entre eles uma relação de
reflexibilidade (entregar-se) a qual pode receber na posição
objeto tanto uma representação
hiponímica (de parte do ser) quanto hiperonímica (da
totalidade) . A reflexibilidade
coloca a ênfase na postura do sujeito. Isso se confirma no
determinante da expansão
seguinte: adoração expectante, onde a isotopia da carência
está evidente.
Bipartindo-se a expressão sintetizante (adoração expectante) em dois
segmentos
de forma que a eles correspondam
complementos distintos do sujeito, evidencia-se a
seguinte gradação:
Entrega adoração expectante
(dar-se por completo) (dar amor) (receber ou esperar amor)
A relação metalinguística instalada
pela conjunção (ou) torna equivalentes as duas
expressões e conduz à mesma conclusão
da estrofe II
entrega = adoração
expectante = carência do sujeito4.3
.Nas estrofes anteriores, I e II,
as expressões que desempenham o
processamento metalingüístico do
discurso poético se encontram no último
verso: elas
devolvem a leitura aos termos a que
se referem. Já na estrofe em questão,
essas
expressões situam-se em versos
internos (v.2, v.3). Os versos externos (v.1, v.4 e v.5) se
transformam em realizações
estilísticas de um conteúdo catafórico e anaforicamente
dado. Conteúdo posterior a v.1. (anafórico) e antecipado a v.4. e v.5
(catafórico).
5.0 Vejamos agora a estrofe IV,
caracterizada no início deste estudo pela
ocorrência da forma verbal amar e
pela repetição da forma substantiva
amor.
Esta oposição distributiva dos termos
dicotômicos coincide com a distribuição das
predicações funcional e qualificativa
no poema. Enquanto as demais estrofes
apresentam uma predominância da
predicação funcional, esta se apresenta toda ela
constituída de predicações
qualificativas, seja na forma de um enunciado com elipse da
ligação verbal (este o nosso
destino), seja na forma de sintagmas resultantes de
nominalização.
A diferença acima colocada explica o
seguinte: a função predominante na estrofe
IV é a metalinguística, evidenciada pelo processo de justaposições e
condensações. A
estrofe é introduzida pelo enunciado:
Este o nosso destino,
ao qual se seguem, como indica o
signo sintático dos dois pontos, vários sintagmas de
função apositiva. As definições se
distribuem em duas unidades segmentáveis em cinco
outras. Como assinala Greimas, esse
tipo de sintagma em expansão é susceptível de
uma decupagem binária:
a - amor // sem conta;
a’- (amor) // distribuído pelas coisas pérfidas ou
nulas;
b - doação ilimitada // a uma completa ingratidão;
c - concha // vazia do amor;
d - procura medrosa, paciente
// de mais e mais amor.
Observa-se aí a posição sintática
ocupada pelo lexema amor: mediatizadas
pela
definição b- - em que o lexema não
ocorre, fato significativo, como se verá - as duas
primeiras e as duas últimas se
encontram em uma relação de inversão:
a , a’ b c, d.
amor (...) Ø (...) de/o amor
Isto, respeitando-se a forma de
expressão do texto, não gratuita sem dúvida, de
definição de a’; sem se proceder,
portanto, às transformações necessárias a uma outra
perspectiva de abordagem.
O primeiro segmento de b- e d-
resulta de duas nominalizações de enunciados cujo
núcleo verbal é constituído por
verbos transitivos (doar, procurar);
está constituído
duas vezes da palavra amor
e, em c- , de um substantivo
devido a uma motivação
metafórica. Entre as duas
nominalizações duas diferenças se verificam. Enquanto à
procura se indica o objeto (amor),
à doação, não. Em doar, o sujeito é
destinador também; em procurar o sujeito é o próprio destinatário. Em um
caso tem-se sujeito
fonte de amor e, no outro, sujeito
receptor de amor.
Procedendo-se às transformações de
a’- à que se referiu acima, tem-se:
( Amor) distribuído
pelas coisas pérfidas ou nulas
Distribuição de amor pelas
coisas pérfidas ou nulas.
Neste caso o lexema amor passa ao
segundo segmento da definição, o que acarreta
sua equiparação à posição ocupada
na definição d-. A expressão original do
poema
evita
essa equiparação pois parece
predominar nesta parte da estrofe uma visão do
processo de comunicação do objeto em
que o sujeito é também destinador.
uma denominação todas as predicações
das estrofes anteriores em seu conjunto. Ela
desempenha, portanto, uma dupla
função metalinguística:
Estrofe I e II amor sem conta nosso destino
DF → Dn Df →
Dn
Ao dividir-se em dois segmentos, este
sintagma abre-se a uma expansão de sua
segunda parte - a definição a’ :
Amor / sem conta = (amor) distribuído pelas coisas pérfidas ou
nulas.
O semema /relação de parcelas/ + /
não limite/ de sem conta se especifica: a
relação de parcelas se faz expansão
descontínua especificada, por sua vez, em ou
/humano/ ou /não-humano/ . A
definição b- de nosso destino é denominação das duas
definições anteriores ( a e a’ );
isto é, amor sem conta e (amor)
distribuído pelas coisas
pérfidas ou nulas equivalem a ilimitada a uma completa ingratidão.
A negação do limite da relação de
parcelas é lexicalizada na definição pelo
determinante do primeiro segmento:
ilimitada. O caráter superlativo do determinante
está contido no determinado: doar é
dar inteiro, por completo. A descontinuidade de
distribuir especificada em /humano/ e em /não
humano/ em pérfidas e nulas se
apresenta agora, tanto em doar
quanto em completa , na forma de outro termo da
articulação /parte/ vs /todo/. A disforia humana transforma a
transitividade, a expansão
unidirecionada do ato de doar em reciprocidade negada, ao expressar-se pela palavra
ingratidão na qual o sujeito seria destinador e
destinatário, num sincretismo de três
actantes no mesmo ator.
As definições a- e a’- , de um lado, e a denominação b-, de outro, estabelecem,
portanto, uma relação de
manifestação discreta / manifestação
integral
do mesmo conteúdo. Se se considera:
- a ausência manifesta do objeto na
definição b-, em oposição à sua presença clara
nas demais;
- a posição intermediária da definição b- na inversão a- a’-
→ c- d- , à qual
corresponde uma distribuição homóloga
de sujeito destinador e sujeito destinatário;- a relação manifestação discreta vs manifestação
integral na retomada das
definições a- e
a’- pela b-,
então se pode afirmar que o objeto de
doar (doação de ) é o termo complexo dos
sujeitos das definições que antecedem
b- e a seguem: sujeito + destinador + destinatário.
Repete-se pois aqui a mesma estrutura
vista em entrega ou adoração
expectante, ou
seja:
amor sem conta
distribuição (de amor) doação ilimitada procura de amor
---------------------------------
=
-------------------------- = ------------------------ =
carência
Sujeito - destinador sujeito – objeto sujeito - destinatário
5.2. As definições finais c- e
d- o são, como as iniciais, de
nosso destino
e se encontram numa relação de
imbricamento:
d- a procura medrosa , paciente, de
mais e mais amor;
e- na concha vazia do amor
Em c- , a adjetivo vazio retoma a base semêmica das
manifestações da função
objeto na estrofe II e III e as
categorias disfóricas das definições a-, a’- e b-. A primeira
parte da definição – concha - manifesta os semas /continente/ + /fechado/
+/circular/ ,
os quais acrescentam os do lexemas
determinante. À definição toda, portanto, a
significação:
Continente fechado, circular, não
preenchido, humano, disfórico.
