quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Análise de Claro Enigma - Carlos Drummond de Andrade


Carlos Drummond de Andrade se afasta do coloquialismo e recorre à métrica rigorosa para falar da melancolia e do desencanto


11/07/2011 17:38 
Texto Daniel Schneider

  Carlos Drummond de Andrade, que em "Claro Enigma" abandona o tom coloquial e aproxima-se de temas mais abstratos


Les événements m’ennuient", ou "os acontecimentos me entediam". A epígrafe, de autoria do poeta francês Paul Valéry, prenuncia a temática predominante em Claro Enigma (1951), a melancolia e o desencanto com a vida que se encaminha em direção à morte. Desenganado com a capacidade de intervir no mundo, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) experimenta o fim da esperança engajada que conhecera em meados dos anos 40, em A Rosa do Povo. 

A mudança de foco, contudo, nada tem a ver com um eventual distanciamento da realidade. Drummond muda de objeto poético, afastando-se dos fatos concretos para falar de ausências, perdas e temas abstratos como o tempo e a vida. "O poeta volta-se para os seus mitos, dá razão ao inato transcendentalismo, colocando-se a par dos grandes poetas do idioma. Não mais a lírica admiração do próprio ego, mas o descortino dos arquétipos", na opinião do crítico Massaud Moisés. É a poesia metafísica que, para o poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna, "une o choro individual ao coletivo". 

Este sombrio retrato é feito do sentimento de culpa que oprime o poeta e da visão crepuscular que dá o tom da obra: a noção da impossibilidade, estabelecida entre o transitório e o definitivo, a essência das coisas e seu fracasso diante do tempo. Marca-se, também, a volta definitiva de um tema fundamental: o amor, descrito sempre como vivência dolorosa. "Mas o que antes aparecia travestido de ironia, nesse momento cede lugar a recorrentes imagens de violência e mutilação", diz o crítico Vagner Camillo. 

Do ponto de vista formal, Claro Enigma afasta-se do estilo livre e coloquial dos modernistas; divide-se em seis partes: Entre Lobo e Cão; Notícias Amorosas; O Menino e os Homens; Selo de Minas; Os Lábios Cerrados; A Máquina do Mundo. Aqui o poeta se mostra mais atento à métrica e à forma dos versos, atitude tomada pela crítica da época como um retrocesso. Mas logo comprovou-se que Drummond tinha plena consciência dos riscos de alienação existentes na arte pela arte. A releitura de formas antigas fortificou seus versos. 

Entre os poemas que compõem o livro, A Máquina do Mundo é considerado por muitos o maior da literatura brasileira. O título faz alusão ao trecho de Os Lusíadas em que a Vasco da Gama é revelado o funcionamento da máquina do mundo, após o navegador ter conquistado o caminho para as Índias. Todo composto em tercetos, a versão do poeta mineiro mostra o eu-lírico que, durante um fim de tarde, recebe a visita da máquina. Circunspecto, ele a desdenha friamente. Então a experiência, que a princípio parecia grandiosa, se desfaz: "(...) baixei os olhos, incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta/ que se abria gratuita a meu engenho". Revela-se aí o conflito fundamental eu-mundo, presente em toda a obra de Drummond, a recusa que faz da tentativa de entender a história, tal como experimenta em A Rosa do Povo. "É o clímax da trajetória do gauche, quando sujeito e objeto se fundem, a aparência e a essência se integram", diz o crítico Affonso Romano de Sant’anna.


O CLARO ENIGMA DE UM TÍTULO:
     Tieko Yamaguchi Miyazaki (UNEMAT)
     Julieta Haidar (ENAH)

AMAR, DE DRUMMOND DE ANDRADE
                                                                                                                                        
Amar, este poema de Drummond de Andrade, de seu livro  Claro enigma,  de
1951, juntamente com outro poema do mesmo autor, O enterrado vivo, d’ O fazendeiro
do ar,  de 1954, foram objeto de um ensaio publicado  na  Revista de Letras,  da
Universidad de Puerto Rico, em Mayagüez, em 1975. Uma das razões de reunir em um
mesmo trabalho poemas relativamente próximos quanto à publicação,  mas
aparentemente distantes quanto aos títulos, foi a disforia marcante em ambos, de
enunciação contundente no segundo e amargurada no primeiro. A preocupação maior
foi seguir com rigor ensinamentos da época sobre abordagem do poético, do poético no
verbal. A observação  da coerência no tratamento dos planos do conteúdo e da
expressão, a sua correlação específica quanto à forma, o foco do sentido incidindo no
discurso e seus procedimentos de desenvolvimento, a diagramação, o desenho na folha
impressa foram alguns dos princípios que fundamentaram a leitura e análise dos dois
poemas.
                                               
 No entanto, ao longo do tempo, a alegria de ver e ouvir o primeiro poema -
Amar - declamado em ocasiões festivas escolares ou, na mídia, por atores renomados se
confundia com o incômodo pela empatia eufórica  com que  sempre era lido.
Normalmente tomado em fragmento, descontextualizado pois do todo, verificava-se que
o título da peça funcionava como um indicador forte para essa orientação: amar, em
oposição paradigmática a odiar.
Resolvemos, então, desenvolver uma nova leitura, não mais com o foco voltado
para poeticidade que se realiza em várias e distintas dimensões do texto poético, mas
orientado  a provar a disforia disseminada ao longo dele, e de forma incontornável. Para
isso, ao contrario da análise anterior, utilizamos e enfatizamos algumas  categorias que
nos pareceram mais adequadas para a abordagem do objeto central desta nova leitura.
Por esta razão, de natureza metodológica, embora conhecendo os aportes teóricos
de Greimas sobre o poético,  expostos  em diferentes ocasiões, como em  Sémantique
structurale  (1966) ou no ensaio  ‘Pour une théorie du discours poétique’ (do livro
Essais de sémiotique poétique – 1972 - que traz estudos teóricos e práticos de dez
outros autores), resolvemos nos restringir mais especificamente à reflexão desenvolvida
na última parte de seu livro Du sens – Essais sémiotiques (1970).
Em seu estudo sobre palavras cruzadas, Greimas aponta entre estas e a linguagem
poética o traço comum de tratar-se em ambos os casos de comunicação diferida. A
partir dele, além da antipoeticidade das palavras cruzadas, Greimas assinala a seguinte
diferença: enquanto nas palavras cruzadas parte-se de um inventário de definições de
sentido para chegar-se ao não-sentido das denominações, a linguagem poética parte do
aparente não-sentido para o sentido.
Uma forma de diferir a comunicação encontra-se expressa na já bastante
conhecida conceituação de figura estilística: a distância entre duas expressões diferentes
de um mesmo conteúdo. Esta conceituação pressupõe, de um lado, a dicotomia
expressão vs conteúdo e, de outro, a dicotomia equivalência vs distância. O trabalho do
leitor, na busca da significação, consiste, portanto, na identificação da distância, isto é,
das expressões diferentes e, a seguir, na supressão dela através da identificação de um
mesmo conteúdo. Essa atividade pressupõe que nada no plano da expressão se opõe à
existência de conteúdos formuláveis de formas distintas.
A figura estilística é, portanto,  uma figura que se dá no discurso,  lugar de
encontro do significante e do significado,  lugar também de distorções devidas às
exigências contraditórias da liberdade e das injunções da comunicação, às oposições
das forças divergentes da inércia e da história. (GREIMAS, 1966, p.42, trad.nossa)
              1.1  Se a figura estilística é uma relação de plano da expressão e plano do
conteúdo numa proporção de +1E/ 1C, faz-se necessário um exame da natureza das
unidades de expressão, isto é, das unidades de comunicação, e das unidades do plano do
conteúdo, ou seja, das unidades de significação.
  As unidades  de comunicação são de dimensão e estrutura diferentes e são
descritas através de categorias morfossintáticas e semânticas: lexemas, paralexemas,
sintagmas e enunciados. Em todo discurso as unidades sintáticas servem de quadro a um
tipo específico de  isotopia: uma isotopia gramatical que se manifesta graças à
concordância e à recção. Constituída de um pequeno número de classemas, a isotopia
gramatical se encarrega não propriamente da manifestação do conteúdo  mas de sua 
transmissão. Greimas identifica  essa função gramatical com a função fática
jakobsoniana, a qual é  realizada por morfemas gramaticais, cuja densidade semântica é
relativamente fraca, essa isotopia tem função translativa:Esta noção de translação, diz Greimas (1966, p.116), tomada de
Tesnière, explica muito bem o papel desempenhado pelos morfemas
gramaticais, os quais tomam os lexemas como os termos-objetos de
uma sub-linguagem e os transmitem, como o jogador que passa a bola
para o companheiro, com a ajuda da redundância gramatical até o fim
último que é o destinatário.
A redundância gramatical  é dupla: de um lado, a iteratividade das classes
gramaticais e, de outro, a iteratividade dos mesmos esquemas elementares em que são
forjadas as mensagens. A construção sintática não é, no entanto, tão transparente: ela
cria um terceiro tipo de redundância graças, por exemplo, aos processos de derivação, à
reiteração dos  mesmos semas em lexemas e translativos. Lembra Greimas (1966, p.
116)
(...) a gramaticalização da manifestação seria algo excelente se as
funções  de significação e as de comunicação fossem claramente
distintas.   Infelizmente, as estruturas de comunicação (...) significam e
as estruturas de significação (...) se gerenciam para comunicar: daí
resultam as contínuas distorções do discurso.
1.2 Às unidades de comunicação acima enumeradas não correspondem 
unidades de significação exatamente da mesma dimensão e estrutura. Não há
isomorfismo entre estas duas unidades de natureza distinta.
  As unidades gramaticais  são unidades não-semânticas. Dentre elas, nem
mesmo o lexema, de status sintático bastante claro, pode ser considerado unidade de
significação. É antes um quadro gramatical que possibilita a manifestação de sememas
diferentes  (GREIMAS, 1970, p. 305); é um modelo de funcionamento e não uma
unidade de conteúdo; é um modelo virtual que subsume todo o funcionamento de uma
figura de significação recoberta por um formante  anterior a toda manifestação no
discurso; este só pode produzir sememas particulares (GREIMAS, 1966,  p.51)
A unidade semântica é a resultante do encontro de pelo menos dois lexemas. Ao
não se considerar mais o lexema como a menor unidade de sentido, a  sequência do
plano do conteúdo manifestado seria então  a composta da combinatória de dois
sememas. O contexto é, portanto, a unidade de discurso superior ao lexema e é nesse
nível de articulação do conteúdo que se processa todo o sistema de compatibilidades e
incompatibilidades sêmicas.
Os elementos constitutivos da sintaxe semântica são, portanto, os sememas.
Dados os elementos constitutivos, a sintaxe oferece um corpo mínimo de regras de
construção com as quais os sememas são arranjados em  esquemas sintáticos
elementares.
1.3. O discurso é uma hierarquia de unidades de comunicação que se encaixam
umas nas outras. A manifestação discursiva da linguagem consiste no estabelecimento
de relações hipotáticas. Essa propriedade do  discurso que permite acrescentar
determinações sucessivas não pode ser confundida com a propriedade da expansão. Esta
consiste na capacidade de unidades de comunicação de dimensão e estrutura diferentes
serem reconhecidas como equivalentes através da neutralização da hierarquia sintática.
A propriedade que tem uma sequencia em expansão de ser considerada como
equivalente a uma unidade sintaticamente mais simples. A equivalência define o próprio funcionamento normal de uma língua: uma atividade metalinguística em que se
valorizam as relações de conjunção e disjunção.
Á mensagem em expansão se opõe a decodificação compressiva da condensação.
A  expansão encontra sua expressão na  definição e a condensação, na
denominação. A definição é uma expansão sintagmática que mantém com o termo a
definir  - denominação - uma equivalência  baseada na existência de alguns semas
comuns. Na equivalência se dá uma identidade sêmica parcial que é suficiente para dar
conta do funcionamento  metalinguístico do discurso e para autorizar uma análise
semântica. Isto quer dizer também que entre dois segmentos justapostos um conjunto de
semas permanece fora da área da equivalência: esta se processa entre a base
classemática da denominação e os elementos genéricos da definição.
1.4. Em seu ensaio sobre palavras cruzadas, após diferenciar a atividade do autor
e do leitor - um cria a distância deixando a equivalência implícita e o outro suprime a
distância explicitando os processos de camuflagem da equivalência -, Greimas (1970,
p.288-9 ) diz:

