quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Estudos sobre a obra A Hora da Estrela - Clarice Lispector


A Hora da Estrela, de Clarice Lispector
 Estou postando aqui  estudos e análises da obra A hora da Estrela para você. ;Para baixar o livro A Hora da Estrela clique aqui


Assista ao filme A Hora da Estrela  clicando aquihttp://www.youtube.com/watch?v=376JgN-2cEc&noredirect=1





Análise da obra
A hora da estrela é também uma despedida de Clarice Lispector. Lançada pouco antes de sua morte em 1977, a obra conta os momentos de criação do escritor Rodrigo S. M. (a própria Clarice) narrando a história de Macabéa, uma alagoana órfã, virgem e solitária, criada por uma tia tirana, que a leva para o Rio de Janeiro, onde trabalha como datilógrafa.

É pelos olhos do narrador e através de seu domínio da palavra que a existência e a essência são expostas como interrogações. Tal presença masculina retrata um universo de fragmentos, onde o ser humano não é respeitado, mas desacreditado nessa reconstrução de uma realidade mutilada.

Em A hora da estrela Clarice escreve sabendo que a morte está próxima e põe um pouco de si nas personagens Rodrigo e Macabéa. Ele, um escritor à espera da morte; ela, uma solitária que gosta de ouvir a Rádio Relógio e que passou a infância no Nordeste, como Clarice. 

A despedida de Clarice é uma obra instigante e inovadora. Como diz o personagem Rodrigo,estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. É Clarice contando uma história e, ao mesmo tempo, revelando ao leitor seu processo de criação e sua angústia diante da vida e da morte.

Estrutura da obra

É uma obra composta de três histórias que se entrelaçam e que são marcadas, principalmente, por duas características fundamentais da produção da autora: originalidade de estilo e profundidade psicológica no enfoque de temas aparentemente comuns.

A linguagem narrativa de Clarice é, às vezes, intensamente lírica, apresentando muitas metáforas e outras figuras de estilo. Há, por exemplo, alguns paradoxos e comparações insólitas, que realmente surpreendem o leitor. E também é peculiaridade da autora a construção de frases inconclusas e outros desvios da sintaxe convencional, além da criação de alguns neologismos.

Foco narrativo

Quanto à linguagem, o livro a apresenta fartamente, em todos os momentos em que o narrador discute a palavra e o fazer narrativo. Interessante notar que, antes de iniciar a narrativa e logo após a 'Dedicatória do autor', aparecem os treze títulos que teriam sido cogitados para o livro.

O recurso usado por Clarice Lispector é o narrador-personagem, pois conforme nos faz conhecer a protagonista, também nos faz conhecê-lo. Ele escreve para se compreender. É um marginalizado conforme lemos: "Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar pra mim na terra dos homens". Quanto à sua relação com Macabéa, ele declara amá-la e compreendê-la, embora faça contínuas interrogações sobre ela e embora pareça apenas acompanhando a trajetória dela, sem saber exatamente o que lhe vai acontecer e torcendo para que não lhe aconteça o pior.

Macabéa, a protagonista, é uma invenção do narrador com a qual se identifica  e com ela morre. A personagem é criada de forma onisciente (tudo sabe) e onipresente (tudo pode). Faz da vida dela um aprendizado da morte. A morte foi a hora de estrela.

O enredo de A hora da Estrela não segue uma ordem linear: há flashbacks iluminando o passado, há idas e vindas do passado para o presente e vice-versa.

Além da alinearidade, há pelo menos três histórias encaixadas que se revezam diante dos nossos olhos de leitor:

1. A metanarrativa - Rodrigo S. M. conta a história de Macabéa: Esta é a narrativa central da obra: o escritor Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa, uma nordestina que ele viu, de relance, na rua.

2. A identificação da história do narrador com a da personagem - Rodrigo S.M. conta a história dele mesmo: esta narrativa dá-se sob a forma do encaixe, paralela à história de Macabéa. Está presente por toda a narrativa sob a forma de comentários e desvendamentos do narrador que se mostra, se oculta e se exibe diante dos nossos olhos. Se por um lado, ele vê a jovem como alguém que merece amor, piedade e até um pouco de raiva, por sua patética alienação, por outro lado, ele estabelece com ela um vínculo mais profundo, que é o da comum condição humana. Esta identidade, que ultrapassa as questões de classe, de gênero e de consciência de mundo, é um elemento de grande significação no romance, Rodrigo e Macabéa se confundem.

3. A vida de Macabéa - O narrador conta como tece a narrativa.

Narrador e protagonista, inseridos em uma escrita descontínua e imprevisível, permitem ao leitor a reflexão sobre uma época de transição, de incoerência, como um movimento em busca de uma nova estruturação da obra literária similar à insegurança, à ansiedade e ao sofrimento. O tema é oferecido, socializando a possibilidade de ruptura.

O narrador revela seu amor pela personagem principal e sofre com a sua desumanização, mas, também, com a própria tendência em tornar-se insensível.

O foco narrativo escolhido é a primeira pessoa. O narrador lança mão, como recurso, das digressões, o que, aspectualmente parece dar à narrativa uma característica alinear. Não se engane: ele foge para o passado a fim de buscar informações.

Espaço / Tempo

O Rio de Janeiro é o espaço. Ocorre que o espaço físico, externo, não importa muito nesta história. O "lado de dentro"das criaturas é o que interessa aos intimistas.

Pelos indícios que o narrador nos oferece, o tempo é época em que Marylin Monroe já havia morrido - possivelmente a década de 60 em seu fim ou a de 70 em seus começos - mas faz ainda um grande sucesso como mito que povoa a cabeça e os sonhos de Macabéa.

Embora a história de Macabea seja profundamente dramática, a narrativa é toda permeada de muito humor e ironia. O próprio nome da protagonista constitui-se numa grande ironia (tragicomédia).