Daí a contradição entre esta e a
definição em que está contida: de um lado a
afirmação do objeto e, de outro, a
sua negação: a procura do amor na concha vazia do
amor. Em outros termos, contradição
entre:
/expansão/ + /transitividade/ vs /não
expansão/ + /circularidade/.
Se na
definicão b- se reconhece a
manifestação do termo complexo
(/transitividade/ reciprocidade/
intransitividade/), nela se reconhece a ponte da
transformação de /transitividade/ em /circularidade/ .
6.0. Relacionemos, agora, essa
conclusão geral sobre a relação sujeito destinadordestinatário e a atividade
amorosa, primeiro, com as expressões da função sujeito no
poema; a seguir, com a significação
dos recursos retóricos das estrofes I e II
(interrogação e restrição) e da
denominação destino da estrofe III. 1- Em ser amoroso interessa o caráter
de imanência do atributo, a visão de um
estado permanente, não circunstancial
e intermitente; interessa, por
conseguinte, a visão “essentielle” do
homem;
2- A essa visão do homem se
acrescenta a sua condição disfórica expressa pelos
recursos da interrogação e da
restrição;
3- Uma visão disfórica à qual se
junta o caráter de pré-determinação, de
obrigatoriedade, manifesto por
destino, que explicita a passividade já contida,
primeiro, na denominação criatura e,
segundo, na modalização poder e na
restrição senão.
Entre o sujeito assim definido e a
sua manifestação histórica dá-se uma contradição:
de um lado, a sua condição de
condenado a uma atividade transitiva que o cria e define;
de outro, a inexistência de condições
à realização dessa mesma atividade. Daí a
circularidade expressa pela
metáfora concha vazia. Já anunciada na estrofe I na
transitividade (olhos) negada (vidrados) do circunstancial: até de olhos vidrados
amar.
Só então se pode entender a
equivalência de amar = rodar.
em três níveis discursivos.
A volta da predicação funcional, após
a estrofe IV, torna ambígua a leitura do final
do poema. Este pode ser lido como uma continuação da
manifestação funcional da
atividade amorosa, equiparando-se,
portanto, às três primeiras:
Estrofe I : Que pode ... senão
amar
II : Que pode... senão
amar o que ...
III : Amar solenemente...
IV :
Este o nosso destino...
V: Amar a nossa falta mesma...
Nesses termos dar-se-ia a
comprovação, pelo próprio discurso, do que se acabou de
afirmar: a condenação do homem a
prosseguir em sua atividade amorosa, em busca do
amor. Por outro lado, pode-se
entender esta última estrofe como uma nova definição
que se junta às da estrofe IV: teria,
assim, uma função metalinguística.
No entanto, é preciso respeitar a
significação semântico-sintático do
silêncio interposto entre esta última
estrofe e o último verso da estrofe anterior: é ele
que dá àquela sua autonomia de
estrofe. É preciso respeitar a pontuação: a relação entre
a denominação este o nosso
destino e as definições da estrofe IV
está marcada pelos
dois pontos; a estrofe se separa da
anterior pelo ponto final desta e pelo novo parágrafo
que ela própria inicia.
Superpondo-se as duas leituras,
tem-se uma retomada metalinguística do
poema até a estrofe anterior, ao lado
da realização desta mesma significação.
A
imperiosidade do ser em prosseguir na atividade amorosa se expressa
pela predicação
funcional; a função objeto, porém, ao
expressar-se na metalíngua utilizada na estrofe
IV, indica permanência do sujeito da
enunciação do discurso:
Amar a nossa falta mesma de amor
e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo
tácito, e a sede infinita.Ao retomar a predicação funcional, o sujeito da
enunciação não o faz no nível do
discurso das duas primeiras estrofes
em que a língua é instrumento em que se veicula
uma determinada experiência. Na
caminhada ao longo dos versos, o estágio alcançado
na estrofe IV não permite retroceder.
O sintagma a falta mesma de amor é
verdadeiramente uma nova denominação
que sintetiza a síntese da estrofe anterior, cuja
base sêmica se encontra
lexicalizada em falta. A partir desta
lexicalização, seguem-se
outras:
Secura, água implícita, beijo
tácito, sede infinita.
Três delas, embora retomem o mesmo
campo semântico de mar da estrofe III, não
pertencem mais ao mesmo nível da
língua natural. Elas denunciam o envolvimento do
sujeito do enunciado na atividade
viciosa do amor e, ao declarar isso, provocam o
envolvimento do sujeito da enunciação
na própria metalíngua ao explicitar a estrutura
mínima de significação.
falta → secura ↔
água
↓ ↓ = sede infinita
não água ↔
não secura
ou
falta = secura → não água
→ água → não secura → secura
→ sede infinita
8.0 É inegável a pertinência do
princípio tomado como modelo neste trabalho: a
presença de processos
metalinguísticos na construção do discurso, os quais dão conta
da criação de um sub-código
específico deste poema de Drummond. É inegável
também, por outro lado, o caminho
tortuoso percorrido, confirmando as palavras de
Greimas de que a isotopia de um segmento só se
resolve pela isotopia geral do texto,
do discurso. Com isso, parece
respondida a pergunta colocada inicialmente: por que
amar e não amor, e explicitada a
razão pela da disforia do poema. A
clausura de um
texto e as suas significações se
confirmam, pois, pelas equivalências e conversões dos
termos, segmentos que se
interdefinem, de tal maneira que o poema se fecha
simbolicamente com a metalíngua transformada em sua própria
língua. A percepção
eufórica inicial aos poucos vai sendo
declarada enganosa, de aparência, sendo gradativa
mas incisivamente substituída por uma
percepção disfórica, até finalizar nesse abraço
fraterno de quem reconhece um destino
coletivo e incontornável.
No entanto, é preciso que se atente
para o fato de que essa disforia está apontada
para o que ocorre no enunciado.
Neste, o que se evidencia é um pequeno espetáculo
vivido pelo sujeito narrativo,
incansavelmente retomado, repetido em cenários
distintos, cuja variabilidade tem a função de afirmar a
mesma coisa, a inexistência do
objeto de amor. O sujeito narrativo
modaliza-se por um não-poder-não querer, que se
torna mais crucial porque está
sobredeterminado por um não-poder-deixar de fazer e
pela contradição de um não-poder
alcançar o objeto perseguido. Enfim, é um sujeito
modalizado por um dever cujo valor
mal se define: deve persistir nessa atividade baldada por quê? Quem seria o
destinador de uma tarefa sem sentido? As
respostas não
se dão numa dimensão transcendente:
somos todos criaturas, entre criaturas, em rotação
universal.
Nesse contexto, a veemência da
elocução - que não cede a nada, mas reafirma a
sua argumentação, para concluir no meio do caminho – Este o nosso destino - no
entanto, a essas alturas descreve uma
curva em direção a ela mesma, distanciando-se do
enunciado, e obriga o leitor a
situar-se na dimensão da comunicação: no encontro de
sujeitos enunciativos, em que já não se distingue a direção da mensagem que se
faz
circular, confundindo enunciador e
enunciatário. Ao reconhecerem juntos o destino
comum, a consciência e a aceitação de
um dever assim imposto, fazem prevalecer o
grito da enunciação e, assim,
recuperar a euforia do primeiro contato. Mas agora
modulada por um sentimento estoico, um pathos que parece encontrar eco nos
seguintes versos da mesma época:
(........................................)
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de
certezas.
Manuel Bandeira (O martelo)
3
Referências bibliográficas:
ANDRADE, C.D. de . Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar. 1988.