Tanto num caso como no outro, a tarefa do linguista consiste em descrever  os processos
de manipulação de conteúdos,  considerados  equivalentes enquanto núcleos  de Dn
(denominação) e de Df (definição) e que sofrem uma série de conversões , transformações para
serem finalmente recobertos, na manipulação lexemática, por expressões diferentes,
distanciadas e muitas vezes desconhecidas. Pouco importa que o resultado dessa explicitação de
manifestação se apresente sob a forma de regras de conversão ou de uma descrição de redes de
relações: basta que estas manifestações não sejam consideradas como orientadas, uma vez que,
teoricamente pelo menos, o processo criador do autor toma caminhos que o processo
interpretativo do leitor deve reencontrar e percorrer no sentido inverso.
   Nossa hipótese de trabalho consiste então em dizer que, dada a equivalência entre os
conteúdos de Dn e Df, esta só pode ser estabelecida pela supressão da distância (Di):
                         C (Dn) ≥ C (Df) -  Di .
            A partir de tal hipótese de trabalho, é possível descrever a distância do ponto de   vista
sintático e, a seguir , as equivalências e as distâncias semânticas.
            As definições apresentam uma organização interna: são segmentáveis em duas unidades
discretas, passíveis de uma conversão negativa aplicada simultânea ou sucessivamente aos dois
termos. Essas unidades que se encontram ligadas por uma relação hipotática se encontram
também em uma relação de complementaridade que exige o estabelecimento de uma isotopia
única indispensável à equivalência Df = Dn.
1.5. Durante toda a análise das palavras cruzadas de Greimas, permanece subjacente o
outro termo da comparação,declarado desde o início do ensaio e retomado no final: a linguagem
poética. Tendo sempre em mente o princípio que em La linguistique structurale  et  la poétique 
(1970, p.218) considera o impulso revolucionário dado às pesquisas – o princípio da projeção
de equivalências na cadeia sintagmática de Jakobson -, Greimas chega à conclusão de que na
linguagem poética é a existência de uma isotopia geral do texto que possibilita a leitura
homogênea das definições. Baseando-se  no princípio de Jakobson, afirma que a relação
hipotática dos lexemas de uma definição pode ser neutralizada em favor dos sememas, os quais,
situados num plano semântico homogêneo, se encontram em relação de conjunção e disjunção.
Numa definição de um texto poético  não ocorre, portanto, uma hipotaxe de sememas mas uma
conjunção. De modo geral, pode-se dizer que, se a  ambigüidade de  uma definição pode ser
resolvida graças à articulação binária de sua organização interna, o mesmo não ocorre com a
denominação. Em princípio as denominações – lexemas isolados- são indeterminadas quanto à
significação; elas dependem das relações que mantenham com as definições correspondentes.Desta mútua dependência das definições e denominações resultam, de um lado, a
reiteração de semas e, de outro, o fechamento circular do discurso.  Essas duas consequências
fundamentam a originalidade do texto poético. Segundo Greimas (1970, p.272),
                    
A originalidade dos objetos literários (o termo é absolutamente impróprio), parece poder
definir-se por uma particularidade da comunicação: o esgotamento progressivo da informação,
correlativo ao desenvolvimento do discurso; esta, ao cortar o fluxo das informações, dá uma
nova significação à redundância, a qual, longe de constituir uma perda de informação, vai pelo
contrário valorizar os conteúdos selecionados e enclausurados. A clausura neste caso transforma
o discurso em objeto estrutural e a história em permanência.
Passemos, agora, à analise de um poema de Carlos Drummond de Andrade, à procura dos
caminhos  que, através do conceitos acima expostos, nos conduzam à construção de um
subcódigo próprio, a um micro-universo semântico específico, à apreensão dos mecanismos
discursivos responsáveis pela criação, disseminação e sustentação da disforia a que nos
referimos.
2.0.
A M A R  
                     Drummond de Andrade
Que pode uma criatura senão,
Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer,
Amar e malamar,
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em rotação universal, senão
Rodar também, e amar?
Amar o que o mar traz à praia,
O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
É sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
O que é entrega ou adoração expectante,
E amar o inóspito, o áspero,
Um vaso sem flor, um chão de ferro,
E o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Eis o nosso destino: amor sem conta,
Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
Doação ilimitada a uma completa ingratidão,
E na concha vazia do amor a procura medrosa,
Paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
Amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.   (Notícias amorosas – Claro enigma (1988)

Já de início, o título do poema coloca a pergunta: por que amar e não amor? Uma
resposta imediata mas provisória é oferecida pelo texto pela constante repetição da forma verbal
ao longo do poema, atingindo inclusive o verso do fecho.  Uma segunda resposta decorrente da
primeira seria a que opusesse o caráter estático do substantivo à dinamicidade do verbo,
indicando-se com isso a intenção de focalizar-se não o sentimento mas  a atividade, o  processo.
É necessário, no entanto, todo um exame acurado para confirmar-se ou não essa significação
baseada simplesmente em uma distinção morfológica, ou seja, numa denominação.
Tomando como pressuposto que a relação do título de um poema e o próprio poema é
uma relação de denominação/definição, de condensação/expansão, estabelecemos como
hipótese de trabalho que a relação entre título e texto é a que define a figura estilística, ou seja,
duas expressões diferentes para o mesmo conteúdo.
2.1.O poema é composto de cinco estrofes, todas elas de muitos versos, excetuando-se a
última, constituída, em franco contraste com as anteriores, de somente dois versos. Tal contraste
não é homologado por um outro: a forma  amar  comparece nas três primeiras estrofes e na
última, enquanto a penúltima, a IV, se caracteriza pela presença reiterada da forma amor. Após
a reiteração de  amar  nas três primeiras estrofes, a sua volta na última é enfatizada pela
interpolação de uma estrofe marcada pela sua ausência, substituída pela forma  amor. Pode-se
dizer ainda que essa volta está também posta em destaque  não só pela interpolação referida
como pela diferença numérica dos versos da estrofe. A sua forma nominalizada no alto da folha
de papel, solta no meio do silêncio do espaço em branco ao redor, se oferece como significante
à espera da descoberta de seu significado.
2.2. As estrofes em que se apresenta a forma amar, na realidade retomam simplesmente
a pergunta formulada logo nos versos iniciais:
             Que pode uma criatura senão,
          entre criaturas, amar?