Personagens        

Macabéa: Alagoana, 19 anos e foi criada por uma tia beata que batia nela (sobre a cabeça, com força); completamente inconsciente, raramente percebe o que há à sua volta. A principal característica de Macabéa é a sua completa alienação. Ela não sabe nada de nada. Feia, mora numa pensão em companhia de 3 moças que são balconistas nas Lojas Americanas (Maria da Penha, Maria da Graça e Maria José). Macabéa recebe o apelido de Maca e é a protagonista da história. Possivelmente o nome Macabéa seja uma alusão aos macabeus bíblicos, sete ao todo, teimosos, criaturas destemidas demais no enfrentamento do mundo; a alusão, no entanto, faz-se pelo lado do avesso, pois Macabéa é o inverso deles.

Olímpico: Olímpico se apresentava como Olímpico de Jesus Moreira Chaves. Trabalhava numa metalúrgica e não se classificava como "operário": era um "metalúrgico". Ambicioso, orgulhoso e matara um homem antes de migrar da Paraíba. Queria ser muito rico, um dia; e um dia queria também ser deputado. Um secreto desejo era ser toureiro, gostava de ver sangue.

Rodrigo S. M.: Narrador-personagem da história. Ele tem domínio absoluto sobre o que escreve. Inclusive sobre a morte de Macabéa, no final.

Glória: Filha de um açougueiro, nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória rouba Olímpico de Macabéa. Tem um quê de selvagem, cheia de corpo, é esperta, atenta ao mundo. 

Madame Carlota: É a mulher de Olaria que porá as cartas do baralho para "ler a sorte"de Macabéa. Contará que foi prostituta quando jovem, que depois montou uma casa de mulheres e ganhou muito dinheiro com isso. Come bombons, diz que é fã de Jesus Cristo e impressiona Macabéa. Na verdade, Madame Carlota é uma enganadora vulgar.

Outras personagens: As três Marias que moram com Macabéa no mesmo quarto, o médico que a atende e diagnostica a gravidade da tuberculose e o chefe, seu Raimundo, que reluta em mandá-la embora.

Enredo

Macabéa (Maca) foi criada por uma tia beata, após a morte dos pais quando tinha dois anos de idade. Acumula em seu corpo franzino a herança do sertão, ou seja, todas as formas de repressão cultural, o que a deixa alheia de si e da sociedade. Segundo o narrador, ela nunca se deu conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável.

Ignorava até mesmo porque se deslocara de Alagoas até o Rio de Janeiro, onde passou a viver com mais quatro colegas na Rua do Acre. Macabéa trabalha como datilógrafa numa firma de representantes de roldanas, que fica na Rua do Lavradio. Tem por hábito ouvir a Rádio Relógio, especializada em dizer as horas e divulgar anúncios, talvez identificando com o apresentador a escassez de linguagem que a converte num ser totalmente inverossímil no mundo em que procura sobreviver. Tinha como alvo de admiração a atriz norte-americana Marilyn Monroe, o símbolo social inculcado pelas superproduções de Hollywood na década de 1950.

Macabéa recebe de seu chefe, Raimundo Silveira, por quem ela estava secretamente apaixonada, o aviso de que será despedida por incompetência. Como Macabéa aceita o fato com enorme humildade, o chefe se compadece e resolve não despedi-la imediatamente.

Seu namorado, Olímpico de Jesus, era nordestino também. Por não ter nada que ajudasse Olímpico a progredir, ela o perde para Glória, que possuía atrativos materiais que ele ambicionava.

Glória, com certo sentimento de culpa por ter roubado o namorado da colega, sugere a Macabéa que vá a uma cartomante, sua conhecida. Para isso, empresta-lhe dinheiro e diz-lhe que a mulher, Madame Carlota, era tão boa, que poderia até indicar-lhe o jeito de arranjar outro namorado. Macabéa vai, então, à cartomante, que, primeiro, lhe faz confidências sobre seu passado de prostituta; depois, após constatar que a nordestina era muito infeliz, prediz-lhe um futuro maravilhoso, já que ela deveria casar-se com um belo homem loiro e rico - Hans - que lhe daria muito luxo e amor.

Macabéa sai da casa de Madame Carlota 'grávida de futuro', encantada com a felicidade que a cartomante lhe garantira e que ela já começava a sentir. Então, logo ao descer a calçada para atravessar a rua, é atropelada por um luxuoso Mercedes Benz amarelo. Esta é a hora da estrela de cinema, onde ela vai ser "tão grande como um cavalo morto". 

Ao ser atropelada, Macabéa descobre a sua essência: “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci”. Há uma situação paradoxal: ela só nasce, ou seja, só chega a ter consciência de si mesma, na hora de sua morte. Por isso antes de morrer repete sem cessar:“Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou”. 

Por ter definido a sua existência é que Macabéa pronuncia uma frase que nenhum dos transeuntes entende: “Quanto ao futuro.” (...) “Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.”

Com ela morre também o narrador, identificado com a escrita do romance que se acaba.

A Hora da Estrela

Clarice Lispector
Roteiro  de  Leitura
Cristiane Bastos
BIOBIBLIOGRAFIA DE LISPECTOR
“Nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchetchelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.
Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram,
e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife. (...) E nasci para escrever. Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo.”
(Waldman,1983. p. 9-10)