BANDEIRA, M. Poesia e prosa. 2ª Ed. Rio de
Janeiro; Aguilar. 1967.
GREIMAS, A.J. Sémantique structurale. Paris:
Larousse. 1966.
--------------------- Du sens- Essais sémiotiques. Paris:
Seuil.1970.
_____________ et alii Essais de sémiotique poétique. Paris:
Larousse. 1972.
HAIDAR, J. e MIYAZAKI, T.Y. Dos poemas de Carlos Drummond de Andrade.
Revista
de Letras. Porto Rico, 25-26, p. 18-56. 1
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma
Cristiane Escolastico Siniscalchi
Universidade de São Paulo (USP)
Mestrado em Letras
sinisescol@uol.com.br
Estudiosos da poética drummondiana
têm, freqüentemente, assinalado a investigação existencial
de tom impessoal como a nota mais
forte de Claro enigma (1951) e dos livros habitualmente associados
à sua poética — Novos poemas (1948),
Fazendeiro do ar (1954) e A vida passada a limpo (1959).
José Guilherme Merquior (1972), um de
seus principais críticos, chega a nomear como “Quarteto
metafísico” o subcapítulo em que
discute a hipertrofia das questões de ordem filosófica nos livros
mencionados e sua realização em
estilo puro. Outros críticos, como John Gledson (1981) e Affonso
Romano de Sant’Anna (1992), eximem-se
de fixar, categoricamente, o período como “metafísico” ou
“filosófico”, mas apontam a presença
de um conteúdo intelectual marcante nos poemas e suas possíveis
“bases filosóficas”.
Considerando o conjunto de discussões
oferecidas pela fortuna crítica, conclui-se que a identifi-
cação de uma tendência “filosófica”
ou “metafísica” na poesia de Drummond decorreu de três fatores
principais: 1) o abandono de temas
ancorados na matéria histórica em nome de reflexões aparentemente
universais e atemporais; 2) o
conteúdo fortemente cerebral; e 3) a substituição da stilmschung,
que caracterizara a poesia anterior,
sobretudo de José (1942) e A rosa do povo (1945), pelo estilo
“puro”, que supostamente se presta a
temas mais nobres.
De fato, introduz-se uma abordagem
mais central e intelectualizada dos assuntos, que, confrontados
com as emoções figuradas pelo
discurso, tornam-se objetos do raciocínio. Dentro de uma
76 ] Cristiane Escolastico Siniscalchi
perspectiva ontológica, Drummond
preocupa-se em estabelecer procedimentos que lhe permitam
o conhecimento da realidade última
dos seres e o julgamento das idéias falsas que confundem o
pensamento, rejeitando certezas e
crenças estabelecidas, buscando explicações para o que o cerca e
analisando como o mundo aparece para
a consciência. Esse movimento cerebral não implica, contudo,
uma limitação da subjetividade, pois
a experiência objetiva é vivida pelo sentimento, que impregna
a linguagem e determina a confecção
da rede imagética do texto. O poeta está atento à dimensão
ética dos eventos, que observa
atentamente e digere com muita propriedade, não raro expressando
o movimento coletivo na primeira
pessoa do singular e emoções individuais na primeira pessoa do
plural, superando lapsos entre
individualismo e parceria.
Não obstante, parece preferível o uso
da expressão “poesia de investigação existencial” a recorrer
aos adjetivos “metafísica” ou
“filosófica” para descrição dessa poética. A expressão “poesia metafísica”,
por exemplo, remete a obras de poetas
ingleses que, no século XVII, uniam o pensamento filosófico
ao discurso poético em peças de
escassas imagens e conteúdo tendente ao gênero sentencioso, o que
não se aplica a Claro enigma.
Com a nomenclatura “poesia de investigação existencial”, elimina-se,
igualmente, o risco de se acreditar
que Drummond tenha introduzido algum sistema original de
pensamento ou apenas ilustrado a moda
existencialista do pós-guerra, ainda que muitas das idéias
do Existencialismo ajudem a compor a
leitura que o poeta faz do mundo e de sua condição naquele
momento histórico. Evita-se, ainda, a
suposição de que a poesia de José e A rosa do povo não seja, de
nenhum modo, metafísica, já que, como
lembra Sant’Anna,
a consciência da liberdade e a
concepção de um tempo social estão ligados a uma consciência individual,
que se expande numa formulação
metafísica do tempo. Nem seria concebível que uma consciência totalizante
da realidade fosse decepada de uma
prospecção mais funda no tempo, limitando-se ao eventual e
episódico do dia-a-dia. (1992, p. 88)
Por fim, impede-se que essa poesia
seja considerada mais serena, como faz pensar o maior acabamento
formal, uma vez que na relação tensa
com a forma se fundará grande parte da crise do
sujeito, assim como um irrevogável
senso de angústia surgirá nas relações do sujeito com o outro na
busca do conhecimento do ser.
O estudo apresentado a seguir
pretende verificar como a intuição do drama existencial no “tempo
de madureza”, nas palavras do poeta,
determina uma disposição e uma visão de mundo. Destaca,
sobretudo, um poeta que se arma
contra o mundo por temer ser surpreendido por suas imagens
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma
[ 77
falaciosas e explicita sua percepção
de uma temporalidade vazia, mas condói-se pela impossibilidade
de entrega à idealidade e à expressão
mitopoética. A argumentação vale-se de alguns dos principais
poemas de Claro enigma, mas
está centrada na análise minuciosa de “Cantiga de enganar”, de que
emerge grande parte das conclusões.
Um dos principais problemas que se
colocaram para Drummond na grande empresa de investigar
o ser e o significado dos
acontecimentos foi o da viabilidade de se chegar à essência. Drummond
concebe que o pensamento encontra
obstáculo na aparência das coisas e, devido a crenças, hábitos e
preconceitos, pode limitar-se a ela.
Essa discussão faz-se, no poema
“Opaco”, pela enunciação do incômodo do eu diante de um
edifício que lhe barra a visão do céu
à noite. O obstáculo não o impede de saber o que está ali (“Noite.
Certo/ muitos são os astros./ Mas o
edifício/ barra-me a vista.”), pois a experiência anterior supre a
falta da imagem; no entanto,
impossibilita a aventura de um novo olhar para o conhecido. Símbolo
metonímico do elemento engendrado
pela operação intelectual/cultural em oposição ao natural,
o edifício, potencializado pela
experiência significativa dessa noite, projeta-se na subjetividade do
sujeito, que o repete até que imagens
simétricas do natural e do construído — “Zumbido/ de besouro.
Motor/ arfando. O edifício barra-me/
a vista.” — iniciem a diluição do paradoxo. A associação entre
os dois universos sugere que o anseio
e a valorização do natural apóiam-se na capacidade de intelecção
formada no bojo do universo cultural
e que a razão conhece os objetos com as formas e as
categorias do sujeito do
conhecimento.
A partir daí, não é mais o edifício o
foco do incômodo, porque por meio dele se revelará o luar:
“Assim ao luar é mais humilde./ Por
ele é que sei do luar”. Ao barrar a vista do sujeito, desperta seu
desejo de rever ou, ainda, de
reavaliar o mundo objetivo. Permite, portanto, uma nova consciência,
que considera o obstáculo exterior
apenas uma artimanha do raciocínio: “Não, não me barra/ a vista.