O contexto frasal é bastante complexo. É necessário proceder-se a toda uma análise não
só da modalização introduzida pelo verbo  poder  como também pela forma interrogativa, de
valor nitidamente retórico e, consequentemente a esta, da restrição forte expressa pelo senão.
Por ora tomemos aquilo que está evidente na questão formulada pelo poema: a disforia
manifesta nos dois versos iniciais, introdutórios, é confirmada, de forma mais clara, na primeira
parte da estrofe II pela transformação da enunciação em enunciado, em um enunciado reflexivo:
       Que pode, pergunto, o ser amoroso (...) senão rodar também, e amar?
O primeiro dado com que se conta é a disforia atribuída ao verbo amar, contrariando a
euforia pressuposta no sistema por sua oposição à disforia de odiar.
Considerando-se ainda simplesmente o verbo que  realiza o núcleo do predicado da
proposição, verifica-se que os três verbos  subsequentes se encarregam de não só confirmar
reafirmando o que expressam os dois primeiros versos, mas principalmente de estabelecer
equivalências. Se equivalência implica semelhança e diferença, identidade e distância, pode-se
dizer que nessas sequências – binárias e ternárias – dos três versos ocorre uma isotopia antes de
mais nada gramatical, graças à reiteração da mesma classe morfológica, graças à reiteração do
mesmo esquema sintático elementar.  Dá-se, pois, uma identidade sintática, numa relação
isomorfa.
A distância no plano da expressão, praticamente total em esquecer e parcial (através dos
prefixos) em desamar, malamar, é neutralizada  pela disforia contextual de amar. Com relação
ao primeiro verbo, essa distância só é vencida, parece, após o exame de sua significação decorrente da posição ocupada por ele na sequência  do verso.  Vamos ater-nos somente aos
compostos.  Nestes, como se disse, a oposição paradigmática da disforia lexicalizada pelos
prefixos é neutralizada pela disforia de  amar  no contexto geral do poema: a oposição
desaparece, assim.  Essa neutralização possibilita, de um lado, a equivalência  semântica entre o
verbo original (amar) e os seus compostos (desamar, malamar)  e, de outro, mantém em
suspenso a categoria da quantidade relativa manifestada na articulação Ø( des-)  VS  ± (mal-).
Da mesma forma que na estrofe I, introduz-se na estrofe II um verbo cuja
expressão, como esquecer, manifesta a primeira instância de distanciamento:
(... que pode senão)
                          rodar também, e amar?
A comutabilidade sintática entre amar/rodar  está afirmada enfaticamente uma vez que o
novo lexema ocupa no verso exatamente a mesma posição ocupada por amar na estrofe anterior;
na sequência é amar  que se apresenta como o segundo termo da equivalência.  Entre a estrofe I
e a II ocorre uma inversão:
      (...que pode senão)
                  I -    amar e esquecer ; malamar; desamar
                 II -    rodar e amar.
Essa inversão, ao colocar uma relação de permuta entre os termos, neutraliza a pertinência
distintiva da posição e reafirma a equivalência dos lexemas.
Tanto  esquecer  quanto  rodar  se distanciam de  amar.  No entanto, se ao primeiro é
necessário percorrer toda uma trajetória complicada que leve à equivalência, no segundo verbo
parece mais fácil estabelecer uma base isotópica. Para isso é preciso situar o lexema no contexto
geral do poema.
3.0 Deixando de lado por ora todos os demais aspectos introduzidos pela sua natureza
retórica, pode-se considerar como  uma das frases de base da proposição dos versos iniciais a
seguinte:           
   X   ama    Y
X é realizado na estrofe I pelo sintagma  uma criatura,  enquanto Y se reduz a  Ø. Na
estrofe II, esse sintagma é substituído por o ser amoroso enquanto Y continua Ø, embora só na
primeira parte em que esta estrofe se divide. Num primeiro momento, a tônica recai, portanto,
na relação SN  – SV. Tanto assim que os seus constituintes básicos, o sintagma sujeito e o
núcleo do predicado, recebem determinações em oposição à ausência do complemento objeto:
Uma criatura, entre criaturas,
             e até de olhos vidrados,  amar?
Na estrofe II, a ênfase sobre o sujeito persiste na forma de substituições e de expansão
ou condensação: uma criatura cede lugar a o ser amoroso e  entre criaturas passa a sozinho,
que se especifica  em rotação universal. Já com relação ao predicado algumas alterações se
observam. A partir da estrofe II não se verifica na posição de  até de olhos vidrados  nem
expansão nem condensação semelhante às da posição sujeito. Faz exceção solenemente 
na estrofe III, justificável pelo sintagma objeto. Em contraposição ganha relevo a partir
da segunda parte da estrofe II a função objeto, atualizado em todas as estrofes em que
ocorre o enunciado de base.  Essa não atualização de sintagmas circunstanciais e a
importância atribuída ao objeto fazem supor uma relação de suplência do circunstancial
pelo objeto.  Isto é, a significação manifestada por  até de olhos vidrados  pode se
apresentar veiculada nas demais estrofes pela articulação dos sintagmas objeto3.1. Uma análise contextual de amar revela a existência de duas classes contextuais
de lexemas aptos a ocupar a posição X: uma classe do universo humano e uma
classe do universo animal. Tem-se aí  a categoria /animado/ que se disjunge em
/humano/  vs
/ animal/. Um rápido cotejo no campo lexemático de criatura revela como semas
constantes  os seguintes: /animado/, /produto natural/ e, como contextuais /humano/ ou /
animal/. Em um subconjunto de contextos,  criatura  é equivalente  ao lexema  homem.  Isso
significa  que se tem, no enunciado  uma criatura ama  de isotopia humana, um emprego 
estilístico de criatura, o qual obriga a procura dos semas disjuntivos que motivaram, a partir da
equivalência referida, a escolha de tal expressão.
             A resposta é sugerida primeiro pelo sintagma  entre criaturas  e depois , na estrofe II,
pela expansão em rotação universal.  A espacialidade manifestada pelo primeiro e especificada
como terrena pela segunda põe em destaque um traço discreto anteriormente apontado: o
de /produto natural/ .
   Na estrofe II, a expressão  uma criatura  é substituída por  o ser amoroso.  A
divisão  do novo sintagma sujeito em duas unidades discretas (o ser/ amoroso) deixa ver
a lexicalização do sema /ser/, eixo da articulação de /animado/ vs /inanimado/ e presente
em criatura  na forma de seu primeiro sema. Por outro lado, o artigo definido indicando
pronominalização e  a transformação em adjetivo, dada pelo sufixo  -oso,   revelam o
sintagma como resultante da transformação do enunciado: uma criatura ama.
Tem-se aí uma transformação de uma predicação funcional em uma predicação
qualificativa. Além da distância estilística entre as duas expressões que realizam a
função sujeito, verifica-se ainda uma distância entre o enunciado da estrofe I como um
todo e o sintagma sujeito do enunciado da estrofe II. Nessa distância, traduzível em
termos de redução de uma predicação funcional em qualificativa, processa-se uma
retomada metalinguística da primeira pela segunda. A esta retomada a nova expressão,
resultante de uma lexicalização, explicita semas não perceptíveis numa leitura isolada
da primeira expressão. Explicitar semas suspensos no enunciado anterior, eis a função
da segunda unidade do sintagma o ser amoroso.
    Quais semas? Uma resposta pode ser tentada pela comparação da forma
derivada de substantivo  – amoroso  – com a forma derivada de verbo  – amante  –
preterida no poema.
   3.2. A língua portuguesa oferece as duas possibilidades de derivação, cada qual
manifestando um ou vários semas específicos. Considerando-se que o adjetivo resulta
da transformação de uma predicação funcional, cujo núcleo é realizado por um verbo, a
forma de maior probabilidade seria a verbal: pergunta-se, por isso, qual a razão da
isotopia instituída pelo termo escolhido.
Procedendo-se a uma comparação dos campos lexemáticos em que se distribuem
as duas formas, chega-se a uma conclusão parcial. É necessário confrontar os resultados
obtidos com os dados que oferecem comparações com outros pares homólogos
existentes na língua (ardor-oso/ ard-ente; estudi-oso/ estudante) e ainda com aquelas
formas  - substantivas ou verbais - que não possuem par.
3.3. Antes, porém, é preciso examinar a relação do sujeito sintático-semântico
dos enunciados com o seu predicado, tendo em vista ser o sujeito da estrofe II uma
condensação da predicação funcional da estrofe I. E, a seguir, examinar a relação dos
dois enunciados entre si, tendo em vista o funcionamento metalinguístico do discurso
que aí se processa.Na estrofe I, entre o sujeito e o predicado, deixadas de lado as significações
instauradas pelos processos retóricos apontados, não parece apresentar-se nenhum
problema. Na estrofe II, no entanto, a tautologia primeiro evitada e depois realizada  - o
ser amoroso roda  – o ser amoroso ama,  assinala duas perspectivas inversas à
abordagem da equivalência. A tautologia, numa primeira instância, afirma uma
identidade semântica, um sentido  óbvio; esse sentido óbvio impõe, numa segunda
instância, uma leitura a partir da não-identidade sintática dos segmentos justapostos. Em
oposição à tautologia de o ser amoroso ama, a primeira predicação (roda)  cumpre de
imediato aquilo que Greimas atribui à escritura poética: diferir a comunicação. Em
contraposição, portanto, à isomorfia sintática de  roda / ama e  uma criatura /  ser
amoroso, caracterizada como lugar de substituições paradigmáticas, no caso da
tautologia a divisão do enunciado em dois segmentos (o ser amoroso / ama)  denuncia
uma relação heteromorfa entre eles. De acordo com Greimas, a  relação heteromorfa
entre termos equivalentes oferece a possibilidade de intercâmbio, de permutas
sintagmáticas dentro do quadro do próprio enunciado: o ser amoroso ( Dn)  = (o que)
ama ( Df).
Essa equivalência horizontal não pode ser estabelecida logo de início entre os
componentes do enunciado da estrofe I:   uma criatura /  ama.  Isto porque é
indispensável a mediação da transformação realizada na estrofe II para que a
equivalência sintática substitutiva seja complementada por uma equivalência semântica.
Para que  criatura substitua integralmente ser amoroso, a leitura deve percorrer duas
direções sucessivas: a primeira, da estrofe I para a II, e a segunda, da estrofe II para a I.
É só então que a equivalência heteromorfa de criatura /ama se torna viável.
Se se concorda com Greimas quanto à distinção entre escritura substitutiva
“essentielle” e escritura permutacional “evenementielle”, a condensação do enunciado
da estrofe I pelo sintagma nominal da estrofe II se processa graças à passagem de uma
perspectiva “evenementielle” para uma perspectiva “essentielle”. Como, no entanto, a
relação heteromorfa da estrofe II se apresenta na forma de uma predicação funcional,
verifica-se numa segunda leitura que a escritura “evenementielle” está determinada por
uma perspectiva “essentielle”.
3.4.  Voltando à dicotomia  amoroso /  amante,  um primeiro aspecto que se
oferece é o do comportamento sintático dos dois lexemas quanto à exigência ou não de
uma complementação equivalente à requerida pelo verbo amar. Fazendo-se a
substituição de  amoroso  por amante no sintagma em questão, confirma-se a
comutabilidade deles, sem que a forma verbal acarrete a manifestação necessária de
uma complementação. Entretanto, um rápido exame das condições em que tal
comutação é possível revela uma proporcionalidade inversa no emprego das duas
formas:
a- poucos são os contextos em que a forma amante aparece sozinha; nesses casos,
ou ela se apoia em um contexto mais amplo que o enunciado elementar, ou se situa em
um enunciado de condensação isotópica ou recebe uma carga generalizante (amada
amante/ ser amante de..).
b- em contraposição, a outra forma guarda uma boa autonomia quanto à
complementação; quando se dá, ela marca o caráter particularizante da ocorrência: X é
amoroso. X é amoroso com ...
O emprego das variantes coloca ainda a distinção habitual / não-habitual,
integrado / não-integrado. E ainda a questão da compatibilidade e incompatibilidade semântica. A oposição /humano/ vs / não-humano/ só é pertinente quando se articula o
traço /não-humano/ em /animado/ vs /inanimado/ . O /humano/ é traço conjuntivo dos 
lexemas em questão mas a especificação /não-humano/ + /inanimado/ é incompatível
com  amoroso. Além do caráter eminentemente humano deste, o exame das
compatibilidades sêmicas entre os lexemas e seus complementos não parece oferecer
subsídios à análise do poema. A disjunção, porém, de /processo/ vs / estado/ que
aparece na oposição  de  amada amante / amoroso pode talvez explicar a diferença de
proporção quanto a maior e menor grau de integração entre sujeito e atributo. Em vista
da distribuição quantitativa dos contextos em que os lexemas se apresentam
acompanhados ou não de complemento, pode-se dizer que amoroso manifesta o traço
/habitual/ ou / permanente/, enquanto em  amante aparecem os termos contrários.
Quanto à transitividade ou não decorrente se visualiza a seguinte escala:
Intransitividade                    ±  transitividade                   transitividade
X é  amoroso                        X é  amante                         X é amante de...
          X é amoroso com...
O metassemema lexicalizado pela preposição  com  neutraliza até certo ponto a
intransitividade da forma  X é amoroso, acrescentando-lhe uma transitividade
circunstancial. Em oposição a isso e confirmando a diferença de integração sujeitoatributo acima assinalada, os morfemas  de  e  com   indicam uma maior integração de
atributo-complemento em  amante  e menor em  amoroso.
No universo restrito do poema, não se julga a diferença etimológica das duas
formas que fatalmente apontaria o traço /processo/ à forma proveniente do particípio
presente latino; nem se julga a maior ou menor assimilação dessa forma verbal à classe
dos adjetivos. Não é também pertinente a oposição sentimento/sentimental que
normalmente se reconhece em amoroso.No poema, em amoroso se expressa um atributo
hiponímico do sujeito; expressa-se uma qualidade fundamental e inerente ao humano.
No momento, porém, em que o ser amoroso se define como criatura, ou seja
como produto natural, terreno, ele assume a função actancial de uma predicação
funcional e participa de  um pequeno espetáculo, que comporta um processo, alguns
atores e uma situação mais ou menos circunstanciada (GREIMAS, 1966, p.117). Passase, pois, de uma manifestação mítica axiológica para uma manifestação ideológica. O
ser amoroso ou a criatura se faz ator de um saber-fazer mítico. Ao expressar-se este pelo
verbo amar, acarretando uma complementação – implícita ou explícita -, manifesta-se a
transitividade característica de amante.
4.0 A partir da segunda metade da estrofe II, o fulcro de significação se desloca
para a área do objeto.
O complemento direto do verbo amar  aparece de várias formas: realizam-no
unidades de significação de estrutura e dimensão diferentes e dos mais diferentes
campos semânticos. São unidades expressivas cuja equivalência sintática é determinada
pela estrutura do predicado do enunciado. Distinguem-se pela diversidade de lexema
empregado e pela estrutura do próprio sintagma que o compõe.
Na estrofe II, a função objeto aparece de forma oblíqua e complexa:
                    Amar o que o mar traz à praia
                          o que ele sepulta.A estrutura das definições do objeto de amor é, neste caso, senão a mesma,
semelhante à de um código de palavras cruzadas. Dada a definição, parte-se  para a
denominação. Entretanto, os subsídios oferecidos ao leitor do poema são menores que
os do decodificador de palavras cruzadas: este conta com as balizas dos quadradinhos,
de números e posições, e dos grafemas. Restringindo-se ao quadro dos dois versos
acima, as definições por estes expressas são definições “evenementielles”, ou se situam
no limite desse tipo de codificação. O jogo de cata-anaforia entre o antecedente (o
pronome) e o  consequente (a frase) não permite a identificação de um referente no
âmbito do discurso.
Mas, atendo-se ao que oferecem os dois enunciados, duas significações se
depreendem: a variabilidade de objeto de amor, expressa pela variedade de predicados
atribuídos ao mesmo sujeito (mar) e a própria não identificação do objeto A mesma
isotopia gramatical liberada pela identidade posicional, sintática dessas duas definições
continua a manifestar-se no final da estrofe:
(amar....)  e o que , na brisa marinha,
            É sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia.
Ao lado dessa identidade, duas diferenças se impõem: primeiro, a substituição das
predicações funcionais por predicações qualificativas; depois, a importância do
sintagma preposicionado na brisa marinha.
         As expressões  sal, precisão de amor, simples ânsia são equivalentes quanto à
posição sintática e o são também quanto à localização no verso. As três  expressões
segmentam a unidade formal do verso em partes bem determinadas. A distância entre
elas se situa na motivação semântica direta de  mar-praia-brisa-marinha-sal , e na
motivação metafórica  – hipotática das duas outras. Entre  brisa marinha - sal  há uma
relação hiponímica, de parte para parte no todo  mar.  Isso não acontece entre  brisa
marinha - precisão de amor - simples ânsia.
Em  o que na brisa marinha, é sal  volta a  repetir-se uma definição
“evenementielle”, mas um pouco menos transparente que as anteriores. Dela se
depreendem os seguintes dados: apesar de tratar-se de uma predicação qualificativa, não
se processa uma equivalência simples em que X = sal; a restrição imposta ao sintagma
preposicionado através de em, deixa evidente a significação do verbo ser neste contexto:
o que na brisa marinha corresponde a sal. Ou, tendo como eixo a espacialidade  /onde/ :
                                   sal : mar :: ? : brisa marinha,
equação que não pode ser expressa por : o que é da brisa marinha sal. É  esta não
identificação do referente que possibilita a criação das metáforas subsequentes:
                   o que é, na brisa marinha, precisão de amor,
                                                              simples ânsia.       
As três expressões estão ligadas entre si pela conjunção ou. O metassemema que
ela cobre pode ser ou uma disjunção de exclusão ou uma disjunção de inclusão. Ou
ambas: daí a  ambiguidade do texto. Pela exclusão, sucedem-se três objetos de amor
diferentes. Por inclusão, realiza-se uma explicitação metalinguística em cadeia. Se se
aceita a última alternativa, torna-se reconstituível o percurso de uma isotopia a partir do
último termo  - simples  ânsia,  para chegar-se às definições “evenementielles” desta estrofe. A palavra ânsia revela, no contexto, o sema /carência/ no eixo da comunicação
sujeito-objeto, incidindo sobre o sujeito. O determinante  simples explicita a relação
semântica dada pela ordem da atualização dos lexemas precisão e ânsia. Na metáfora
precisão de amor  ocorre uma nominalização em que se determina o objeto, sem
contudo deixar de enfatizar-se a carência no sujeito, a qual institui o objeto como tal,
isto é, o objeto é decorrência da carência no sujeito. Em outras palavras, nas duas
expressões metafóricas se apresenta implícito o processo de comunicação do objeto. A
verbalização do objeto em uma  e sua não verbalização em outra  - conferindo um
caráter particularizante à primeira e um caráter generalizante à segunda, e ainda a
gradação de intensidade de mais para menos, implícita na sequencia precisão – ânsia  - 
colaboram na caracterização do sujeito como um sujeito carente de. Chega-se assim às
conclusões:
a- as definições “evenementielles” ganham sentido na medida em que se
inserem num contexto maior: esse sentido lhes é atribuído graças ao suporte da
equivalência sintática;
b- as definições metafóricas são as que liberam a base sêmica contextual;
c- entre as definições a- e  b- intercala-se uma definição complexa,
intermediária: ela participa de a- pela isotopia denotativa e de b- pela equivalência
sintática, estendendo  a ponte de b- para a-.
Como em b- se opõem determinação e não determinação do objeto vs marca do
sujeito, uma nova leitura de a-   se torna possível. A indeterminação do objeto em adirige o centro de significação para a relação sujeito vs variedade de objeto. Como o
sujeito em b- é um sujeito  carente de, a variedade de objetos e sua indeterminação
levam à equivalência:
                                     amar Y =  necessidade de.
4.1 Sobre esta estrofe e as definições b-, uma nota ainda: a natureza hiponímica da
relação sujeito-objeto, identificável apesar dos torneios sintático- semânticos que levam
à sua metaforização; o sujeito ama a própria carência que o caracteriza enquanto sujeito.
É esta mesma relação que volta na estrofe III, verso 2; este repete a mesma estrutura
sintática básica das estrofes anteriores, localizando-se assim, quanto à complexidade,
entre as definições a- e b-  :
a- amar o que o mar traz à praia
                             ele sepulta
               amar o que é entrega ou adoração expectante
b- amar o que é,  na brisa marinha,  precisão de amor
                                                            simples ânsia.
4.2 A estrofe III está constituída de manifestações do complemento objeto,
introduzidas nessa unidade formal poética  pelo núcleo do predicado. Essas
manifestações dividem-se em expressões referenciais de diferentes campos semânticos e
em expressões metalinguísticas:a-                                                          bamar              as palmas do deserto                              o inóspito
                      um vaso sem flor                                    o áspero
                      um chão vazio                                         entrega
                      o peito inerte                                           adoração expectante                     
                      a rua vista em sonho                              
                      uma ave de rapina
Os sintagmas de a- são segmentáveis em duas unidades, em todos eles a
articulação sêmica das unidades libera o sema /carência/, graças à incompatibilidade 
/elemento preenchedor/ vs / continente não-preenchido/ (palmas do  deserto) ; 
/continente/ vs /não- conteúdo/ (vaso sem flor, chão vazio);  /órgão ativo/ vs / nãoenergia/ (peito inerte); /realidade/ vs / não-realidade/ (rua vista em sonho); /predador/
vs / não-predador/ (ave de rapina).
A visão mítica disfórica dada pela articulação sêmica desses sintagmas é
explicitada nas nominalizações: 
(amar) o inóspito, o áspero,
em que a carência se manifesta graças à articulação de /continente/ + / não-habitável/ +
/rude/. A segunda modalidade de manifestação do objeto classificada em b-  apresenta
também duas nominalizações, ambas de enunciados que podem ser transcritos da
seguinte forma:
F=  SN +  SV
                                             V + SN²
                                              vt
As nominalizações omitem o SN², fazendo a significação incidir na relação SN - 
SV, e não em  vt -  SN² . O sujeito implícito e a não manifestação do objeto fazem ver
entre eles uma relação de reflexibilidade (entregar-se) a qual pode receber na posição
objeto tanto uma representação hiponímica (de parte do ser) quanto hiperonímica (da
totalidade) . A reflexibilidade coloca a ênfase na postura do sujeito. Isso se confirma no
determinante da expansão seguinte:  adoração expectante,  onde a isotopia da carência
está evidente.
  Bipartindo-se a expressão sintetizante (adoração expectante) em dois segmentos
de forma que a eles correspondam complementos distintos do sujeito, evidencia-se a
seguinte gradação:
              Entrega                          adoração                     expectante
           (dar-se por completo)       (dar amor)                  (receber ou esperar amor)
A relação metalinguística instalada pela conjunção (ou) torna equivalentes as duas
expressões e conduz à mesma conclusão da estrofe II
                    