Clarice nasceu em 1925, em uma aldeia ucraniana. Aos dois meses de idade, veio com a família para o Brasil. Morou em Alagoas,
Pernambuco, mas passou a infância no Recife. Lá, a autora cursou a escola primária e ginasial. Quando aprendeu a ler aos sete anos de idade, descobriu que os livros eram escritos por autores e o queria ser também. Transferiu-se para o Rio de Janeiro aos doze anos
e lá estudou Direito, chegando a trabalhar como redatora e, anos mais tarde, jornalista. Forma-se em 1944, ano em que publica a sua primeira obra, Perto do Coração Selvagem. Olga Borelli, sua grande amiga, conta em depoimento que o método utilizado para
escrever seu primeiro livro perduraria para sempre na vida de Lispector: “Clarice tomava notas onde quer que estivesse. Na
lanchonete, em guardanapos; no cinema, no maço de cigarros. Clarice ia construindo suas obras fragmentariamente.” Casou-se,
nessa mesma época, com um diplomata brasileiro (Maury Gurgel Valente) e, por isso, afastou-se durante longos períodos do país
que tanto amava. Aos dezenove anos já se encontrava em Nápoles, Itália. Mesmo depois de ganhar o prêmio “Graça Aranha” por
seu primeiro romance, não se considerava uma escritora profissional, insistia que era uma escritora amadora. Com o marido, teve
dois filhos: Pedro e Paulo. Separa-se de Gurgel Valente em 1960, ano em que retorna para o Brasil e passa a morar no Rio de Janeiro.
Em 1976, a escritora recebe um convite inusitado: representar o Brasil num Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Colômbia.
Sua participação lá resumiu-se à leitura de seu conto “O Ovo e a Galinha”, o qual acreditava que ninguém havia entendido. Faleceu
no Rio de Janeiro em 1977. Suas obras publicadas foram:
1944 – Perto do Coração Selvagem (romance)
1946 – O Lustre (romance)
1949 – A Cidade Sitiada (romance)
1952 – Alguns Contos (contos)
1960 – Laços de Família (contos)
1961 – A Maçã no Escuro (romance)
1964 – A Paixão Segundo G.H. (romance)
1964 – A Legião Estrangeira (contos)
1969 – Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (romance)
1973 – Água Viva (romance)
1974 – A Via Crucis do Corpo (contos)
1977 – A Hora da Estrela (novela)
Ainda, de Lispector, há publicado: Um Sopro de Vida (romance, 1978), A Bela e a Fera (contos, 1979), Felicidade Clandestina
(contos, 1971), A imitação da Rosa (contos, 1973),  Onde Estivestes de Noite (contos, 1974), De Corpo Inteiro (entrevistas, 1975),
Para não Esquecer (crônicas, 1978), A Descoberta do Mundo (crônicas), O Mistério do Coelho Pensante (infantil, 1969), A
Mulher que Matou os Peixes (infantil, 1969), A Vida Íntima de Laura (infantil, 1974), Quase de Verdade (infantil, 1978) e Como
nasceram as Estrelas (infantil).

CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL
Por causa da quebra da Bolsa de Nova York em 1929 (ano em que Lispector muda-se com os pais para Recife, aos quatro anos de
idade), a economia mundial sofre sérias conseqüências, e não é diferente para o Brasil. O principal produto de exportação brasileiro,
o café, o qual sustentava a República do “café-com-leite”, também entra em crise, promovendo o fim das oligarquias rurais. A
Revolução de Outubro depõe Washington Luís e coloca Getúlio Vargas no poder, o mesmo que instalaria a ditadura do Estado Novo
no Brasil em 1937.
O mundo também está em crise. 1939 é o momento da Segunda Guerra Mundial, do “triste mundo fascista”, deplorado por Drummond.
Além deste escritor, também despontam no cenário brasileiro Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Dionélio Machado, Érico
Veríssimo. A literatura social de 30 amadurece a proposta de uma “linguagem brasileira” dos modernistas de 22.
Em, 1945, com o fim da Segunda Guerra, os militares destituem Vargas do poder, o qual retornaria em 1951, quando sua política
nacionalista e populista já não agradava a classe dominante e o mesmo suicida-se em 1954. A grave crise política gerada com a
sua morte elege Juscelino Kubitschek para a presidência da República. O desenvolvimento industrial e o intenso crescimento
urbano (“cinqüenta anos em cinco”) traz consigo o grande problema das favelas e a intensa imigração de nordestinos para o sul.
Jânio Quadros assume em 1961, mas fica apenas sete meses no governo, renunciando para João Goulart assumir a presidência
pelo PTB, quando o presidencialismo é substituído pelo parlamentarismo. Em 1963, porém, Goulart recupera poderes
presidencialistas e as reformas sociais são intensificadas, a inflação chega a quase 100% e as diferenças sociais são aguçadas.
A crise, então, explode. Em nome da eliminação da subversão e corrupção, em 1964 o golpe militar retira a esquerda do poder. São
extintos os partidos políticos antigos e criados dois novos: o MDB (oposição) e a ARENA (governo). Em 1967, Costa e Silva
sucede Castelo Branco. Uma crise no Congresso provoca o Ato Institucional número 5 (AI5), o qual praticamente anula a
Constituição de 67, fecha o Congresso, não permite mais a garantia de habeas corpus, entre outras atrocidades. Em 1969, Medici
substitui o presidente anterior por ser este vítima de trombose cerebral. Até 1974 ocorrem os movimentos de guerrilha rural e
urbana, violenta repressão dos órgãos de segurança, jornais e revistas são censurados e a imagem do “milagre econômico
brasileiro” é divulgada. Mas tal milagre confirma-se ilusório e em 1974 o MDB consegue ampla vitória nas eleições parlamentares.
Ernesto Geisel assume a presidência, promovendo uma política de “distensão”, que levasse o Brasil a uma estrutura democrática.
Nessa época, a literatura e a crítica, submersas numa ressaca formalista durante a época da Ditadura, renascem. Em 1979,
Figueiredo promete “fazer deste país uma democracia” e decreta uma anistia política.
As Artes
Ao fim do Estado Novo, aparecem as figuras de Guimarães Rosa, Rubem Braga, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan e Clarice
Lispector, enriquecendo a prosa brasileira tanto em seu regionalismo como nas crônicas e contos de espaço urbano. A poesia
também inova. Intensificando a busca por uma nova linguagem, surge a geração de 1948 com a revista Panorama, a qual publica
dezenas de novos poetas, dentre eles Alphonsus de Guimaraens Filho, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir Campos, José Paulo
Paes, Paulo Bonfim e João Cabral de Melo Neto, maior destaque de sua geração. Essa renovação literária tem como preocupação
principal a própria linguagem, já que os escritores, agora, são menos exigidos social e politicamente em relação à geração anterior.
Nessa fase, surge o teatro moderno brasileiro no Rio de Janeiro, com o grupo “Os Comediantes” e com a montagem da peça Vestido
de Noiva de Nélson Rodrigues. A intelectualidade brasileira também emerge, com grupos universitários se formando principalmente
em São Paulo e no Rio de Janeiro. O rádio é o meio de comunicação de massa mais importante da época e atingirá seu período áureo
na década de 40.
Na década de 60, aparece na literatura o Concretismo, movimento de vanguarda condizente com a época (o imediatismo da
comunicação). Na música, é criada a “Bossa Nova”, “música brasileira em ritmo de exportação” (CAMPADELLI & ABDALA JR.,
s/d, p. 99). Na época João Goulart, o panorama artístico brasileiro é bastante prolífero. Surgem o Cinema Novo, de Gláuber Rocha,
o Teatro de Arena de Oduvaldo Viana Filho e Gianfrancesco Guarnieri e o Teatro Oficina de José Celso. Publicam-se muitas obras
literárias e escritores como Jorge Amado e Érico Veríssimo podem até mesmo viver da literatura. O período militar sufoca as artes
brasileiras, que procurariam readquirir seu devido lugar com a posse de Figueiredo.