A vista se barra/ a si mesma”. O
mundo “opaco” surge como uma condição do próprio olhar, o que
atribui ao conhecimento acumulado a
dificultação de uma leitura inédita do que é familiar. Precavida,
a consciência do poeta não absorve o
mundo e aquele prefere — para usar a boa imagem de Donaldo
Schüler (1979, p. 21) — “encouraçar-se”
contra ele, desconfiando da sensação que os objetos provocam,
uma vez que depende das condições
particulares de recepção.
Em Claro enigma, a consciência
do poeta está numa encruzilhada: nunca esteve tão aguçada e
instrumentada para desmontar as ilusões
que se apresentam, mas também nunca esteve tão vulnerável
às perdas. A aplicação da lucidez na
leitura do mundo é dolorosa, porque impede, já no plano do subconsciente,
a formulação do desejo de relações
mais apaziguadas, inconcebíveis na ordem caótica que
78 ] Cristiane Escolastico Siniscalchi
ela incondicionalmente reconhece.
Esse gesto de autocastração é mantido pelo poeta nas sublinhas
do texto, fazendo com que sua
presença furtiva e supostamente involuntária na fala do eu lírico mais
revele sobre sua crise.
Esse paradoxo estruturador de Claro
enigma revela-se na sobreposição de planos do soneto “A ingaia
ciência”: no primeiro, está a
comunicação da lucidez em ânimo grave; no segundo, mencionadas
ou apenas aludidas, impressões de uma
perspectiva ingênua ou menos angustiada, que se mantêm
como um contraponto sempre visível,
problematizando a sabedoria do homem maduro:
A ingaia ciência
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com
ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.
A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos
quebrantos,
e nada pode contra sua ciência
e nem contra si mesma. O agudo
olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de
encantos,
se destroem no sonho da existência.
A configuração de dois planos ocorre
já no título do soneto, pois a “ingaia ciência” inevitavelmente
pressupõe a contraposição com a “gaia
ciência” e suas duas referências mais evidentes: a primeira à
arte alegre e jovial dos trovadores
provençais dos séculos XI a XIII e a segunda ao ensaio “A gaia ciência”,
de Nietzsche (1996). Embora aponte o
caráter caótico do mundo e a presença de impulsos e leis
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma
[ 79
que não podem ser atingidos por
nossos juízos estéticos e morais, o filósofo afirma ser um erro o pessimismo
e o imobilismo e, diante da nova
configuração do pensamento europeu, após o que chama
de “a morte do Deus cristão”,
comemora a possibilidade de construção de um ideal inédito a partir de
uma saúde forte, tenaz e alegre, para
encontrar o desconhecido dessacralizado.
A princípio, não é cerrado o diálogo
entre essas referências e o soneto, pois as alusões ganham seu
sentido menos pela similaridade dos
temas e mais pela inversão do espírito que preside a atividade
da “gaia-ciência”. Já de início, a
madureza é uma in-gaia ciência e, em seu universo, não há confiança
nas formas tradicionais; sua revisitação
dá-se por meio de uma aplicação astuta da técnica. O poeta,
rigoroso na escolha do metro
decassílabo e das rimas clássicas, opta pela desestruturação sintática,
em que não apenas a longa frase
inicial, como também aquela que inicia o primeiro terceto e invade
o último, desestabilizando-o,
contribuem para contrariar o princípio da clareza e da argumentação
cerrada, tão caro aos sonetos
tradicionais.
Encontra-se, no primeiro quarteto, a
menção a “essa terrível prenda/ que alguém nos dá”. A associação
entre “terrível” e “prenda” aponta
que a madureza surge como predicado ou aptidão extraordinários,
mas funestos e terrificantes. Essa
caracterização ambígua sugere que a doação é, na
verdade, uma imposição de um sujeito
indefinido — “alguém” —, num movimento que alude ao
imaginário religioso em perspectiva
irônica. Nesse sentido, o poema contrasta com “Campo de flores”,
também de Claro enigma, em que
o eu lírico agradece por ter sido premiado com “um amor no tempo
de madureza”:
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos
ou sabem a verme.
Deus — ou foi talvez o Diabo — deu-me
este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que
tenho um amor.
Além de aparentemente desvinculada do
desejo, a recepção da madureza pressupõe também uma
troca involuntária: a madureza rouba
“todo sabor gratuito de oferenda/ sob a glacialidade de uma
estela”, com que é incompatível. A
alusão à morte na figura da fria estela, a pedra tumular ou jazigo,
associada à idéia de oferenda, que se
encerra no campo semântico litúrgico, remonta novamente
à figura divina e ao imaginário
cristão e sugere a esperança de conforto que acompanha o evento
da morte. Tais referências estão
invertidas no soneto, bloqueadas pela madureza, mas permanecem
como um contraponto visível, sempre
acentuando as perdas.
80 ] Cristiane Escolastico Siniscalchi
O mesmo contraste, na segunda
estrofe, faz-se pela indicação da madureza como recurso cognitivo
que desmobiliza a leitura ingênua do
mundo. Vencendo o bloqueio imposto pela “venda”, a
consciência lúcida depara com “o
círculo vazio, onde se estenda”. A conjectura de uma lucidez em
expansão dialoga com o texto de
Nietzsche, que propõe a ampliação do espaço de investigação do
mundo e do ser após a derrocada do
Cristianismo.
O poema mantém, em tenso diálogo,
duas perspectivas; ao mesmo tempo em que é negada ao
sujeito a possibilidade de
desconsiderar a lucidez, permanecem sugestões de uma vivência menos sujeita
à angústia. A princípio, esse
contraponto não confunde o eu lírico, que explicita, no primeiro terceto,
após reafirmar o poder de mensuração
apurada do mundo, o caráter irrevogável da madureza.
Amores, ócios e quebrantos, elementos
ironicamente igualados pelo verso e pela lucidez, submetemse
à sua ciência.
No entanto, apesar dessa clareza e de
toda a cautela do lúcido, a existência falaciosa apresentalhe
armadilhas. No último terceto,
afirma-se a incompatibilidade entre o “sonho da existência” e a
“madureza”, transformada, por
sinédoque, em “agudo olfato,/ agudo olhar, a mão, livre de encantos”.
Para problematizar a madureza, que
não salva definitivamente o sujeito de todos os conflitos, o
poeta destaca a imagem do “sonho da
existência” em detrimento da “ciência” irrevogável. No plano
semântico, a incompatibilidade é
indicada pela destruição dos sentidos aguçados no confronto com
o sonho. Já no plano fonológico,
nota-se que a rima aproxima “ciência” e “existência”, mas o som da
segunda prevalece, reforçado pela
posição no fecho do soneto.
O mecanismo que ilumina os
contrapontos, portanto, ocupa todo o poema, desde a oposição inicial entre
a “ingaia ciência” mencionada e a
“gaia ciência” aludida até a constituição do paradoxo final, por meio do
qual o poeta esclarece que a madureza
conhece tudo, mas não evita que o sujeito vacile no confronto com
a idealidade.
Os comentários feitos até este ponto
caracterizam o sujeito que se expressa em Claro enigma como
alguém que se considera mais lúcido
que os demais, mas cujo privilégio é fonte de angústia, já que
não lhe permite nem alterar a ordem estabelecida
nem aceitá-la. A exposição dessa condição “trágica”
torna-se ainda mais complexa e
interessante, quando se vincula à ironia, como ocorre no poema
“Cantiga de enganar”, em que a
subjetividade assume, surpreendentemente, a postura típica da personagem
alazón. A natureza dramática de “Cantiga de
enganar” origina-se no gesto de o eu lírico
se dirigir a um interlocutor, e,
principalmente, em sua opção por se apresentar como uma dramatis
persona, expressando sua visão de mundo à
maneira teatral, de modo que rubricas com marcações de
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma
[ 81
cena são facilmente imaginadas a
partir da disposição emocional que impregna cada etapa do texto.