                                 entrega  = adoração  expectante = carência do sujeito4.3  .Nas  estrofes anteriores, I e II, as expressões que desempenham o
processamento metalingüístico do discurso poético se encontram  no último verso: elas
devolvem a leitura aos termos a que se referem.  Já na estrofe em questão, essas
expressões situam-se em versos internos (v.2, v.3). Os versos externos (v.1, v.4 e v.5) se
transformam em realizações estilísticas de um conteúdo catafórico e anaforicamente
dado. Conteúdo posterior a v.1.  (anafórico) e antecipado a v.4. e v.5 (catafórico).
5.0 Vejamos agora a estrofe IV, caracterizada no início deste estudo pela
ocorrência da forma verbal  amar  e pela repetição da forma substantiva  amor.
Esta oposição distributiva dos termos dicotômicos coincide com a distribuição das
predicações funcional e qualificativa no poema. Enquanto as demais estrofes
apresentam uma predominância da predicação funcional, esta se apresenta toda ela
constituída de predicações qualificativas, seja na forma de um enunciado com elipse da
ligação verbal (este o nosso destino), seja na forma de sintagmas resultantes de
nominalização.
A diferença acima colocada explica o seguinte: a função predominante na estrofe
IV é a metalinguística,  evidenciada pelo processo de justaposições e condensações. A
estrofe é introduzida pelo enunciado:
                              Este  o nosso destino,
ao qual se seguem, como indica o signo sintático dos dois pontos, vários sintagmas de
função apositiva. As definições se distribuem em duas unidades segmentáveis em cinco
outras. Como assinala Greimas, esse tipo de sintagma em expansão é susceptível de
uma decupagem binária:
      a -   amor        //          sem conta;
      a’-   (amor)        //         distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas;
    
      b -    doação ilimitada //  a uma completa ingratidão;
      c -   concha      //            vazia do amor;
      d -   procura medrosa, paciente //  de mais e mais amor.
Observa-se aí a posição sintática ocupada pelo lexema  amor: mediatizadas pela
definição b- - em que o lexema não ocorre, fato significativo, como se verá - as duas
primeiras e as duas últimas se encontram em uma relação de inversão:
   a ,   a’                      b                 c,   d.
   amor (...)                 Ø          (...) de/o  amor
Isto, respeitando-se a forma de expressão do texto, não gratuita sem dúvida, de
definição de a’; sem se proceder, portanto, às transformações necessárias a uma outra
perspectiva de abordagem.
O primeiro segmento de b- e d- resulta de duas nominalizações de enunciados cujo
núcleo verbal é constituído por verbos transitivos (doar, procurar);  está constituído
duas vezes da palavra  amor  e, em c- ,  de um substantivo devido a uma motivação
metafórica. Entre as duas nominalizações duas diferenças se verificam. Enquanto  à
procura se indica o objeto (amor), à  doação, não. Em doar, o sujeito é destinador também; em  procurar  o sujeito é o próprio destinatário. Em um caso tem-se sujeito
fonte de amor e, no outro, sujeito receptor de amor.
Procedendo-se às transformações de a’-   à que se referiu acima, tem-se:
                            ( Amor) distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas
                Distribuição de amor pelas coisas pérfidas ou nulas.
Neste caso o lexema amor passa ao segundo segmento da definição, o que acarreta 
sua equiparação à posição ocupada na  definição d-. A expressão original do poema
evita  essa equiparação  pois parece predominar nesta parte da estrofe uma visão do
processo de comunicação do objeto em que o sujeito é também destinador.
5.1 A definição a -  ( definição de Este o nosso destino)  sintetiza  na forma de
uma denominação todas as predicações das estrofes anteriores em seu conjunto. Ela
desempenha, portanto, uma dupla função metalinguística:
Estrofe  I e II           amor sem conta           nosso destino
              DF →         Dn Df      →          Dn
Ao dividir-se em dois segmentos, este sintagma abre-se a uma expansão de sua
segunda parte -  a definição a’ :
                  Amor / sem conta =  (amor) distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas.
O semema /relação de parcelas/ + / não limite/ de  sem conta  se especifica: a
relação de parcelas se faz expansão descontínua especificada, por sua vez, em ou
/humano/ ou /não-humano/ . A definição b-  de nosso destino  é denominação das duas
definições anteriores ( a e a’ ); isto é, amor sem conta   e (amor) distribuído pelas coisas
pérfidas ou nulas  equivalem a ilimitada   a uma completa ingratidão.
A negação do limite da relação de parcelas é lexicalizada na definição pelo
determinante do primeiro segmento: ilimitada.  O caráter superlativo  do determinante
está contido no determinado: doar é dar inteiro, por completo. A descontinuidade de
distribuir  especificada em /humano/ e em /não humano/  em  pérfidas e nulas se
apresenta agora, tanto em  doar  quanto em  completa  , na forma de outro termo da
articulação /parte/ vs /todo/.  A disforia humana transforma a transitividade, a expansão
unidirecionada do ato de doar  em reciprocidade negada, ao  expressar-se pela palavra
ingratidão  na qual o sujeito seria destinador e destinatário, num sincretismo de três
actantes no mesmo ator.
As definições a-  e a’- , de um lado,  e a denominação b-, de outro, estabelecem,
portanto, uma relação de
                     