ENREDO DA OBRA
Antes de iniciar este tópico, é preciso que saibamos que as obras de Clarice dificilmente têm um enredo, um começo, meio e fim,
como os cânones narrativos tradicionais. A própria autora nunca soube explicar os seus processos de criação. “É um mistério”, dizia
ela. “Quando penso numa história, eu só tenho uma vaga visão do conjunto, mas isso é coisa de momento, que depois se perde. Se
houvesse premeditação, eu me desinteressaria pelo trabalho.” (CAMPADELLI & ABDALLA JR.). Mais do que histórias, os seus
livros contêm impressões. Por isso, consciente de sua condição como (não-)escritora, Clarice dizia-se uma “sentidora, intuitiva”.
A Hora da Estrela foi o último livro da autora publicado em vida. O narrador do romance é Rodrigo S. M., escritor que ironiza,
através de várias contínuas no texto, o estilo de narrativa que ele próprio utiliza. Dessa forma, ele se coloca como uma das
personagens centrais do romance, já que dialoga o tempo todo com o leitor sobre o estilo de sua narrativa.
Sua personagem-protagonista é Macabéa (Maca), alusão irônica aos sete macabeus, personagens bíblicos. Após a morte de seus
pais, quando tinha dois anos de idade, Maca fora criada por uma tia beata, a qual nela muito batia. “Acumula em seu corpo franzino,
‘herança do sertão’, todas as formas de repressão cultural, o que a deixa alheada de si e da sociedade. Dessa forma, segundo o
narrador, ela nunca se deu ‘conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável’ ”. (idem)
De Alagoas, a protagonista muda-se para o Rio de Janeiro, onde passa a viver com mais quatro colegas de quarto (todas Marias) na
rua do Acre. Trabalhava como datilógrafa, profissão da qual tinha muito orgulho. Era virgem, e nunca, até Olímpico de Jesus,
possuíra um namorado. Este, também nordestino, procurava a ascensão social, assim como ela tinha o sonho de ser uma “estrela de
cinema” (daí o título do livro). Por não terem a ambição em comum, Macabéa perde-o para sua amiga de trabalho (e única), Glória, a
qual possuía os atrativos materiais que ele sonhava.
A busca de identidade da personagem-protagonista processa-se quando ela se observa diante do espelho. A primeira imagem que
vê é a do autor, Rodrigo S. M., majestático e presente em todo o texto, moldando a personagem à sua imagem e solidão. Há, também,
outras vezes em que Maca se olha no espelho. Em uma delas, assim que rompera com Olímpico, ela, diante do espelho, passa em
seus lábios um batom vermelho como busca da identidade desejada: Marilyn  Monroe, símbolo social e sexual inculcado pelas
superproduções de Hollywood da década de 50.
Por conselho de Glória, Macabéa vai procurar ajuda em uma cartomante, sendo esta a única vez em que se dera conta da vida
medíocre que levava; fora preciso Madame Carlota dizer isso a ela. Reforçando a idéia de “nostalgia do futuro”, a vidente prevê que
a vida da nordestina mudaria a partir do momento em que saísse de sua casa. Esta também foi a primeira vez em que Macabéa
encorajou-se para ter esperança. Um homem estrangeiro, alourado, “de olhos azuis, ou verdes, ou castanhos, ou pretos” (p. 77)
apareceria em sua vida, casar-se-ia com ela. Ironicamente, a protagonista sai da casa de Madame Carlota e é atropelada por um
Mercedes Benz. Consolida-se a “hora da estrela” de cinema, quando ela vai ser “tão grande como um cavalo morto”: ferida, a
personagem vomita uma “estrela de mil pontas”. Com ela, morre também o narrador, identificado com a escrita do romance, que neste
instante se acaba.