O eu lírico expõe sua ciência do
mundo e a transmite como revelação a um interlocutor identifi-
cado várias vezes pelo vocativo “meu
bem”, espalhando marcas de um discurso exortativo, que é, em
última instância, uma fala que anima
o outro a agir em determinado sentido. Inicia essa fala uma
afirmação desconcertante, paradoxal
por soar como terrível revelação e estar fundada em um tom
que mescla afeto e sarcasmo:
O mundo não vale o mundo,
meu bem.
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
5 Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
Explicita-se, nesses versos, a
percepção de que o mundo tem leis que não podem ser dominadas
nem compreendidas e o sujeito não
parece disposto a contestá-las. O resultado de uma ação nem
sempre é o objetivado e, nesse processo,
o prejuízo de todos é quase certo, como sugerem as imagens
do corte pelo espinho e das rosas
manchadas pelo sangue. Não há indícios do que causa tal efeito, e
a situação é julgada admissível e
fruto, talvez, de um destino ou fado a que não se confere nenhuma
intencionalidade.
Os versos seguintes remetem ao início
do poema, utilizando a expressão cristalizada “valer a pena”,
que aqueles parodiam. Sua disposição
mantém leve o tom, e a sonoridade, que opõe os sons amenos
das sibilantes e da seqüência de es
de “face serena” aos sons duros das oclusivas e da seqüência de as
de “face torturada”, evidencia a
diferença entre elementos que, segundo o eu lírico, equivalem-se:
O mundo,
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
O sentimento de ilogismo, portanto,
permeia toda a visão de mundo do eu lírico e, diante dele, sua
atitude é um riso torto, que aponta
para a incoerência do próprio gesto e remonta às ações desmotivadas
do início do texto, porque o sujeito
não sabe o que o provoca, apenas suspeita que seja o nada
ou ele mesmo, em trânsito pelo mundo
ilógico:
Há muito aprendi a rir,
de quê? de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e se sobe
algum som deste declive,
Embora não se refira abertamente às
condições históricas da modernidade, ao refutar a ilusão de
ordem, o trecho inicial de “Cantiga
de enganar” remete às recorrentes teorias sobre esse tempo, que
o caracterizam pela
ininteligibilidade. Ao descaracterizar as leis universais e imutáveis da
natureza (o
pé-de-sono dará rosas), Drummond
sugere que não há procedimentos nem critérios que permitam
conhecer as conexões internas entre
os acontecimentos e as coisas. Ao contrário da angustiada personagem
sartriana de A náusea (2006),
o eu lírico de “Cantiga de enganar” reage à ciência da gratuidade
com a indiferença, que expressa no
tom jocoso, parecendo, num primeiro plano de sentido do
poema, aceitar o destino traçado e
substituir a atitude investigativa pela atitude dogmática.
Apesar disso, o eu lírico insiste em
expor o mundo ao outro. No verso dezessete, usando uma
dicção coloquial, torna o verbo
“valer” intransitivo e, sutilmente, altera seu significado de “merecer”
ou “equivaler”, que pressupõe
relativização, para um incisivo “ter valia”. Constrói, então, um trocadilho
com o verso dezoito — “Tal como
sombra no vale,” —, de modo que a oração comparativa
subordinada ao verso dezenove
parecerá subordinar-se também a ele, mimetizando a idéia de sombra
expressa ali. Com o espelhamento, a idéia
da ausência de valor contamina “sombra no vale”, que é o
termo da comparação implícita, e,
conseqüentemente, atinge o movimento de declínio da vida, que
remete, pela proximidade com o
arquétipo do ciclo solar, à idéia de decadência e morte dos seres. A
manobra desmonta a solenidade que
reveste a idéia de queda da vida e acentua a ironia.
Não obstante, o uso das reticências
no verso dezenove impõe uma leitura que, acompanhando
a imagem, realiza uma breve inflexão,
a qual não chega a suspender imediatamente o tom jocoso,
presente desde o início do texto, mas
o minimiza. Nota-se que as imagens subseqüentes parecem
sutilmente separadas do discurso
anterior e acionam o senso de solenidade. Embora mantenham
o mesmo ânimo negativo, as imagens,
notadamente as primeiras, por seu papel na imagética tradicional
da poesia, evocam o sublime, que
passará a concorrer com o jocoso e permanecerá como um
contraponto sempre latente:
Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e se sobe,
20 algum som deste declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
25 Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
30 como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e de enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
40 menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
de energia concentrada.
Não é nem isto nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
A imagem de um som surgido do
declínio da vida evoca o sublime na chave do elegíaco. Contudo,
a identidade do som será dada, a
princípio, por meio da negação de uma série de analogias. A
primeira seqüência de imagens
refutadas inicia-se com o pastor, o rebanho e a flauta, componentes
tradicionais da poesia pastoral,
caracterizada pela encantadora simplicidade. Seguem imagens sugestivas
de sons ternos e de fruição (v. 23 a 32), num discurso com a
presença marcante de sibilantes e
nasais, de algumas rimas consoantes e
de pés longos (anapesto e peón quarto), que garantem uma
musicalidade branda aos versos,
coincidente com a enumeração de elementos que se encerram no
universo do desejável.
O segundo grupo de imagens, que se
estende do verso 33 ao 36, rompe a seqüência encantatória.
Abandonando a sintaxe coordenativa e
fluente do primeiro grupo, compõe-se de uma única frase,
com verbo elíptico, em que quatro
complementos se subordinam ao substantivo “respiração”. Essa
disposição, somada à expressividade
das oclusivas e ao fechamento no termo “clausura”, significativo
do ponto de vista semântico e sonoro,
provoca a impressão de algo opressivo. A contraposição dos
dois blocos impõe-se desde o termo
inicial, “tampouco”, e a configuração diferenciada parece atender
ao intuito de enternecer e inquietar
proveniente da observação de um e de outro.
Se o primeiro grupo evocou sons
francos e expressivos e o segundo, um som quase inaudível, o
terceiro, disposto entre os versos 38
e 45, mostrará um som que se caracteriza como uma “partícula
sonora” que é menos que “simples
palavra” desprendida. É interessante notar que o elemento humano,
que compôs parcialmente o primeiro
grupo e integralmente o segundo, retrocede, e, no lugar dos
elementos pertencentes ao universo
comum, surge uma experiência que está ligada a ele, mas que é
algo primordial, singelo — como
sugere o uso dos adjetivos simples (v. 40) e mero (v. 44) — e
autônomo.
A ambigüidade sintática dos versos 43
e 44, que não define se vida e morte constituem o sujeito
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma
[ 85
ou o objeto direto do verbo “conter”,
expressa essa ordem à parte em que se move a partícula sonora,
mítica na medida em que se eterniza e
suprime a diferença entre começo e fim.
Está negada a identidade entre o som
que emerge do declínio da vida e essa série de imagens,
que incluiu da experiência terrena à
abstração e formulou-se numa linguagem elevada que acionou
o sublime. O universo desse som
lutuoso é irônico, visto que mesmo a sua produção passa pelo viés
do hipotético, como sugere a
conjunção se que inicia o longo trecho. Talvez por isso, sua definição,
a partir do verso 47, retome o jocoso
— “Não é nem isto nem nada.” —, temperado agora pelo desapontamento.