manifestação discreta / manifestação integral
do mesmo conteúdo. Se se considera:
- a ausência manifesta do objeto na definição b-, em oposição à sua presença clara
nas demais;
- a posição intermediária da  definição b- na inversão  a- a’-   → c- d- , à qual
corresponde uma distribuição homóloga de sujeito destinador e sujeito destinatário;- a  relação manifestação discreta vs manifestação integral na retomada das
definições  a- e   a’-    pela b-,
então se pode afirmar que o objeto de doar (doação de ) é o termo complexo dos
sujeitos das definições que antecedem b- e a seguem: sujeito + destinador + destinatário.
Repete-se pois aqui a mesma estrutura vista em  entrega ou adoração expectante,  ou
seja:
amor sem conta
distribuição (de amor)           doação ilimitada           procura de amor
      ---------------------------------    =       --------------------------   =      ------------------------ =
carência
      Sujeito - destinador                        sujeito – objeto               sujeito - destinatário
5.2. As definições  finais c- e   d-  o são, como as iniciais, de nosso destino
e se encontram numa relação de imbricamento:
d- a procura medrosa , paciente, de mais e mais amor;
e- na concha vazia do amor
Em c- , a adjetivo  vazio retoma a base semêmica das manifestações da função
objeto na estrofe II e III e as categorias disfóricas das definições a-, a’- e b-. A primeira
parte da definição – concha -  manifesta os semas /continente/ + /fechado/ +/circular/ ,
os quais acrescentam os do lexemas determinante. À definição toda, portanto, a
significação:
Continente fechado, circular, não preenchido, humano, disfórico.
Daí a contradição entre esta e a definição em que está contida: de um lado a
afirmação do objeto e, de outro, a sua negação: a procura do amor na concha vazia do
amor. Em outros termos, contradição entre:
/expansão/ + /transitividade/ vs /não expansão/ + /circularidade/.
Se na  definicão b- se reconhece  a manifestação do termo complexo 
(/transitividade/ reciprocidade/ intransitividade/), nela se reconhece a ponte da
transformação de  /transitividade/ em /circularidade/ .
          6.0. Relacionemos, agora, essa conclusão geral sobre a relação sujeito destinadordestinatário e a atividade amorosa, primeiro, com as expressões da função sujeito no
poema; a seguir, com a significação dos recursos retóricos das estrofes I e II
(interrogação e restrição) e da denominação  destino  da estrofe III.         1- Em ser amoroso interessa o caráter de imanência do atributo, a  visão de um
estado permanente, não circunstancial e intermitente; interessa, por
conseguinte, a visão “essentielle” do homem;
2- A essa visão do homem se acrescenta a sua condição disfórica expressa pelos
recursos da interrogação e da restrição;
3- Uma visão disfórica à qual se junta o caráter  de pré-determinação, de
obrigatoriedade, manifesto por destino, que explicita a passividade já contida,
primeiro, na denominação criatura e, segundo, na modalização poder   e na
restrição senão.
Entre o sujeito assim definido e a sua manifestação histórica dá-se uma contradição:
de um lado, a sua condição de condenado a uma atividade transitiva que o cria e define;
de outro, a inexistência de condições à realização dessa mesma atividade. Daí a
circularidade expressa pela metáfora  concha vazia.  Já anunciada na estrofe I na
transitividade (olhos)  negada (vidrados)  do circunstancial: até de olhos vidrados amar.
Só então se pode entender a equivalência de  amar = rodar.
7.0 A contradição acima referida se encontra expressa na última estrofe do poema
em três níveis discursivos.
A volta da predicação funcional, após a estrofe IV, torna ambígua a leitura do final
do poema.  Este pode ser lido como uma continuação da manifestação funcional da
atividade amorosa, equiparando-se, portanto, às três primeiras:
Estrofe I :     Que pode ... senão
                     amar
           II :     Que pode...  senão
                     amar o que ...
          III :    Amar solenemente...
          IV :    Este o nosso destino...
            V:    Amar a nossa falta mesma...
Nesses termos dar-se-ia a comprovação, pelo próprio discurso, do que se acabou de
afirmar: a condenação do homem a prosseguir em sua atividade amorosa, em busca do
amor. Por outro lado, pode-se entender esta última estrofe como uma nova definição
que se junta às da estrofe IV: teria, assim, uma função metalinguística.
No entanto, é preciso respeitar a significação  semântico-sintático do
silêncio interposto entre esta última estrofe e o último verso da estrofe anterior: é ele
que dá àquela sua autonomia de estrofe. É preciso respeitar a pontuação: a relação entre
a denominação este o nosso destino  e as definições da estrofe IV está marcada pelos
dois pontos; a estrofe se separa da anterior pelo ponto final desta e pelo novo parágrafo
que ela própria inicia.
Superpondo-se as duas leituras, tem-se uma retomada metalinguística do
poema até a estrofe anterior, ao lado da realização  desta mesma significação. A
imperiosidade do ser  em prosseguir na atividade amorosa se expressa pela predicação
funcional; a função objeto, porém, ao expressar-se na metalíngua utilizada na estrofe
IV, indica permanência do sujeito da enunciação do discurso:
             Amar a nossa falta mesma de amor
              e na secura nossa
            amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.Ao retomar a predicação funcional, o sujeito da enunciação não o faz no nível do
discurso das duas primeiras estrofes em que a língua é instrumento em que se veicula
uma determinada experiência. Na caminhada ao longo dos versos, o estágio alcançado
na estrofe IV não permite retroceder. O sintagma  a falta mesma de amor  é
verdadeiramente uma nova denominação que sintetiza a síntese da estrofe anterior, cuja
base sêmica se encontra lexicalizada  em falta. A partir desta lexicalização, seguem-se
outras:
            Secura, água implícita, beijo tácito, sede infinita.
Três delas, embora retomem o mesmo campo semântico de mar da estrofe III, não
pertencem mais ao mesmo nível da língua natural. Elas denunciam o envolvimento do
sujeito do enunciado na atividade viciosa do amor e, ao declarar isso, provocam o
envolvimento do sujeito da enunciação na própria metalíngua ao explicitar a estrutura
mínima de significação.
falta         →            secura     ↔        água
     ↓   ↓                   = sede infinita         
                               não água    ↔    não secura
         ou
falta = secura →   não água   → água →    não secura → secura →  sede infinita
8.0 É inegável a pertinência do princípio tomado como modelo neste trabalho: a
presença de processos metalinguísticos na construção do discurso, os quais dão conta
da criação de um sub-código específico deste poema de Drummond. É inegável
também, por outro lado, o caminho tortuoso percorrido, confirmando as palavras de
Greimas  de que a isotopia de um segmento só se resolve pela isotopia geral do texto,
do discurso. Com isso, parece respondida a pergunta colocada inicialmente: por que
amar e não amor, e explicitada a razão pela da disforia  do poema. A clausura de um
texto e as suas significações se confirmam, pois, pelas equivalências e conversões dos
termos, segmentos que se interdefinem, de tal maneira que o poema se fecha
simbolicamente  com a metalíngua transformada em sua própria língua. A percepção
eufórica inicial aos poucos vai sendo declarada enganosa, de aparência, sendo gradativa
mas incisivamente substituída por uma percepção disfórica, até finalizar nesse abraço
fraterno de quem reconhece um destino coletivo e incontornável.
No entanto, é preciso que se atente para o fato de que essa disforia está apontada
para o que ocorre no enunciado. Neste, o que se evidencia é um pequeno espetáculo
vivido pelo sujeito narrativo, incansavelmente retomado, repetido em cenários
distintos,  cuja variabilidade tem a função de afirmar a mesma coisa, a inexistência do
objeto de amor. O sujeito narrativo modaliza-se por um não-poder-não querer, que se
torna mais crucial porque está sobredeterminado por um não-poder-deixar de fazer e
pela contradição de um não-poder alcançar o objeto perseguido. Enfim, é um sujeito
modalizado por um dever cujo valor mal se define: deve persistir nessa atividade baldada por quê? Quem seria o destinador de uma  tarefa sem sentido? As respostas não
se dão numa dimensão transcendente: somos todos criaturas, entre criaturas, em rotação
universal.
Nesse contexto, a veemência da elocução - que não cede a nada, mas reafirma a
sua argumentação, para concluir  no meio do caminho  – Este o nosso destino - no
entanto, a essas alturas descreve uma curva em direção a ela mesma, distanciando-se do
enunciado, e obriga o leitor a situar-se na dimensão da comunicação: no encontro de
sujeitos enunciativos, em que já  não se distingue a direção da mensagem que se faz
circular, confundindo enunciador e enunciatário. Ao reconhecerem juntos o destino
comum, a consciência e a aceitação de um dever assim imposto, fazem prevalecer o
grito da enunciação e, assim, recuperar a euforia do primeiro contato. Mas agora
modulada  por um sentimento estoico, um  pathos que parece encontrar eco nos
seguintes versos da mesma época:
                                   (........................................)
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.
Manuel Bandeira (O martelo)
3
Referências bibliográficas:
ANDRADE, C.D. de .      Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1988.
BANDEIRA, M.               Poesia e prosa. 2ª Ed. Rio de Janeiro; Aguilar. 1967.
GREIMAS, A.J.               Sémantique structurale. Paris: Larousse. 1966.
---------------------             Du sens- Essais sémiotiques. Paris: Seuil.1970.
_____________ et alii      Essais de sémiotique poétique. Paris: Larousse. 1972.
HAIDAR, J. e MIYAZAKI, T.Y.   Dos poemas de Carlos Drummond de Andrade.
                                          Revista de Letras. Porto Rico, 25-26, p. 18-56. 1