AS PERSONAGENS
Com um falso livre-arbítrio, o narrador da narrativa decide que serão “uns sete (...) e eu sou um dos mais importantes deles, é claro.”
(p. 13)
Macabéa: nordestina (alagoana) que migra para o Rio de Janeiro, é a protagonista da narrativa. Datilógrafa, “toda fome e deserto”,
Macabéa (Maca, como o narrador passa a chamá-la no decorrer da história) tem o heroísmo dos seus irmãos bíblicos, os sete
macabeus. Seu nome é grafado quase como escreve-se “maçã”, símbolo da tentação, só que, como não poderia deixar de ser, sem
os adornos da palavra indicadora da fruta. A personagem principal do livro mal tem consciência de existir, mas tem um desejo: tornarse estrela de cinema, e admira com certa dose de melancolia Marylin Monroe e Greta Garbo. No fim da trama, de certa forma, acaba
conseguindo realizar o seu sonho: a hora da estrela condiz com o momento de sua morte. Dialogando intertextualmente com Os
Sertões de Euclides da Cunha, a autora (ou o narrador?) chega a comentar que “o sertanejo é antes de tudo um paciente”(p. 79)
Olímpico de Jesus: imigrante nordestino assim como Macabéa, Olímpico trabalhava como operário numa metalúrgica e dizia-se
“metalúrgico”. Possuidor de um dente de ouro, o qual muito estimava por ser demonstrador de poder, sonhava em um dia ser
deputado, mas seu desejo secreto era ser toureiro. Procurava ascensão social a qualquer preço, seja do roubo ou do crime de morte.
“Para mim a melhor herança é mesmo muito dinheiro. Mas um dia vou ser muito rico, disse ele que tinha uma grandeza demoníaca:
sua força sangrava.” Torna-se o namorado da protagonista no decorrer da trama.
Glória: amiga de trabalho (e a única) de Macabéa, possuía todo o charme e “carnes” que a outra não tinha. “Carioca da gema” (razão
forte pela qual Olímpico atrai-se por ela), rouba o namorado da amiga. Na página 59 do livro há uma ótima descrição desta
personagem: “Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do
sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas
raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que significava um degrau a mais para Olímpico. (...) apesar de
feia, Glória era bem alimentada. E isso fazia dela material de boa qualidade.”
“Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque não se lavava muito, com certeza. Oxigenava os pêlos das pernas
cabeludas e das axilas que não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?” (p. 63)
Seu Raimundo Silveira: chefe da firma de representante de roldanas, é o responsável pela demissão de Macabéa, pois ela errava
demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel.
A tia: beata que cria Maca após a morte da mãe menina, quando tinha dois anos de idade. “Muito depois fora com a tia beata, única
parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça
porque o cocoruto de uma cabeça deveria ser, imaginava a tia, um ponto vital. (...) Batia mas não era somente porque ao bater gozava
de grande prazer sensual — a tia não se casara por nojo — é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um
dia a ser  uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem.” (p. 28)
As quatro Marias: Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas eram as colegas de quarto da nordestina. Uma
delas trabalhava vendendo produtos de beleza Coty.
Madama Carlota: a cartomante que prevê o futuro reluzente de Maca. Trata-a com um carinho que ninguém jamais dirigiu à
protagonista. “Era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de
ruge brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio quebrado.”(p. 72). Durante a consulta, a cartomante comia um bombom atrás do
outro compulsivamente. Trabalhara na zona e, sem poder ser diferente da realidade que conhecemos, sustentara um cafetão, a quem
amava. Tornara-se cafetina quando começara a engordar e perder os dentes. O narrador coloca Madama Carlota como o ponto alto
da existência de Macabéa, já que seria a informante do seu futuro, que mudaria (e realmente mudou) a partir do momento em que
Maca saísse da casa da Madama.
O médico: procurado por Maca, quando, pela primeira vez na vida, fez a audácia de procurar um médico (barato) após o recebimento
do salário. “Muito gordo e suado, tinha um tique nervoso que o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios. O
resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes a chorar. (...) não tinha objetivo nenhum. A medicina
era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor à profissão nem a doentes. Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia.
Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta à qual também não
pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro
para fazer exatamente o que queria: nada.” (ps.67, 68)
O rico ocupante do Mercedez Benz: dono do carrão amarelo, alourado e estrangeiro, é quem vai realizar, de certa forma, as previsões
de Madama Carlota.
O narrador: também uma personagem, Rodrigo S. M., a questão do narrador será melhor discutida logo a seguir.EDUCACIONAL

FOCO NARRATIVO
Dizer se o foco narrativo de  A Hora da Estrela  é em primeira ou terceira pessoa é uma questão não tão simples de ser respondida,
já que é um dos pontos mais inovadores e estilisticamente extraordinários do livro. A autora inventa um narrador (que, portanto, é
também uma personagem e se assume durante a narrativa como tal) para contar a história de Macabéa. Assim sendo, o narrador,
apesar de fazer parte da história, não conta uma trama que acontecera com ele, e sim, com a sua personagem inventada, que poderia
ser real. A narrativa desvenda a sua problemática interior e à medida que nos faz conhecer a protagonista, também nos mostra (e vai
descobrindo) a sua própria identidade.
“A ação dessa história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização em objeto. Sim, e talvez encontre
a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó.” (p. 20). O narrador é onipotente, pois cria um destino. É onisciente, pois sabe
tudo a respeito de suas personagens, apesar de não conhecer a verdade inteira, já que se mostra no ato de inventar. Hesita, pois não
conhece o final da história. Por sentir-se culpado em relação à protagonista, suspende-lhe a morte por páginas e páginas. Quando,
finalmente, decide-se pelo “gran finale”, volta-se contra si mesmo: “Até tu, Brutus?” (p. 85). Sá, em sua obra anteriormente citada,
comenta que “Clarice sabe que todo narrador inventa o mundo à sua imagem e semelhança e o ‘ele’ ou ‘ela’ das fábulas é sempre um
disfarce do ‘eu’ do escritor. O narrador se escreve todo através de Macabéa, por entre seus próprios espantos. Sua onipotência se
estende ao leitor, com o qual dialoga constantemente. A função fática é uma tônica dessa narrativa.” (p.212) Tanto é assim, que o
narrador morre quando morre Macabéa. E morre também Clarice Lispector. “As coisas são sempre vésperas e se ela não morre agora,
está como nós na véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência.” (p. 84).
O narrador precisa escrever para poder se compreender. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a
escrever.” (p.11) Essa é a dor que atravessa a narrativa, já indicada pela dor de dentes que perpassa a história, a qual é “uma melodia
sincopada e estridente — é a minha própria dor, eu carrego o mundo e a falta de felicidade. Felicidade. Nunca vi palavra mais doida,
inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes.” (p. 12). A tarefa do escritor é “procurar a palavra no escuro”. E ele não
pode parar de escrever, já que “ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino”. Assim, vai se descobrindo
ao longo da narrativa. Este escritor só se livra de ser um acaso na vida pelo fato de escrever. Não tem classe social, “ironicamente,
denuncia o escritor burguês que defende a necessidade da literatura engajada, faz-se pobre, dorme pouco, deixa a barba por fazer,
anda nu ou em farrapos, abstém-se do sexo e do futebol.” (Sá, 1979, p. 214) Como ele mesmo diz, “escrevo porque sou um
desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria
simbolicamente todos os dias.” (p. 21).
É facilmente percebível, portanto, que a questão do foco narrativo em  A Hora da Estrela  é um dos pontos altos da novela. E se “os
modos de articulação em uma narrativa são ilimitáveis porque ilimitável é a combinatória de signos possível no engendramento da
teia ficcional, e a postura do narrador, em relação às personagens, amplia ainda mais essa possibilidade criativa, oferecendo através
de seu ângulo de visão uma fresta por onde se pode descortinar o mundo, o seu mundo” (KADOTA, s/d, p.71); a possibilidade
criativa da narrativa, além de ilimitável, é surpreendente e inovadora, demonstrando a bela e sensível capacidade inventiva de
Lispector.