Segundo o eu lírico, o som não
alcança a organização de música e resta de “desencontros”,
“encontros fortuitos” e
“malencontros”. É mero resquício de equívocos humanos e tem caráter
disforme, como sugerem as imagens
cifradas das “miragens” transformadas em “absurdas figurações”,
acompanhadas pelos inusitados enjambements
dos versos 50 e 52. Está afastado, portanto, um possível
parentesco entre esse som e o
elegíaco, pois o canto fúnebre originado do declive da vida apenas
reiterará a pobreza da condição
humana, constituindo-se numa desprezível anarquia de formas.
Nos versos seguintes, o eu lírico
passará a analisar o som surgido do mundo sem-sentido, afirmando
um silêncio demonizado, que associa a
elementos familiares ao homem. Ao se referir ao emudecimento
das “canções de timbre mais
comovido”, reitera que a ânsia de alcançar o sublime malogra
e que o som precioso inexiste no
plano comum:
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
A reflexão do eu lírico é
inquietante. Em sua primeira indagação, por exemplo, não sabemos se
pergunta o que o silêncio pretende
dizer ou o que significa o vocábulo “silêncio”. Já a segunda questão
parece ser retórica, visto que
menciona a “boca do mundo”, para, em seguida, afirmar que o mundo é
fechado, o que evidencia o calar-se.
A visão que vai construindo, e que associa quase inteiramente o
mundo desordenado e o som que é
silêncio, torna-se, pouco a pouco, mais negativa, numa gradação
que vai de fechado, para vazio
e, finalmente, para um talvez que em si mesmo já é hipotético. A
enunciação
aparece como logro, algo que é
explicitado também quando menciona uma fala ouvida que não
passa de um eco do silêncio.
O mundo, portanto, define-se como
virtualidade e abstração e esse pensamento fecha a tese que
o eu lírico vinha pontuando desde o
princípio: o mundo não vale a pena porque não tem sentido;
a vida declina e esse movimento não
se reveste de qualquer solenidade; os sons familiares são falácias,
ecos de silêncio; o mundo está
fechado ou vazio ou é apenas potencialidade, marcada por uma
negatividade inata; o mundo não vale
a pena. Nesse universo, o tom jocoso inicial, que se alinhava
à indiferença, não permanece intacto
e vai, aos poucos, revelando a fala do melancólico, que vive de
maneira dramática o confronto com o
mundo. A ciência da gratuidade lança-o no sofrimento, porque
lhe retira toda segurança. A desordem
do mundo comunica-se com a desordem interior e, juntas,
levam-no à dúvida permanente, “a
situação psicológica daquele que ascende a uma difícil lucidez”
(MATOS, 1993, p. 32).
O objetivo da explanação do eu lírico
é, portanto, o desmonte da crença na positividade do mundo,
o que fará obstinadamente até o final
do poema. Sua estratégia mais evidente é desorientar o
outro a partir da enunciação de
elementos — pena, conta, força, sonho e tempo — que imediatamente
caracteriza como inexistentes, em uma
fala que aparenta ser ressalva. Com uma mensagem sobrecarregada,
que obstrui a seqüência do
raciocínio, promove o entroncamento de duas ordens: a que corresponde
ao senso comum e aquela de que
suspeita e não pode se eximir de comentar:
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta
de sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
de escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
— mas a conta não existe —
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: idéias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
— mas a força não existe —
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
100 levar na palma do tempo
— mas o tempo não existe —,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.
A fala que surge como ressalva, nos
versos 70, 78, 86, 95 e 101, não se impõe sobre a outra,
anulando-a; pelo contrário, ela se
assemelha aos apartes sarcásticos dirigidos à audiência por alguns
personagens típicos da comédia.
Certamente, não tem o objetivo da graça, mas trata de evidenciar a
distância existente entre o que se
proclama e a verdade, ressaltando a ironia. Nesse ponto, é importante
notar que, exceto na primeira
ocorrência, o jogo do olhar enganado e da lucidez coincide com
momentos em que o eu lírico aconselha
uma forma de existência possível no mundo, o que resulta em
uma expectação também impregnada de
negatividade.
Paradoxalmente, a saída para a tensão
entre a ingenuidade e a lucidez parece estar na escolha
do ilusório como forma de vida, e o
eu lírico estimula o outro a “fazer de conta” e a “fazer mundos”
a partir de palavras. Essa
possibilidade de conferir sentido às coisas por meio do signo lingüístico,
entretanto, não se encerra no universo
da tradição cultural, em que as palavras, concebidas encantatoriamente,
têm o poder de fazer com que as
coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas. No
contexto irônico do poema, o eu
lírico assume-as enquanto subterfúgio, ciente de que a ordem criada
permanece num plano estritamente
individual. A palavra não tem poder fundador; ela apenas evoca
uma ordem mentada. Nessa linha, o
jogo de tempos verbais nos versos 79 e 80, que se repete nos dois
últimos, indica que o interlocutor
reconhece esse contínuo movimento de desmonte e criação e sabe
que qualquer ordem estabelecida será
ilusória e poderá ser substituída por outra. A transformação
do substantivo “mundo” de comum para
próprio, no último verso, também ressalta a valorização do
empreendimento particular. Além
disso, vê-se que não se estabelece o repúdio à ilusão da vida, visto
que o adjetivo “pura” determinando
“mentira”, no verso 87, pode significar “completa”, aproximandose
do coloquial, mas também “ingênua”, o
que ameniza o termo e faz pressupor a condescendência.
É preciso considerar que o eu lírico
conhece os efeitos dolorosos de sua sabedoria e, por isso, adverte
sobre a necessidade de ambos, ele e
seu interlocutor, serem fortes para manter suas identidades.
Todo o esforço do eu lírico em apontar
a falsa positividade e ressalvar sua lucidez não implica,
contudo, a suspensão do ilogismo e da
gratuidade. Tem consciência de que é indiferente estar lúcido
ou enganado, como sugere nos versos
finais, embora sua natureza não lhe permita fazer a escolha e
permaneça minando qualquer
possibilidade tranqüilizadora de crença. Sua única saída é viver um
mundo temporário, estabelecido pelo
ato de criação que reconstitui a familiaridade, ainda que perceba
que tudo não passa de mais uma
ilusão. O que o alivia é a possibilidade de optar por ela e estar
ciente disso, em lugar de ser
arrastado pelo fluxo do mundo.
Essa importância conferida ao ato de
criar por palavras é um aspecto a se observar atentamente
em “Cantiga de enganar”. A princípio,
nota-se que o fazer poético é examinado pelo olhar lúcido e
depende, em grande parte, de tornar
disponível uma série de fatores que o eu lírico insiste em clasO
Exercício da Lucidez em Claro Enigma
[ 89
sificar como inexistentes. Além
disso, ele sabe que a voz do mundo não estabelece qualquer elo com o
sublime, sendo apenas um reflexo da
condição humana. No entanto, embora limitada à ordem imaginativa
e com um efeito muito individual, a
poesia surge como o único expediente a que, a princípio,
atribui-se algum valor real.
A alusão à poesia surge já no título,
que remete, pelo trocadilho, às cantigas de ninar. O efeito
irônico completa-se pela composição
em redondilha maior, que empresta um ritmo acolhedor a uma
mensagem que, aparentemente, não tem
esse objetivo. Aliás, o próprio vocábulo “cantiga” pode significar
“cantilena” ou “mentira”. Se isso
propõe que a poesia está a serviço da farsa do mundo, a
expressão “não vale a pena”, que se
repete no texto, sugere, através da polissemia de pena, que pode
significar tormento e castigo e
também o instrumento para escrita, que o ato de fazer poesia é maior
que o mundo descompassado. O poder de
criar o mundo pelo signo funda a possibilidade de existência
do eu lírico e parece se relacionar à
idéia, presente também no poema “Legado”, de que a poesia
está separada da ordem indesejada. Ao
sugerir que o mundo é talvez ou nem isso, o poeta faz ecoar
versos daquele poema:
Eu mereço esperar mais do que os
outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te
engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa
Orfeu,
A vagar, taciturno, entre o talvez e
o se.