O Exercício da Lucidez em Claro Enigma



Cristiane Escolastico Siniscalchi
Universidade de São Paulo (USP)
Mestrado em Letras
sinisescol@uol.com.br
Estudiosos da poética drummondiana têm, freqüentemente, assinalado a investigação existencial
de tom impessoal como a nota mais forte de Claro enigma (1951) e dos livros habitualmente associados
à sua poética — Novos poemas (1948), Fazendeiro do ar (1954) e A vida passada a limpo (1959).
José Guilherme Merquior (1972), um de seus principais críticos, chega a nomear como “Quarteto
metafísico” o subcapítulo em que discute a hipertrofia das questões de ordem filosófica nos livros
mencionados e sua realização em estilo puro. Outros críticos, como John Gledson (1981) e Affonso
Romano de Sant’Anna (1992), eximem-se de fixar, categoricamente, o período como “metafísico” ou
“filosófico”, mas apontam a presença de um conteúdo intelectual marcante nos poemas e suas possíveis
“bases filosóficas”.
Considerando o conjunto de discussões oferecidas pela fortuna crítica, conclui-se que a identifi-
cação de uma tendência “filosófica” ou “metafísica” na poesia de Drummond decorreu de três fatores
principais: 1) o abandono de temas ancorados na matéria histórica em nome de reflexões aparentemente
universais e atemporais; 2) o conteúdo fortemente cerebral; e 3) a substituição da stilmschung,
que caracterizara a poesia anterior, sobretudo de José (1942) e A rosa do povo (1945), pelo estilo
“puro”, que supostamente se presta a temas mais nobres.
De fato, introduz-se uma abordagem mais central e intelectualizada dos assuntos, que, confrontados
com as emoções figuradas pelo discurso, tornam-se objetos do raciocínio. Dentro de uma
76 ] Cristiane Escolastico Siniscalchi
perspectiva ontológica, Drummond preocupa-se em estabelecer procedimentos que lhe permitam
o conhecimento da realidade última dos seres e o julgamento das idéias falsas que confundem o
pensamento, rejeitando certezas e crenças estabelecidas, buscando explicações para o que o cerca e
analisando como o mundo aparece para a consciência. Esse movimento cerebral não implica, contudo,
uma limitação da subjetividade, pois a experiência objetiva é vivida pelo sentimento, que impregna
a linguagem e determina a confecção da rede imagética do texto. O poeta está atento à dimensão
ética dos eventos, que observa atentamente e digere com muita propriedade, não raro expressando
o movimento coletivo na primeira pessoa do singular e emoções individuais na primeira pessoa do
plural, superando lapsos entre individualismo e parceria.
Não obstante, parece preferível o uso da expressão “poesia de investigação existencial” a recorrer
aos adjetivos “metafísica” ou “filosófica” para descrição dessa poética. A expressão “poesia metafísica”,
por exemplo, remete a obras de poetas ingleses que, no século XVII, uniam o pensamento filosófico
ao discurso poético em peças de escassas imagens e conteúdo tendente ao gênero sentencioso, o que
não se aplica a Claro enigma. Com a nomenclatura “poesia de investigação existencial”, elimina-se,
igualmente, o risco de se acreditar que Drummond tenha introduzido algum sistema original de
pensamento ou apenas ilustrado a moda existencialista do pós-guerra, ainda que muitas das idéias
do Existencialismo ajudem a compor a leitura que o poeta faz do mundo e de sua condição naquele
momento histórico. Evita-se, ainda, a suposição de que a poesia de José e A rosa do povo não seja, de
nenhum modo, metafísica, já que, como lembra Sant’Anna,
a consciência da liberdade e a concepção de um tempo social estão ligados a uma consciência individual,
que se expande numa formulação metafísica do tempo. Nem seria concebível que uma consciência totalizante
da realidade fosse decepada de uma prospecção mais funda no tempo, limitando-se ao eventual e
episódico do dia-a-dia. (1992, p. 88)
Por fim, impede-se que essa poesia seja considerada mais serena, como faz pensar o maior acabamento
formal, uma vez que na relação tensa com a forma se fundará grande parte da crise do
sujeito, assim como um irrevogável senso de angústia surgirá nas relações do sujeito com o outro na
busca do conhecimento do ser.
O estudo apresentado a seguir pretende verificar como a intuição do drama existencial no “tempo
de madureza”, nas palavras do poeta, determina uma disposição e uma visão de mundo. Destaca,
sobretudo, um poeta que se arma contra o mundo por temer ser surpreendido por suas imagens
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma [ 77
falaciosas e explicita sua percepção de uma temporalidade vazia, mas condói-se pela impossibilidade
de entrega à idealidade e à expressão mitopoética. A argumentação vale-se de alguns dos principais
poemas de Claro enigma, mas está centrada na análise minuciosa de “Cantiga de enganar”, de que
emerge grande parte das conclusões.
Um dos principais problemas que se colocaram para Drummond na grande empresa de investigar
o ser e o significado dos acontecimentos foi o da viabilidade de se chegar à essência. Drummond
concebe que o pensamento encontra obstáculo na aparência das coisas e, devido a crenças, hábitos e
preconceitos, pode limitar-se a ela.
Essa discussão faz-se, no poema “Opaco”, pela enunciação do incômodo do eu diante de um
edifício que lhe barra a visão do céu à noite. O obstáculo não o impede de saber o que está ali (“Noite.
Certo/ muitos são os astros./ Mas o edifício/ barra-me a vista.”), pois a experiência anterior supre a
falta da imagem; no entanto, impossibilita a aventura de um novo olhar para o conhecido. Símbolo
metonímico do elemento engendrado pela operação intelectual/cultural em oposição ao natural,
o edifício, potencializado pela experiência significativa dessa noite, projeta-se na subjetividade do
sujeito, que o repete até que imagens simétricas do natural e do construído — “Zumbido/ de besouro.
Motor/ arfando. O edifício barra-me/ a vista.” — iniciem a diluição do paradoxo. A associação entre
os dois universos sugere que o anseio e a valorização do natural apóiam-se na capacidade de intelecção
formada no bojo do universo cultural e que a razão conhece os objetos com as formas e as
categorias do sujeito do conhecimento.
A partir daí, não é mais o edifício o foco do incômodo, porque por meio dele se revelará o luar:
“Assim ao luar é mais humilde./ Por ele é que sei do luar”. Ao barrar a vista do sujeito, desperta seu
desejo de rever ou, ainda, de reavaliar o mundo objetivo. Permite, portanto, uma nova consciência,
que considera o obstáculo exterior apenas uma artimanha do raciocínio: “Não, não me barra/ a vista.
A vista se barra/ a si mesma”. O mundo “opaco” surge como uma condição do próprio olhar, o que
atribui ao conhecimento acumulado a dificultação de uma leitura inédita do que é familiar. Precavida,
a consciência do poeta não absorve o mundo e aquele prefere — para usar a boa imagem de Donaldo
Schüler (1979, p. 21) — “encouraçar-se” contra ele, desconfiando da sensação que os objetos provocam,
uma vez que depende das condições particulares de recepção.
Em Claro enigma, a consciência do poeta está numa encruzilhada: nunca esteve tão aguçada e
instrumentada para desmontar as ilusões que se apresentam, mas também nunca esteve tão vulnerável
às perdas. A aplicação da lucidez na leitura do mundo é dolorosa, porque impede, já no plano do subconsciente,
a formulação do desejo de relações mais apaziguadas, inconcebíveis na ordem caótica que
78 ] Cristiane Escolastico Siniscalchi
ela incondicionalmente reconhece. Esse gesto de autocastração é mantido pelo poeta nas sublinhas
do texto, fazendo com que sua presença furtiva e supostamente involuntária na fala do eu lírico mais
revele sobre sua crise.
Esse paradoxo estruturador de Claro enigma revela-se na sobreposição de planos do soneto “A ingaia
ciência”: no primeiro, está a comunicação da lucidez em ânimo grave; no segundo, mencionadas
ou apenas aludidas, impressões de uma perspectiva ingênua ou menos angustiada, que se mantêm
como um contraponto sempre visível, problematizando a sabedoria do homem maduro:
A ingaia ciência
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.
A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência
e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.
A configuração de dois planos ocorre já no título do soneto, pois a “ingaia ciência” inevitavelmente
pressupõe a contraposição com a “gaia ciência” e suas duas referências mais evidentes: a primeira à
arte alegre e jovial dos trovadores provençais dos séculos XI a XIII e a segunda ao ensaio “A gaia ciência”,
de Nietzsche (1996). Embora aponte o caráter caótico do mundo e a presença de impulsos e leis
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma [ 79
que não podem ser atingidos por nossos juízos estéticos e morais, o filósofo afirma ser um erro o pessimismo
e o imobilismo e, diante da nova configuração do pensamento europeu, após o que chama
de “a morte do Deus cristão”, comemora a possibilidade de construção de um ideal inédito a partir de
uma saúde forte, tenaz e alegre, para encontrar o desconhecido dessacralizado.
A princípio, não é cerrado o diálogo entre essas referências e o soneto, pois as alusões ganham seu
sentido menos pela similaridade dos temas e mais pela inversão do espírito que preside a atividade
da “gaia-ciência”. Já de início, a madureza é uma in-gaia ciência e, em seu universo, não há confiança
nas formas tradicionais; sua revisitação dá-se por meio de uma aplicação astuta da técnica. O poeta,
rigoroso na escolha do metro decassílabo e das rimas clássicas, opta pela desestruturação sintática,
em que não apenas a longa frase inicial, como também aquela que inicia o primeiro terceto e invade
o último, desestabilizando-o, contribuem para contrariar o princípio da clareza e da argumentação
cerrada, tão caro aos sonetos tradicionais.
Encontra-se, no primeiro quarteto, a menção a “essa terrível prenda/ que alguém nos dá”. A associação
entre “terrível” e “prenda” aponta que a madureza surge como predicado ou aptidão extraordinários,
mas funestos e terrificantes. Essa caracterização ambígua sugere que a doação é, na
verdade, uma imposição de um sujeito indefinido — “alguém” —, num movimento que alude ao
imaginário religioso em perspectiva irônica. Nesse sentido, o poema contrasta com “Campo de flores”,
também de Claro enigma, em que o eu lírico agradece por ter sido premiado com “um amor no tempo
de madureza”:
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus — ou foi talvez o Diabo — deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
Além de aparentemente desvinculada do desejo, a recepção da madureza pressupõe também uma
troca involuntária: a madureza rouba “todo sabor gratuito de oferenda/ sob a glacialidade de uma
estela”, com que é incompatível. A alusão à morte na figura da fria estela, a pedra tumular ou jazigo,
associada à idéia de oferenda, que se encerra no campo semântico litúrgico, remonta novamente
à figura divina e ao imaginário cristão e sugere a esperança de conforto que acompanha o evento
da morte. Tais referências estão invertidas no soneto, bloqueadas pela madureza, mas permanecem
como um contraponto visível, sempre acentuando as perdas.
80 ] Cristiane Escolastico Siniscalchi
O mesmo contraste, na segunda estrofe, faz-se pela indicação da madureza como recurso cognitivo
que desmobiliza a leitura ingênua do mundo. Vencendo o bloqueio imposto pela “venda”, a
consciência lúcida depara com “o círculo vazio, onde se estenda”. A conjectura de uma lucidez em
expansão dialoga com o texto de Nietzsche, que propõe a ampliação do espaço de investigação do
mundo e do ser após a derrocada do Cristianismo.
O poema mantém, em tenso diálogo, duas perspectivas; ao mesmo tempo em que é negada ao
sujeito a possibilidade de desconsiderar a lucidez, permanecem sugestões de uma vivência menos sujeita
à angústia. A princípio, esse contraponto não confunde o eu lírico, que explicita, no primeiro terceto,
após reafirmar o poder de mensuração apurada do mundo, o caráter irrevogável da madureza.
Amores, ócios e quebrantos, elementos ironicamente igualados pelo verso e pela lucidez, submetemse
à sua ciência.
No entanto, apesar dessa clareza e de toda a cautela do lúcido, a existência falaciosa apresentalhe
armadilhas. No último terceto, afirma-se a incompatibilidade entre o “sonho da existência” e a
“madureza”, transformada, por sinédoque, em “agudo olfato,/ agudo olhar, a mão, livre de encantos”.
Para problematizar a madureza, que não salva definitivamente o sujeito de todos os conflitos, o
poeta destaca a imagem do “sonho da existência” em detrimento da “ciência” irrevogável. No plano
semântico, a incompatibilidade é indicada pela destruição dos sentidos aguçados no confronto com
o sonho. Já no plano fonológico, nota-se que a rima aproxima “ciência” e “existência”, mas o som da
segunda prevalece, reforçado pela posição no fecho do soneto.
O mecanismo que ilumina os contrapontos, portanto, ocupa todo o poema, desde a oposição inicial entre
a “ingaia ciência” mencionada e a “gaia ciência” aludida até a constituição do paradoxo final, por meio do
qual o poeta esclarece que a madureza conhece tudo, mas não evita que o sujeito vacile no confronto com
a idealidade.
Os comentários feitos até este ponto caracterizam o sujeito que se expressa em Claro enigma como
alguém que se considera mais lúcido que os demais, mas cujo privilégio é fonte de angústia, já que
não lhe permite nem alterar a ordem estabelecida nem aceitá-la. A exposição dessa condição “trágica”
torna-se ainda mais complexa e interessante, quando se vincula à ironia, como ocorre no poema
“Cantiga de enganar”, em que a subjetividade assume, surpreendentemente, a postura típica da personagem
alazón. A natureza dramática de “Cantiga de enganar” origina-se no gesto de o eu lírico
se dirigir a um interlocutor, e, principalmente, em sua opção por se apresentar como uma dramatis
persona, expressando sua visão de mundo à maneira teatral, de modo que rubricas com marcações de
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma [ 81
cena são facilmente imaginadas a partir da disposição emocional que impregna cada etapa do texto.
O eu lírico expõe sua ciência do mundo e a transmite como revelação a um interlocutor identifi-
cado várias vezes pelo vocativo “meu bem”, espalhando marcas de um discurso exortativo, que é, em
última instância, uma fala que anima o outro a agir em determinado sentido. Inicia essa fala uma
afirmação desconcertante, paradoxal por soar como terrível revelação e estar fundada em um tom
que mescla afeto e sarcasmo:

O mundo não vale o mundo,
meu bem.
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
5 Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
Explicita-se, nesses versos, a percepção de que o mundo tem leis que não podem ser dominadas
nem compreendidas e o sujeito não parece disposto a contestá-las. O resultado de uma ação nem
sempre é o objetivado e, nesse processo, o prejuízo de todos é quase certo, como sugerem as imagens
do corte pelo espinho e das rosas manchadas pelo sangue. Não há indícios do que causa tal efeito, e
a situação é julgada admissível e fruto, talvez, de um destino ou fado a que não se confere nenhuma
intencionalidade.
Os versos seguintes remetem ao início do poema, utilizando a expressão cristalizada “valer a pena”,
que aqueles parodiam. Sua disposição mantém leve o tom, e a sonoridade, que opõe os sons amenos
das sibilantes e da seqüência de es de “face serena” aos sons duros das oclusivas e da seqüência de as
de “face torturada”, evidencia a diferença entre elementos que, segundo o eu lírico, equivalem-se:

 O mundo,
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.

O sentimento de ilogismo, portanto, permeia toda a visão de mundo do eu lírico e, diante dele, sua
atitude é um riso torto, que aponta para a incoerência do próprio gesto e remonta às ações desmotivadas
do início do texto, porque o sujeito não sabe o que o provoca, apenas suspeita que seja o nada
ou ele mesmo, em trânsito pelo mundo ilógico:

 Há muito aprendi a rir,
de quê? de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e se sobe
algum som deste declive,

Embora não se refira abertamente às condições históricas da modernidade, ao refutar a ilusão de
ordem, o trecho inicial de “Cantiga de enganar” remete às recorrentes teorias sobre esse tempo, que
o caracterizam pela ininteligibilidade. Ao descaracterizar as leis universais e imutáveis da natureza (o
pé-de-sono dará rosas), Drummond sugere que não há procedimentos nem critérios que permitam
conhecer as conexões internas entre os acontecimentos e as coisas. Ao contrário da angustiada personagem
sartriana de A náusea (2006), o eu lírico de “Cantiga de enganar” reage à ciência da gratuidade
com a indiferença, que expressa no tom jocoso, parecendo, num primeiro plano de sentido do
poema, aceitar o destino traçado e substituir a atitude investigativa pela atitude dogmática.
Apesar disso, o eu lírico insiste em expor o mundo ao outro. No verso dezessete, usando uma
dicção coloquial, torna o verbo “valer” intransitivo e, sutilmente, altera seu significado de “merecer”
ou “equivaler”, que pressupõe relativização, para um incisivo “ter valia”. Constrói, então, um trocadilho
com o verso dezoito — “Tal como sombra no vale,” —, de modo que a oração comparativa
subordinada ao verso dezenove parecerá subordinar-se também a ele, mimetizando a idéia de sombra
expressa ali. Com o espelhamento, a idéia da ausência de valor contamina “sombra no vale”, que é o
termo da comparação implícita, e, conseqüentemente, atinge o movimento de declínio da vida, que
remete, pela proximidade com o arquétipo do ciclo solar, à idéia de decadência e morte dos seres. A
manobra desmonta a solenidade que reveste a idéia de queda da vida e acentua a ironia.
Não obstante, o uso das reticências no verso dezenove impõe uma leitura que, acompanhando
a imagem, realiza uma breve inflexão, a qual não chega a suspender imediatamente o tom jocoso,
presente desde o início do texto, mas o minimiza. Nota-se que as imagens subseqüentes parecem
sutilmente separadas do discurso anterior e acionam o senso de solenidade. Embora mantenham
o mesmo ânimo negativo, as imagens, notadamente as primeiras, por seu papel na imagética tradicional
da poesia, evocam o sublime, que passará a concorrer com o jocoso e permanecerá como um
contraponto sempre latente:

Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e se sobe,
20 algum som deste declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
25 Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
30 como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e de enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
40 menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
de energia concentrada.
Não é nem isto nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.