GÊNERO LITERÁRIO E MATERIAL DA NARRATIVA
Como anteriormente já foi citado, a narrativa tem um tom de novela, não apenas pelo número de personagens, mas também porque
a descrição e a narração ocupam posição privilegiada na obra.
Uma “história exterior e explícita”, A Hora da Estrela não deixa de ser um relato, um registro de fatos. O narrador, a contra-gosto,
apaixonou-se por fatos, mas cansar-se-á deles por serem banais e definíveis. O “sussurro”, porém, é o que predomina nos interstícios
da narrativa: “Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona.” (p. 31).
A pergunta que, de certa forma, já havia sido feita em Perto do Coração Selvagem repete-se: “Será mesmo que a ação ultrapassa
a palavra?” (p. 22) Para Lispector, por ser o material básico da escritura a palavra, ela domina qualquer narrativa e sobrepõe-se a
qualquer fato. “Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que
ultrapassa palavras e frases.” (p. 14). E para o narrador, é como se as palavras tivessem realmente poder sobre a narrativa, como se
ele fosse impotente em relação à história que irá contar: “Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira,
respira, respira.” (p. 13)EDUCACIONAL

TEMPO E ESPAÇO
O tempo da narrativa se mostra cronológico e linear, apesar de
embaraçar o narrador, que preferiria começar pelo fim: “Só não
inicio pelo fim que justificaria o começo — como a morte parece
dizer sobre a vida — porque preciso registrar os fatos
antecedentes.” Depois das muitas divagações do início do
livro, em que o narrador mais se narra do que faz progredir a
ação narrativa, enfim ele inicia pelo meio, quando a moça
nordestina recebe o aviso de despedida do emprego e vai
refugiar-se no banheiro. Assim, o narrador projeta respeitar o
tempo do relógio, como se a narrativa fosse sendo construída
simultaneamente à leitura, intuito este que é marca
extremamente clariceana, não apenas nessa obra.
A narrativa se passa em um ambiente urbano. “Cidade toda
feita contra ela” (p. 15), Macabéa, O Rio de Janeiro é o cenário
das fracas aventuras da protagonista alagoana. Dentre ruas
cariocas, o quarto barato que as moças compartilham entre si,
a casa da cartomante, o lugar do trabalho, o banheiro, a história
se desenvolve. Como cita Sá em sua obra A escritura de Clarice
Lispector, “nesse espaço há espelhos comidos pela ferrugem,
bares, a Rádio Relógio, cinemas baratos, Jardim Zoológico,
automóveis de luxo Mercedez Benz, patrocínio de refrigerante
mais popular, que ‘patrocinou o último terremoto em Guatemala’
(HE, p.29), Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para
trabalhar. Com a raridade de um galo ‘cocoricando’ de manhã
e o cais do porto para espiar, no Domingo, um ou outro
prolongado apito de navio cargueiro.” Assim, pode-se perceber
os contrastes (não apenas sociais) existentes em metrópoles
brasileiras e o desalento de um imigrante nordestino que busca
uma vida melhor no sul também pela ambientação da narrativa.

ANÁLISE DA OBRA
“Macabéa, personagem central de A Hora da Estrela de
Clarice Lispector, é uma retirante nordestina que vai tentar
vida nova na cidade grande (Rio de Janeiro). Filha do sertão,
nasceu e permaneceu raquítica. Anônima, desajeitada,
desgarrada do mundo, tudo nela inspira descompasso e
compaixão. Seus dias dividem-se entre o trabalho como
datilógrafa e o pretendente, também nordestino, Olímpico de
Jesus. As madrugadas, para ela, são embaladas pelos sons
regulares da Rádio Relógio: hora certa, anúncios, pouca ou
nenhuma música. (...) É por intermédio dessa escuta, entretanto,
que Macabéa vai lentamente construindo um certo
reconhecimento sobre si e sobre o mundo.” (AQUINO, 2000,
p. 205) A rádio realmente desperta na moça uma avidez por
conhecimento, o que fazia com que sua vida se tornasse menos
banal, mais importante.
A Hora da Estrela apresenta certos momentos que não podem
deixar de ser comentados. Comecemos pelo título:
A HORA DA ESTRELA
A culpa é minha
ou
A hora da estrelas
ou
Ela que se arrange
ou
O direito ao grito
.quanto ao futuro.
ou
Lamento de um blue
ou
Ela não sabe gritar
ou
Uma sensação de perda
ou
Assovio no vento escuro
ou
Eu não posso fazer nada
ou
Registro dos fatos antecedentes
ou
História lacrimogênica de cordel
ou
Saída discreta pela porta dos fundos
A obra apresenta doze títulos que se desdobram e representam
algum aspecto da história que logo mais será narrada. Em
“.quanto ao futuro.”, por exemplo, o título é precedido e
seguido por ponto, isso porque o futuro da história depende
única e exclusivamente do seu narrador (Rodrigo S. M.), que
determina com um “falso livre-arbítrio” o destino das
personagens, sendo ele próprio uma das mais importantes. É
“uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de
silêncio e de chuva caindo”, como diria o próprio narrador,
apesar de a história não ter esse aspecto temporal tão bem
definido como ele nos (leitores) dá a entender que teria.
O material básico em que se sustenta a narrativa é a palavra,
que se agrupa em frases, com um sentido secreto. “O escritor
renuncia à transfiguração própria da ficção e não enfeita a
palavra (não utiliza “termos suculentos” como “adjetivos
esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios
que atravessam agudos o ar em vias de ação”), pois sua
personagem é uma pobre  e esfomeada moça nordestina.” (SÁ,
1979, p. 97). Dessa forma, subentende-se que se pode ler, no
questionamento contínuo a que a escritora submete a
linguagem em geral e a da ficção, em particular, uma
desmistificação irônica do narrador do anti-romance moderno
e de seus artifícios.