Nota-se que ambos compartilham a
opinião de que o mundo apresenta-se mascarado e que a
poesia fica limitada à virtualidade.
Em “Legado”, o eu lírico reavalia o poder de Orfeu diante da nova
ordem e, em lugar de anunciar a
maravilha de sua arte encantatória, revela seu malogro e reclusão em
uma ordem distanciada. Comparados, os
poemas revelam-nos duas abordagens do tema, ainda que
sem contradição; em “Legado”, está a
derrota da poesia, que não pode resgatar o mundo, enquanto,
em “Cantiga de enganar”, a poesia é
fundamental para manter a existência a despeito do mundo,
representando uma possibilidade de
exclusão da apatia e do atordoamento.
Não obstante, há uma contradição
entre o anúncio do poder conferido à poesia e os significados
construídos a partir das várias
nuanças de tom ao longo do poema. A presença do vocativo “meu bem”
seguindo à cruel revelação sobre o
mundo, logo no início do texto, pontua a ironia e cumpre três funções:
elimina a impessoalidade, simula uma
dialética e distingue a situação do eu lírico da situação comum,
mostrando-o aparentemente superior.
Apesar do enorme cetismo e do reconhecimento de sua fragilidade,
ele está disposto a aconselhar o
outro e chega a gracejar, parecendo diminuir a importância de tudo,
revelar autoconfiança e fingir certo
relaxamento. Essa superioridade não se confunde com vanglória, mas
a opção por essa postura não deve ser
menosprezada, pois está nessa sutileza a tensão do texto.
Seria um equívoco pressupor que
Drummond invista em qualquer tipo de fanfarronice. Na verdade,
o apelo ao tom humorístico responde
menos ao prazer proveniente da fala e mais a uma necessidade
de defesa contra o sofrimento; o
sujeito parece preocupado em amortizar os efeitos terríveis
das revelações para o interlocutor,
mas igualmente em se resguardar (note que a existência de um
tu pode significar um mero desdobramento do eu). É
nesse sentido que devemos entender o início
de sua fala, em que procura
evidenciar a nulidade dos interesses e sofrimentos que podem parecer
grandes ao outro. O humor sufoca suas
reações e garante o triunfo do narcisismo, porque evidencia
que o eu se opõe à realidade. A
compreensão de que o olhar lúcido instaura o distanciamento irônico
como defesa é importante para
percebermos a tensão entre pungir e acolher, que se funda desde o
título do poema e que concorre para
todas as nuanças do tom.
Esse tom humorístico e o que
representa enquanto disposição psicológica aproxima a dramatis
persona presente em “Cantiga de enganar” da
figura típica do alazón. Comumente, o alazón caracteriza-
se pela inconsciência confiante, que
torna sua situação imaginária incongruente em relação à
realidade. No caso estudado, a
contradição não está entre o que o sujeito sabe e o contexto, mas entre
o comportamento assumido e as coisas
que conhece e expõe. Ainda que se reconheça a função protetora
do humor, surpreende que ele tente se
mostrar superior a tudo e que o faça de modo arrogante.
O significado dessa opção acaba se
revelando pouco depois, visto que o eu lírico não consegue sustentar
o mesmo tom durante todo o poema,
abandonando-o quando fala do som lutuoso e submetendo-
o a uma urgência amargurada quando
procura apontar saídas, momento em que o uso freqüente
do vocativo passa a revelar menos o
afeto e mais a advertência, expondo sua fragilidade. Ao comentar
o poema “As impurezas do branco”, o
crítico Donaldo Schüler remete às últimas palavras de Bérenger,
na peça “O rinoceronte”, de Ionesco,
que revelam uma emoção semelhante à da voz de “Cantiga de
enganar” (1979, p. 102): “Contra todo
mundo eu me defenderei, eu me defenderei! Eu me defenderei
contra todo mundo! Sou o último
homem, hei de sê-lo até o fim! Não me rendo!”1. “Alazonicamente”,
o poeta parece ter confiado em uma
intangibilidade garantida pela expressão humorística que ele
mesmo não consegue sustentar e que
não basta para protegê-lo.
A derrocada do alazón acirra a
problematização que envolve a construção do mundo por palavras,
pretendida pelo sujeito e aconselhada
ao interlocutor, porque evidencia a impossibilidade de qualquer
diferenciação em relação ao que está
estabelecido. Não há uma ordem autônoma em que possam se
1 Donaldo SCHÜLER, A dramaticidade
na poesia de Drummond, p. 102.
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma
[ 91
deslocar. Por conseqüência, a
negatividade atinge também a valorização do poético, que se desmisti-
fica, uma vez que não é capaz de
estabelecer uma realidade nem resguardar o sujeito. Seguindo o que
já anunciava ao comentar os sons do
mundo, a poesia também é um expediente comprometido com
a ordem estabelecida.
Nesse sentido, é importante notar que
Drummond não escolheu para assumir a voz oracular e fazer
revelações sobre o mundo a figura do eirón,
isto é, do sujeito lúcido. A lucidez do eu lírico de “Cantiga
de enganar”, responsável por tantas
revelações, é colocada em xeque por sua caracterização inicial
como alazón, mostrando que
toda a cautela do sujeito, que enxerga e denuncia inúmeras ciladas, não
garante que veja aquela em que vai
cair: a crença em poder defender-se contra o mundo. A voz que
revela o mundo será aquela que
proclama o silêncio dele e da poesia através de uma fala que pouco
conserva de grandioso. No lugar da
autoridade do poeta-rapsodo, portanto, está o poeta fracassado,
que tenta arrastar seus despojos para
fora do tempo e apontar o dedo irônico para o mundo.
Referências Bibliográficas
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AS FACES DA PALAVRA EM CLARO ENIGMA
Thereza da C. A. Domingues (CES/JF)
filosófico - existencial, de
constituição depurável, arquitetado sob a administração do
inegável rigor poético, que, numa
linguagem reveladora da mais alta realização estética,
conjuga pensamento e emoção criativa.
Esse trânsito entre linguagem e
leitor é, a propósito, uma leitura que se
realiza a partir de outras estruturas
semânticas, a poesia que dialoga com a arte, esse
contágio entre as palavras é onde uma
obra de arte, em qualquer linguagem, ao tocar
a sensibilidade de um criador, produz
nele um impulso para a criação de sua própria
linguagem. É como participar de um
jogo.
familiar é a guia; há um corporificar
da palavra, e essa corporificação se deixa mostrar
viva, existindo de todos os modos; é
um início de melodia que se encadeia sobre diferentes
estrofes, demonstrando uma analogia
mais tênue entre o som musical e o som
articulado, pois esses poemas
apresentam efeitos em relação às palavras/ idéias: “A
linguagem não é apenas um elemento de
cultura. Ela é a base de todas as atividades
culturais, e, portanto, o caminho
mais fácil para chegar-se ao conhecimento das características
de qualquer grupo social” (LEITÃO,
1988, p. 13).