A imagem de um som surgido do declínio da vida evoca o sublime na chave do elegíaco. Contudo,
a identidade do som será dada, a princípio, por meio da negação de uma série de analogias. A
primeira seqüência de imagens refutadas inicia-se com o pastor, o rebanho e a flauta, componentes
tradicionais da poesia pastoral, caracterizada pela encantadora simplicidade. Seguem imagens sugestivas
de sons ternos e de fruição (v. 23 a 32), num discurso com a presença marcante de sibilantes e
nasais, de algumas rimas consoantes e de pés longos (anapesto e peón quarto), que garantem uma
musicalidade branda aos versos, coincidente com a enumeração de elementos que se encerram no
universo do desejável.
O segundo grupo de imagens, que se estende do verso 33 ao 36, rompe a seqüência encantatória.
Abandonando a sintaxe coordenativa e fluente do primeiro grupo, compõe-se de uma única frase,
com verbo elíptico, em que quatro complementos se subordinam ao substantivo “respiração”. Essa
disposição, somada à expressividade das oclusivas e ao fechamento no termo “clausura”, significativo
do ponto de vista semântico e sonoro, provoca a impressão de algo opressivo. A contraposição dos
dois blocos impõe-se desde o termo inicial, “tampouco”, e a configuração diferenciada parece atender
ao intuito de enternecer e inquietar proveniente da observação de um e de outro.
Se o primeiro grupo evocou sons francos e expressivos e o segundo, um som quase inaudível, o
terceiro, disposto entre os versos 38 e 45, mostrará um som que se caracteriza como uma “partícula
sonora” que é menos que “simples palavra” desprendida. É interessante notar que o elemento humano,
que compôs parcialmente o primeiro grupo e integralmente o segundo, retrocede, e, no lugar dos
elementos pertencentes ao universo comum, surge uma experiência que está ligada a ele, mas que é
algo primordial, singelo — como sugere o uso dos adjetivos simples (v. 40) e mero (v. 44) — e autônomo.
A ambigüidade sintática dos versos 43 e 44, que não define se vida e morte constituem o sujeito
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma [ 85
ou o objeto direto do verbo “conter”, expressa essa ordem à parte em que se move a partícula sonora,
mítica na medida em que se eterniza e suprime a diferença entre começo e fim.
Está negada a identidade entre o som que emerge do declínio da vida e essa série de imagens,
que incluiu da experiência terrena à abstração e formulou-se numa linguagem elevada que acionou
o sublime. O universo desse som lutuoso é irônico, visto que mesmo a sua produção passa pelo viés
do hipotético, como sugere a conjunção se que inicia o longo trecho. Talvez por isso, sua definição,
a partir do verso 47, retome o jocoso — “Não é nem isto nem nada.” —, temperado agora pelo desapontamento.
Segundo o eu lírico, o som não alcança a organização de música e resta de “desencontros”,
“encontros fortuitos” e “malencontros”. É mero resquício de equívocos humanos e tem caráter
disforme, como sugerem as imagens cifradas das “miragens” transformadas em “absurdas figurações”,
acompanhadas pelos inusitados enjambements dos versos 50 e 52. Está afastado, portanto, um possível
parentesco entre esse som e o elegíaco, pois o canto fúnebre originado do declive da vida apenas
reiterará a pobreza da condição humana, constituindo-se numa desprezível anarquia de formas.
Nos versos seguintes, o eu lírico passará a analisar o som surgido do mundo sem-sentido, afirmando
um silêncio demonizado, que associa a elementos familiares ao homem. Ao se referir ao emudecimento
das “canções de timbre mais comovido”, reitera que a ânsia de alcançar o sublime malogra
e que o som precioso inexiste no plano comum:

O mundo não tem sentido.
 O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
 é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.

A reflexão do eu lírico é inquietante. Em sua primeira indagação, por exemplo, não sabemos se
pergunta o que o silêncio pretende dizer ou o que significa o vocábulo “silêncio”. Já a segunda questão
parece ser retórica, visto que menciona a “boca do mundo”, para, em seguida, afirmar que o mundo é
fechado, o que evidencia o calar-se. A visão que vai construindo, e que associa quase inteiramente o
mundo desordenado e o som que é silêncio, torna-se, pouco a pouco, mais negativa, numa gradação
que vai de fechado, para vazio e, finalmente, para um talvez que em si mesmo já é hipotético. A enunciação
aparece como logro, algo que é explicitado também quando menciona uma fala ouvida que não
passa de um eco do silêncio.
O mundo, portanto, define-se como virtualidade e abstração e esse pensamento fecha a tese que
o eu lírico vinha pontuando desde o princípio: o mundo não vale a pena porque não tem sentido;
a vida declina e esse movimento não se reveste de qualquer solenidade; os sons familiares são falácias,
ecos de silêncio; o mundo está fechado ou vazio ou é apenas potencialidade, marcada por uma
negatividade inata; o mundo não vale a pena. Nesse universo, o tom jocoso inicial, que se alinhava
à indiferença, não permanece intacto e vai, aos poucos, revelando a fala do melancólico, que vive de
maneira dramática o confronto com o mundo. A ciência da gratuidade lança-o no sofrimento, porque
lhe retira toda segurança. A desordem do mundo comunica-se com a desordem interior e, juntas,
levam-no à dúvida permanente, “a situação psicológica daquele que ascende a uma difícil lucidez”
(MATOS, 1993, p. 32).
O objetivo da explanação do eu lírico é, portanto, o desmonte da crença na positividade do mundo,
o que fará obstinadamente até o final do poema. Sua estratégia mais evidente é desorientar o
outro a partir da enunciação de elementos — pena, conta, força, sonho e tempo — que imediatamente
caracteriza como inexistentes, em uma fala que aparenta ser ressalva. Com uma mensagem sobrecarregada,
que obstrui a seqüência do raciocínio, promove o entroncamento de duas ordens: a que corresponde
ao senso comum e aquela de que suspeita e não pode se eximir de comentar:

O mundo não vale a pena,
 mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta
de sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
de escolher nossas lembranças
 e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
— mas a conta não existe —
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: idéias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que o querem gastar.
 Meu bem, sejamos fortíssimos
— mas a força não existe —
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
 mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
100 levar na palma do tempo
— mas o tempo não existe —,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.

A fala que surge como ressalva, nos versos 70, 78, 86, 95 e 101, não se impõe sobre a outra,
anulando-a; pelo contrário, ela se assemelha aos apartes sarcásticos dirigidos à audiência por alguns
personagens típicos da comédia. Certamente, não tem o objetivo da graça, mas trata de evidenciar a
distância existente entre o que se proclama e a verdade, ressaltando a ironia. Nesse ponto, é importante
notar que, exceto na primeira ocorrência, o jogo do olhar enganado e da lucidez coincide com
momentos em que o eu lírico aconselha uma forma de existência possível no mundo, o que resulta em
uma expectação também impregnada de negatividade.
Paradoxalmente, a saída para a tensão entre a ingenuidade e a lucidez parece estar na escolha
do ilusório como forma de vida, e o eu lírico estimula o outro a “fazer de conta” e a “fazer mundos”
a partir de palavras. Essa possibilidade de conferir sentido às coisas por meio do signo lingüístico,
entretanto, não se encerra no universo da tradição cultural, em que as palavras, concebidas encantatoriamente,
têm o poder de fazer com que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas. No
contexto irônico do poema, o eu lírico assume-as enquanto subterfúgio, ciente de que a ordem criada
permanece num plano estritamente individual. A palavra não tem poder fundador; ela apenas evoca
uma ordem mentada. Nessa linha, o jogo de tempos verbais nos versos 79 e 80, que se repete nos dois
últimos, indica que o interlocutor reconhece esse contínuo movimento de desmonte e criação e sabe
que qualquer ordem estabelecida será ilusória e poderá ser substituída por outra. A transformação
do substantivo “mundo” de comum para próprio, no último verso, também ressalta a valorização do
empreendimento particular. Além disso, vê-se que não se estabelece o repúdio à ilusão da vida, visto
que o adjetivo “pura” determinando “mentira”, no verso 87, pode significar “completa”, aproximandose
do coloquial, mas também “ingênua”, o que ameniza o termo e faz pressupor a condescendência.
É preciso considerar que o eu lírico conhece os efeitos dolorosos de sua sabedoria e, por isso, adverte
sobre a necessidade de ambos, ele e seu interlocutor, serem fortes para manter suas identidades.
Todo o esforço do eu lírico em apontar a falsa positividade e ressalvar sua lucidez não implica,
contudo, a suspensão do ilogismo e da gratuidade. Tem consciência de que é indiferente estar lúcido
ou enganado, como sugere nos versos finais, embora sua natureza não lhe permita fazer a escolha e
permaneça minando qualquer possibilidade tranqüilizadora de crença. Sua única saída é viver um
mundo temporário, estabelecido pelo ato de criação que reconstitui a familiaridade, ainda que perceba
que tudo não passa de mais uma ilusão. O que o alivia é a possibilidade de optar por ela e estar
ciente disso, em lugar de ser arrastado pelo fluxo do mundo.
Essa importância conferida ao ato de criar por palavras é um aspecto a se observar atentamente
em “Cantiga de enganar”. A princípio, nota-se que o fazer poético é examinado pelo olhar lúcido e
depende, em grande parte, de tornar disponível uma série de fatores que o eu lírico insiste em clasO
Exercício da Lucidez em Claro Enigma [ 89
sificar como inexistentes. Além disso, ele sabe que a voz do mundo não estabelece qualquer elo com o
sublime, sendo apenas um reflexo da condição humana. No entanto, embora limitada à ordem imaginativa
e com um efeito muito individual, a poesia surge como o único expediente a que, a princípio,
atribui-se algum valor real.
A alusão à poesia surge já no título, que remete, pelo trocadilho, às cantigas de ninar. O efeito
irônico completa-se pela composição em redondilha maior, que empresta um ritmo acolhedor a uma
mensagem que, aparentemente, não tem esse objetivo. Aliás, o próprio vocábulo “cantiga” pode significar
“cantilena” ou “mentira”. Se isso propõe que a poesia está a serviço da farsa do mundo, a
expressão “não vale a pena”, que se repete no texto, sugere, através da polissemia de pena, que pode
significar tormento e castigo e também o instrumento para escrita, que o ato de fazer poesia é maior
que o mundo descompassado. O poder de criar o mundo pelo signo funda a possibilidade de existência
do eu lírico e parece se relacionar à idéia, presente também no poema “Legado”, de que a poesia
está separada da ordem indesejada. Ao sugerir que o mundo é talvez ou nem isso, o poeta faz ecoar
versos daquele poema:

Eu mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
A vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Nota-se que ambos compartilham a opinião de que o mundo apresenta-se mascarado e que a
poesia fica limitada à virtualidade. Em “Legado”, o eu lírico reavalia o poder de Orfeu diante da nova
ordem e, em lugar de anunciar a maravilha de sua arte encantatória, revela seu malogro e reclusão em
uma ordem distanciada. Comparados, os poemas revelam-nos duas abordagens do tema, ainda que
sem contradição; em “Legado”, está a derrota da poesia, que não pode resgatar o mundo, enquanto,
em “Cantiga de enganar”, a poesia é fundamental para manter a existência a despeito do mundo,
representando uma possibilidade de exclusão da apatia e do atordoamento.
Não obstante, há uma contradição entre o anúncio do poder conferido à poesia e os significados
construídos a partir das várias nuanças de tom ao longo do poema. A presença do vocativo “meu bem”
seguindo à cruel revelação sobre o mundo, logo no início do texto, pontua a ironia e cumpre três funções:
elimina a impessoalidade, simula uma dialética e distingue a situação do eu lírico da situação comum,
mostrando-o aparentemente superior. Apesar do enorme cetismo e do reconhecimento de sua fragilidade,
ele está disposto a aconselhar o outro e chega a gracejar, parecendo diminuir a importância de tudo,
revelar autoconfiança e fingir certo relaxamento. Essa superioridade não se confunde com vanglória, mas
a opção por essa postura não deve ser menosprezada, pois está nessa sutileza a tensão do texto.
Seria um equívoco pressupor que Drummond invista em qualquer tipo de fanfarronice. Na verdade,
o apelo ao tom humorístico responde menos ao prazer proveniente da fala e mais a uma necessidade
de defesa contra o sofrimento; o sujeito parece preocupado em amortizar os efeitos terríveis
das revelações para o interlocutor, mas igualmente em se resguardar (note que a existência de um
tu pode significar um mero desdobramento do eu). É nesse sentido que devemos entender o início
de sua fala, em que procura evidenciar a nulidade dos interesses e sofrimentos que podem parecer
grandes ao outro. O humor sufoca suas reações e garante o triunfo do narcisismo, porque evidencia
que o eu se opõe à realidade. A compreensão de que o olhar lúcido instaura o distanciamento irônico
como defesa é importante para percebermos a tensão entre pungir e acolher, que se funda desde o
título do poema e que concorre para todas as nuanças do tom.
Esse tom humorístico e o que representa enquanto disposição psicológica aproxima a dramatis
persona presente em “Cantiga de enganar” da figura típica do alazón. Comumente, o alazón caracteriza-
se pela inconsciência confiante, que torna sua situação imaginária incongruente em relação à
realidade. No caso estudado, a contradição não está entre o que o sujeito sabe e o contexto, mas entre
o comportamento assumido e as coisas que conhece e expõe. Ainda que se reconheça a função protetora
do humor, surpreende que ele tente se mostrar superior a tudo e que o faça de modo arrogante.
O significado dessa opção acaba se revelando pouco depois, visto que o eu lírico não consegue sustentar
o mesmo tom durante todo o poema, abandonando-o quando fala do som lutuoso e submetendo-
o a uma urgência amargurada quando procura apontar saídas, momento em que o uso freqüente
do vocativo passa a revelar menos o afeto e mais a advertência, expondo sua fragilidade. Ao comentar
o poema “As impurezas do branco”, o crítico Donaldo Schüler remete às últimas palavras de Bérenger,
na peça “O rinoceronte”, de Ionesco, que revelam uma emoção semelhante à da voz de “Cantiga de
enganar” (1979, p. 102): “Contra todo mundo eu me defenderei, eu me defenderei! Eu me defenderei
contra todo mundo! Sou o último homem, hei de sê-lo até o fim! Não me rendo!”1. “Alazonicamente”,
o poeta parece ter confiado em uma intangibilidade garantida pela expressão humorística que ele
mesmo não consegue sustentar e que não basta para protegê-lo.
A derrocada do alazón acirra a problematização que envolve a construção do mundo por palavras,
pretendida pelo sujeito e aconselhada ao interlocutor, porque evidencia a impossibilidade de qualquer
diferenciação em relação ao que está estabelecido. Não há uma ordem autônoma em que possam se
1 Donaldo SCHÜLER, A dramaticidade na poesia de Drummond, p. 102.
O Exercício da Lucidez em Claro Enigma [ 91
deslocar. Por conseqüência, a negatividade atinge também a valorização do poético, que se desmisti-
fica, uma vez que não é capaz de estabelecer uma realidade nem resguardar o sujeito. Seguindo o que
já anunciava ao comentar os sons do mundo, a poesia também é um expediente comprometido com
a ordem estabelecida.
Nesse sentido, é importante notar que Drummond não escolheu para assumir a voz oracular e fazer
revelações sobre o mundo a figura do eirón, isto é, do sujeito lúcido. A lucidez do eu lírico de “Cantiga
de enganar”, responsável por tantas revelações, é colocada em xeque por sua caracterização inicial
como alazón, mostrando que toda a cautela do sujeito, que enxerga e denuncia inúmeras ciladas, não
garante que veja aquela em que vai cair: a crença em poder defender-se contra o mundo. A voz que
revela o mundo será aquela que proclama o silêncio dele e da poesia através de uma fala que pouco
conserva de grandioso. No lugar da autoridade do poeta-rapsodo, portanto, está o poeta fracassado,
que tenta arrastar seus despojos para fora do tempo e apontar o dedo irônico para o mundo.

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. Trad. do autor. São Paulo: Duas
Cidades, 1981.
MATOS, Olgária C. F. O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. São Paulo:
Brasiliense, 1993.
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1972.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. In: Obras completas. Trad. Rubens R. Torres Filho. São Paulo:
Editora Nova Cultural, 1996. p. 171-207.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o “gauche” no tempo. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.
SARTRE, Jean-Paul. A náusea. São Paulo: Nova Fronteira, 2006.
SCHÜLER, Donaldo. A dramaticidade na poesia de Drummond. Porto Alegre: Editora da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 1979.

AS FACES DA PALAVRA EM CLARO ENIGMA

                                                                                              Kelley Dias Foini (CES/JF)
                                                                                             Thereza da C. A. Domingues (CES/JF)

Em Claro Enigma existe uma relação que exagera em uma dimensão
filosófico - existencial, de constituição depurável, arquitetado sob a administração do
inegável rigor poético, que, numa linguagem reveladora da mais alta realização estética,
conjuga pensamento e emoção criativa.
Esse trânsito entre linguagem e leitor é, a propósito, uma leitura que se
realiza a partir de outras estruturas semânticas, a poesia que dialoga com a arte, esse
contágio entre as palavras é onde uma obra de arte, em qualquer linguagem, ao tocar
a sensibilidade de um criador, produz nele um impulso para a criação de sua própria
linguagem. É como participar de um jogo.
Em Claro Enigma há uma reconciliação com o passado, e a memória
familiar é a guia; há um corporificar da palavra, e essa corporificação se deixa mostrar
viva, existindo de todos os modos; é um início de melodia que se encadeia sobre diferentes
estrofes, demonstrando uma analogia mais tênue entre o som musical e o som
articulado, pois esses poemas apresentam efeitos em relação às palavras/ idéias: “A
linguagem não é apenas um elemento de cultura. Ela é a base de todas as atividades
culturais, e, portanto, o caminho mais fácil para chegar-se ao conhecimento das características
de qualquer grupo social” (LEITÃO, 1988, p. 13).
A presente análise diz respeito ao tema: a palavra em Claro Enigma de
Carlos Drummond de Andrade, pois o poetar do autor nos faz chegar a um caminho
significativo acerca da linguagem e comportamentos que servem a essas e outras
abordagens.
Essa relação da palavra em torno de Claro Enigma é simples, pois basta
sabermos que ela influencia seres e coisas, gerando ausência e conexão nos que se
distanciam de coisas reais, e de instantes da vida que passam no espaço e no tempo,
os quais só podem se fazer presentes na lembrança e vejamos, ilustrativamente a
poema “Entre o ser e as coisas”:
Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao longo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando amanhece frescor de
coisa viva.
Às almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.
N’água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.
E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo. (ANDRADE, 1995, p. 51)

Discursos e Identidade Cultural

O poema “Memória”, em Claro Enigma é analisado por Affonso Romano de
Sant’ Anna: “a partir dele o poeta aprende a amar tudo aquilo que perdeu ou vai
perdendo no atrito com o tempo” (SANT’ ANNA, 1972, p.185). Há uma “sensação de
perda da lembrança insistente das pessoas e coisas que ficaram para trás no espaço(
província) e no tempo( morte)” ( Ibid)..
Efetivamente, à medida em que sua poesia avança, há uma intensa sensação
de perda e desgaste que envolve a trajetória poética em direção a uma inspiração
ou revelação que está sempre a insinuar sem nunca mostrar de todo sua face.
Então, é através da memória que se busca a linguagem, pois Drummond
usa a língua de uma nação, o seu léxico é todo elitizado, sua estrutura juntamente
com o som dão corpo às palavras e é esse tom que substitui o falar sobre o corpo
pelas lembranças, como no poema “Memória”:

Amar o perdido
deixa confundido este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão (ANDRADE, 1995, p. 27).

A atividade poética não é voltada para a palavra em si, enquanto materialidade,
a palavra enquanto uma coisa no mundo; por isso os poetas são intraduzíveis,
o poeta teria, em relação á linguagem, “uma transa apaixonada”, e essa relação
podia se manifestar de duas formas, uma “masoquista” e outra “sádica”. Na primeira,
o poeta se torna vítima da palavra à qual o viola, o arromba, o altera e o coage; na
segunda forma, o poeta passaria a ser carrasco, a ser verdugo da palavra, então,
trocam-se os papéis: “As potencialidades da imagem e da palavra gozam de um dom
talvez inexaurível: o de formar novas arborescências que dialetizam a expressão da
seiva original” (BOSI, 2003, p. 64).
É o que verificamos, com esse poema, na introdução de CE que vem a seguir l
Não me leias se buscas flamante novidade ou sopro de
Camões.

Aquilo que revelo e o mais que segue oculto em vítreos
alçapões
são notícias humanas, simples estar- no- mundo, e brincos de
palavra, um não - estar - estando mas de tal jeito urdidos o jogo
e a confissão que nem distingo eu mesmo o vivido e o
inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.
A orelha pouco explica de cuidados terrenos e a poesia mais
rica
é um sinal de menos (ANDRADE, 1995, p. 01).


O que se visa no poema seguinte “Carta”, é não impedir o interlocutor de
interpretar as palavras de Drummond, mas fazê-las com vão mais além do necessário,
do suposto exagerar, como algo fora do comum:
Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta[ ...] ( Ibid., p. 105-106).

É um sentimento evidentemente fracassado que o leva a se apresentar
em CE de maneira a tomar conta de uma desrazão que a vida suporta, como uma resposta
talvez às inquietudes que já se faziam ouvir. No poema “Perguntas em Forma
de Cavalo -Marinho”, o poeta nos propõe essas nossas inquietudes, aflições, esses
nossos questionamentos, mostrando-nos o lado da razão:
Que metro serve para medir-nos?
Que forma é nossa e que conteúdo?
Contemos algo?
Somos contidos?
Dão-nos um nome?
Estamos vivos?
A que aspiramos?
Que possuímos?
Que relembramos?
Onde jazemos?
(nunca se finda nem se criara.

Mistério é o tempo, inigualável.) (Ibid., 1995, p. 21).
Como uma resposta talvez à procura da poesia, que ele sabia além, muito
além, dos acontecimentos do próprio corpo, do pensar, e do sentir. Convém frisar
o poema “Oficina Irritada”, com a necessária ousadia do autor em também escrever
palavras duras que nos fazem pensar e sentir:

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.
Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.
Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de vênus sob o pedicuro.
Discursos e Identidade Cultural
Ninguém o lembrara: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.! (Ibid., p. 42)

Os poemas se carregam de sentido, se dilatam nessas palavras longas,
elásticas e se acentuam numa tensão extrema, pois elas possuem uma existência
palpável, corporal, dando - lhes força definitiva e aos personagens às vezes construídos
pelo poeta, uma existência propriamente física para quem os lê. A grande lição da
poesia de Drummond é não pretender dar exemplo de nada.
Drummond deixou rastros que apontam para muitos caminhos. Nesses
caminhos pode-se encontrar o poeta que destrói e constrói com suas palavras. Claro
Enigma é uma espécie de síntese de sua poesia, purificado e sóbrio, onde, nesse jogo
de palavras o precário expressa na existência do homem.
A representação consciente da memória, presente de forma explícita em
Claro Enigma, é substituída pela tradição. Toda a produção de Carlos Drummond de
Andrade expõe, de várias formas, uma atividade lúdica da razão, e registra o abalo
que o passado exerce sobre a consciência, corroborando a sensação de descaso em
relação ao conhecimento adquirido.
Os versos de Carlos Drummond de Andrade são de um sujeito ativo, que
manifesta a vontade ardente de ver e de fazer ver, de um poeta de vasto sentimento
pelo mundo, pelas pessoas, por sua terra natal e pela memória, poeta do sensível,
poeta do obstáculo, poeta ativo, não um poeta livre e assujeitado, pois, é assim que,
a perfeição do verbo que se traduz em Claro Enigma, se compreende então porque é
uma arte universal. O autor que se segue resume o que estamos afirmando:
Não acredito em sujeitos livres nem em sujeitos assujeitados.
Sujeitos livres decidiriam a seu bel- prazer o que dizer numa
situação de interação. Sujeitos assujeitados seriam apenas
um ponto pelo qual passariam discursos prévios. Acredito em
sujeitos ativos, e que sua ação se dá no interior de sistemas em
processo (POSSENTI, 1996, p. 37).
Entretanto a nossa sensibilidade não pode descartar nenhuma das percepções
do dividir do poeta, como nenhuma de tantas outras sínteses que pretendem
apanhar o “sentido do ser poeta”, da palavra poética ou do fazer poesia. E para encerrarmos
basta esta citação que exprime com soberania o que é poetar: “E talvez,
enfim, a cisão, a clivagem e a busca de unidade possam ser expressas neste verso:
E com todo esse pus, faz um poema puro” (SANT’ ANNA,1984,306).

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond. Claro Enigma. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte.7 ed. São Paulo: Ática, 2003.
LEITÃO, Eliane Vasconcellos. A mulher na língua do povo. 2 ed. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.
POSSENTI, S. O sujeito fora do arquivo: as múltiplas faces da linguagem. Brasília:
UNB,1996.
SANT’ ANNA, Affonso Romano. Drummond: gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia,
1972.
______. O canibalismo amoroso: São Paulo: Brasiliense, 1984

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