Apesar de o narrador escrever em fluxo de consciência, tentando embaralhar as coisas, a narrativa é escrita em tempo linear, sendo
o leitor diretamente o seu interlocutor. O leitor é sustentado por suas próprias palavra e “deve embeber-se da jovem como um pano
de chão todo encharcado.”
A morte, declaradamente, foi colocada na narrativa de Rodrigo S. M. como uma personagem não ordinária, ao contrário, como sua
personagem predileta e ele assume a morte de Macabéa como se fosse feita exclusivamente para o leitor: “O final foi bastante
grandiloqüente para a vossa necessidade?”. Sua futura morte também é expressa quando morre a protagonista, mas “por enquanto
é tempo de morangos.” (p.87)
Finalmente, devemo-nos lembrar de que A Hora da Estrela seria um “ponto de articulação” entre as lições realista-naturalistas da
autora e seus poemas em prosa, nos quais tempo, enredo e personagens se desagregam. Esta novela “não só recolhe quase todos
os problemas da narrativa dos outros romances de Clarice Lispector, mas também muitas de suas imagens.” (SÁ, 1979, p. 215).
Assim, saibamos que Clarice produz aquela que seria a última de suas obras publicadas em vida de maneira grandiosa, para que
nunca nos esqueçamos da riqueza e originalidade de seu estilo.

O ESTILO CLARICEANO
As inovações feitas por Clarice Lispector em sua escritura, desde a sua primeira obra publicada, provocaram grande espanto na
crítica e no público da época. Grandes críticos literários chegaram a apontar inúmeras falhas nos romances da escritora, como o fez
Álvaro Lins, em sua obra Os mortos de sobrerressaca, 1963, p. 189: “li o romance duas vezes, e ao terminar só havia uma impressão:
a de que ele não estava realizado, a de que estava completa e inacabada a sua estrutura como obra de ficção.” Sem a freqüência das
estruturas tradicionais dos gêneros narrativos, a narrativa clariceana quebra a ordem cronológica e funde a prosa à poesia.
Uma das inovações de sua linguagem para a literatura brasileira é o fluxo de consciência. Para entendermos o que é isso, seguiremos
a definição de Norman Friedman sobre análise mental, monólogo interior e fluxo de consciência. “O primeiro é definido como um
aprofundamento nos processos mentais da personagem por uma espécie de narrador onisciente; o segundo, um aprofundamento
maior, cuja radicalização desliza para o fluxo de consciência onde a linguagem perde os nexos lógicos e se torna caótica” (KADOTA,
s/d, p. 74). Clarice transitaria pelos três movimentos, apesar de apresentar características mais evidentes de “fluxo de consciência”.
É como se uma câmera fosse instalada na cabeça da personagem, como se pudéssemos acompanhar exatamente o que ela pensa e
da mesma maneira como pensa. Sabemos que o nosso pensamento não é ordenado, e quando se pretende demonstrá-lo de forma
semelhante, acompanhamos sua desordem. Presente e passado, realidade e desejos da personagem (ou narrador) misturam-se na
narrativa, quebrando limites espaço-temporais verossímeis. Joyce e Proust já haviam feito experiências como essa, mas foi Clarice
que introduziu esse estilo no Brasil.
Para Friedman, “a ‘Câmera’ e o ‘Fluxo de Consciência’ são os que mais caracterizam a literatura contemporânea porque neles se
detecta uma subversão ótica tradicional do relato. (...) É um resgate dos pensamentos das personagens ou do narrador na sua forma
primitiva, à medida que surgem, desarticulados, como a própria sintaxe que os apresenta e descontínuos como o mundo que lhes dá
sustentação.” (idem, ps. 74/75).
A organização textual clariceana aproxima-se da rebeldia. Ela, “como James Joyce, como Virginia Woolf, se propôs a essa busca
introspectiva, através de ‘insights’ luminosos, ou de uma escritura pontilhada de minúsculos incidentes descontínuos, que melhor
revelam os conflitos humanos, superando qualquer descrição do narrador ou um encadeamento de fatos, por mais representativos
que se mostrem a um primeiro olhar.” (Kadota, p. 77)
Os textos clariceanos também estão repletos de epifania (revelação). Suas personagens costumam viver momentos epifânicos,
como se tivessem realmente tido uma revelação, desencadeada por qualquer fato banal, e, a partir dela, pudessem ter uma visão mais
aprofundada da vida , das pessoas, das relações humanas. Sobre isso, Cereja e Magalhães comentam :
“De modo geral, esses momentos epifânicos são dilacerantes e dão origem a rupturas de valores, a questionamentos filosóficos e
existenciais, permitindo a aproximação de realidades opostas, tais como nascimento e morte, bem e mal, amor e ódio, matar ou morrer
por amor, seduzir e ser seduzido, etc.” (1995, p. 413)EDUCACIONAL

Apesar de desenvolver, na maioria das vezes, personagens femininas, Clarice extrapola os limites da experiência pessoal da
mulher e seu ambiente familiar. Os temas tratados por ela são universais e essencialmente humanos. Temáticas como as relações
entre o eu e o outro, a falsidade das relações humanas, a condição social da mulher, o esvaziamento das relações familiares e,
sobretudo, da linguagem, são abordadas pela autora intimista e psicológica, mas de forma alguma alienada, como muitos já
chegaram a dizer. Em A Hora da Estrela, por exemplo, a questão da migrante nordestina em uma cidade grande como o Rio de
Janeiro, relações e reflexões existencialistas, a condição e o papel do escritor moderno, entre outras foram abrangidas de forma
estilisticamente original e sensível.
Berta Waldman, em sua obra anteriormente citada, comenta o “silêncio de Clarice”, reflexão que nos vale a pena conferir:
“Entre a palavra e o silêncio, entre o que diz e o que está implícito em seu dizer, situa-se o texto de Clarice. Ler o seu texto é penetrar
nesse âmbito elétrico onde forças opostas se digladiam. (...) Se quisermos saber o que diz o seu texto, devemos interrogar também
o silêncio. Não o silêncio que se situa antes da palavra e que é um querer dizer, mas o outro, o que fica depois dela e que é um saber
que não pode dizer a única coisa que, de fato, valeria a pena ser dita.” (1983, p. 89)
BIBLIOGRAFIA
AQUINO, Julio Groppa. “Conhecimento e mestiçagem: o ‘efeito Macabéa’” in Do Cotidiano Escolar. SP: Summus, 2000.
CAMPADELLI, Samira Youssef & ABDALA JR., Benjamin. Clarice Lispector. Literatura Comentada, s/d.
CEREJA, William Roberto & MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira. SP:Atual, 1995.
KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimulada. O social em Clarice Lispector. 2. ed. S/d., Estação Liberdade.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira através dos Textos. 21. ed., SP: Cultrix. 1999.
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Vozes, Petrópolis: 1979.
WALDMAN, Berta. Clarice Lispector. SP: Brasiliense,