A presente análise diz respeito ao
tema: a palavra em Claro
Enigma de
Carlos Drummond de Andrade, pois o
poetar do autor nos faz chegar a um caminho
significativo acerca da linguagem e
comportamentos que servem a essas e outras
abordagens.
Essa relação da palavra em torno de
Claro Enigma é simples, pois basta
sabermos que ela influencia seres e
coisas, gerando ausência e conexão nos que se
distanciam de coisas reais, e de
instantes da vida que passam no espaço e no tempo,
os quais só podem se fazer presentes
na lembrança e vejamos, ilustrativamente a
poema “Entre o ser e as coisas”:
Onda e amor, onde amor, ando
indagando
ao longo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de
coisa viva.
Às almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se
esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.
N’água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.
E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é,
pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.
(ANDRADE, 1995, p. 51)
Discursos e Identidade Cultural
O poema “Memória”,
Sant’ Anna: “a partir dele o poeta
aprende a amar tudo aquilo que perdeu ou vai
perdendo no atrito com o tempo”
(SANT’ ANNA, 1972, p.185). Há uma “sensação de
perda da lembrança insistente das
pessoas e coisas que ficaram para trás no espaço(
província) e no tempo( morte)” (
Ibid)..
Efetivamente, à medida em que sua
poesia avança, há uma intensa sensação
de perda e desgaste que envolve a
trajetória poética em direção a uma inspiração
ou revelação que está sempre a
insinuar sem nunca mostrar de todo sua face.
Então, é através da memória que se
busca a linguagem, pois Drummond
usa a língua de uma nação, o seu
léxico é todo elitizado, sua estrutura juntamente
com o som dão corpo às palavras e é
esse tom que substitui o falar sobre o corpo
pelas lembranças, como no poema
“Memória”:
Amar o perdido
deixa confundido este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão (ANDRADE, 1995, p. 27).
A atividade poética não é voltada
para a palavra em si, enquanto materialidade,
a palavra enquanto uma coisa no
mundo; por isso os poetas são intraduzíveis,
o poeta teria, em relação á
linguagem, “uma transa apaixonada”, e essa relação
podia se manifestar de duas formas,
uma “masoquista” e outra “sádica”. Na primeira,
o poeta se torna vítima da palavra à
qual o viola, o arromba, o altera e o coage; na
segunda forma, o poeta passaria a ser
carrasco, a ser verdugo da palavra, então,
trocam-se os papéis: “As
potencialidades da imagem e da palavra gozam de um dom
talvez inexaurível: o de formar novas
arborescências que dialetizam a expressão da
seiva original” (BOSI, 2003, p. 64).
É o que verificamos, com esse poema,
na introdução de CE que vem a seguir l
Não me leias se buscas flamante
novidade ou sopro de
Camões.
Aquilo que revelo e o mais que segue
oculto em vítreos
alçapões
são notícias humanas, simples estar-
no- mundo, e brincos de
palavra, um não - estar - estando mas
de tal jeito urdidos o jogo
e a confissão que nem distingo eu
mesmo o vivido e o
inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.
A orelha pouco explica de cuidados
terrenos e a poesia mais
rica
é um sinal de menos (ANDRADE, 1995,
p. 01).
O que se visa no poema seguinte
“Carta”, é não impedir o interlocutor de
interpretar as palavras de Drummond,
mas fazê-las com vão mais além do necessário,
do suposto exagerar, como algo fora
do comum:
Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta[ ...] ( Ibid.,
p. 105-106).
É um sentimento evidentemente
fracassado que o leva a se apresentar
em CE de maneira a tomar conta de uma
desrazão que a vida suporta, como uma resposta
talvez às inquietudes que já se
faziam ouvir. No poema “Perguntas em Forma
de Cavalo -Marinho”, o poeta nos
propõe essas nossas inquietudes, aflições, esses
nossos questionamentos, mostrando-nos
o lado da razão:
Que metro serve para medir-nos?
Que forma é nossa e que conteúdo?
Contemos algo?
Somos contidos?
Dão-nos um nome?
Estamos vivos?
A que aspiramos?
Que possuímos?
Que relembramos?
Onde jazemos?
(nunca se finda nem se criara.
Mistério é o tempo, inigualável.)
(Ibid., 1995, p. 21).
Como uma resposta talvez à procura da
poesia, que ele sabia além, muito
além, dos acontecimentos do próprio
corpo, do pensar, e do sentir. Convém frisar
o poema “Oficina Irritada”, com a
necessária ousadia do autor em também escrever
palavras duras que nos fazem pensar e
sentir:
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.
Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum
prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.
Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de vênus sob o pedicuro.
Discursos e Identidade Cultural
Ninguém o lembrara: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto
Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.!
(Ibid., p. 42)
Os poemas se carregam de sentido, se
dilatam nessas palavras longas,
elásticas e se acentuam numa tensão
extrema, pois elas possuem uma existência
palpável, corporal, dando - lhes
força definitiva e aos personagens às vezes construídos
pelo poeta, uma existência
propriamente física para quem os lê. A grande lição da
poesia de Drummond é não pretender
dar exemplo de nada.
Drummond deixou rastros que apontam
para muitos caminhos. Nesses
caminhos pode-se encontrar o poeta
que destrói e constrói com suas palavras. Claro
Enigma é uma espécie de síntese de
sua poesia, purificado e sóbrio, onde, nesse jogo
de palavras o precário expressa na
existência do homem.
A representação consciente da
memória, presente de forma explícita em
Claro Enigma, é substituída pela
tradição. Toda a produção de Carlos Drummond de
Andrade expõe, de várias formas, uma atividade
lúdica da razão, e registra o abalo
que o passado exerce sobre a
consciência, corroborando a sensação de descaso em
relação ao conhecimento adquirido.
Os versos de Carlos Drummond de
Andrade são de um sujeito ativo, que
manifesta a vontade ardente de ver e
de fazer ver, de um poeta de vasto sentimento
pelo mundo, pelas pessoas, por sua
terra natal e pela memória, poeta do sensível,
poeta do obstáculo, poeta ativo, não
um poeta livre e assujeitado, pois, é assim que,
a perfeição do verbo que se traduz em Claro Enigma , se
compreende então porque é
uma arte universal. O autor que se
segue resume o que estamos afirmando:
Não acredito em sujeitos livres nem
em sujeitos assujeitados.
Sujeitos livres decidiriam a seu bel-
prazer o que dizer numa
situação de interação. Sujeitos
assujeitados seriam apenas
um ponto pelo qual passariam
discursos prévios. Acredito em
sujeitos ativos, e que sua ação se dá
no interior de sistemas em
processo (POSSENTI, 1996, p. 37).
Entretanto a nossa sensibilidade não
pode descartar nenhuma das percepções
do dividir do poeta, como nenhuma de
tantas outras sínteses que pretendem
apanhar o “sentido do ser poeta”, da
palavra poética ou do fazer poesia. E para encerrarmos
basta esta citação que exprime com
soberania o que é poetar: “E talvez,
enfim, a cisão, a clivagem e a busca
de unidade possam ser expressas neste verso:
E com todo esse pus, faz um poema
puro” (SANT’ ANNA,1984,306).
REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond. Claro
Enigma. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a
arte.7 ed. São Paulo: Ática, 2003.
LEITÃO, Eliane Vasconcellos. A mulher
na língua do povo. 2 ed. Belo Horizonte: Itatiaia,
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POSSENTI, S. O sujeito fora do
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UNB,1996.
SANT’ ANNA, Affonso Romano. Drummond:
gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia,
1972.
______. O canibalismo
amoroso: São Paulo: Brasiliense, 1984
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