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM A HORA DA ESTRELA

 “Os meus desacertos foram a fonte inevitável da
minha caminhada vã em busca dos êxitos”.
(FÁBIO PIRAJÁ)
  
     INTRODUÇÃO

A Hora da Estrela é o último romance publicado em vida por Clarice Lispector, escrito
em 1977. O processo de escrita de Clarice é sempre original e com um estilo incomparável. A
linguagem da escritora, considerada introspectiva e intimista, despertou o interesse da crítica,
gerando uma imensa gama de interpretações e reflexões acerca de seu estilo narrativo; de questões
filosófico-existencialistas e da representação do universo feminino em suas obras.
Em A Hora da Estrela, Clarice Lispector cria um narrador masculino para contar as
aventuras – ou desventuras - de uma nordestina na grande cidade do Rio de Janeiro. Se em outras
obras de Lispector a mulher aparece representada como protagonista da história e sempre com seus
conflitos interiores, não conseguindo se expressar e nem fazer valer suas vontades que ficam retidas
em um universo imaginário, nessa obra a autora tenta se livrar da introspecção através do narrador
Rodrigo S.M, criando um novo modo de narrar em contraposição a seus hábitos.
Lispector inventa Rodrigo e cria a personagem Macabéa que será revelada aos poucos,
como uma mulher feia, raquítica, sem cultura, alienada , excluída do mundo e de si mesma, há,
dessa





A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM A HORA DA ESTRELA

 “Os meus desacertos foram a fonte inevitável da
minha caminhada vã em busca dos êxitos”.
(FÁBIO PIRAJÁ)
  
     INTRODUÇÃO

A Hora da Estrela é o último romance publicado em vida por Clarice Lispector, escrito
em 1977. O processo de escrita de Clarice é sempre original e com um estilo incomparável. A
linguagem da escritora, considerada introspectiva e intimista, despertou o interesse da crítica,
gerando uma imensa gama de interpretações e reflexões acerca de seu estilo narrativo; de questões
filosófico-existencialistas e da representação do universo feminino em suas obras.
Em A Hora da Estrela, Clarice Lispector cria um narrador masculino para contar as
aventuras – ou desventuras - de uma nordestina na grande cidade do Rio de Janeiro. Se em outras
obras de Lispector a mulher aparece representada como protagonista da história e sempre com seus
conflitos interiores, não conseguindo se expressar e nem fazer valer suas vontades que ficam retidas
em um universo imaginário, nessa obra a autora tenta se livrar da introspecção através do narrador
Rodrigo S.M, criando um novo modo de narrar em contraposição a seus hábitos.
Lispector inventa Rodrigo e cria a personagem Macabéa que será revelada aos poucos,
como uma mulher feia, raquítica, sem cultura, alienada , excluída do mundo e de si mesma, há,
dessa forma, a construção de uma identidade feminina altamente estereotipada. Transgredindo
novamente todo e qualquer modelo de narrativa presentes no cânone literário, a autora intimista e
psicológica, desloca seus leitores para a mais profunda investigação do abismo interior de seus
personagens. Essa personagem feminina em questão não terá conflitos interiores, ao contrário de
outras mulheres representadas em outros textos de Clarice. Não é como Laura do conto A Imitação
da Rosa; uma mulher comum, qualquer, sempre em casa, retida em si mesma ou nas malhas da
memória, tão pouco como Ana, personagem do conto Amor, que não consegue se libertar de sua
condição de mulher, cujo papel limita-se a cuidar dos afazeres da casa. Macabéa será representada
como um ser feminino vítima de uma repressão cultural recorrente de sua infância vivida no sertão
de Alagoas. Essa personagem pertence a classe dos marginalizados, que para a sociedade carioca da
década de 70 e inclusive para o narrador Rodrigo S.M vai ser o estranho, o outro. Assim, Macabéa é
descrita como uma mulher excluída do contexto social, ela não se reconhece na grande cidade
capitalista em que vive, não sabe quem é, e tão pouco se interroga sobre sua vida, como o próprio
narrador a define, “vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso
dispensável.”(LISPECTOR, 1977, p.29).
Dessa forma, Macabéa encontra-se sem uma identidade definida e unificada. É pela voz
do narrador Rodrigo que acontece uma busca pela identidade que vai sendo construída aos poucos,
uma identidade fragmentada que vai se moldando entre os questionamentos e as dúvidas do
narrador-escritor em relação a vida e a literatura, por meio de uma linguagem simples que contrapõe
seus hábitos é que a nordestina ganha forma. Um estereótipo de uma migrante nordestina que traz
no rosto um sentimento de perdição, uma personagem feminina descrita de maneira transgressora,
desestabilizando estereótipos de outras mulheres representadas nas obras do cânone literário, pois
Macabéa não apenas seguirá o código ideológico referente ao papel da mulher na sociedade , como
também representará tudo o que há de feio, desagradável, disforme, indecoroso e indecente na
sociedade. Assim, ela fará parte da classe dos marginalizados e excluídos.
Portanto, em A Hora da Estrela, Lispector desvenda diferentes identidades emergentes
na literatura. Nessa obra, nasce uma trama recheada de críticas sociais, contrariando sua trajetória
literária, até então criticada negativamente por não estar engajada em nenhuma luta política e social.
A visão da presença de elementos sociais na produção literária de Clarice não minimiza seu valor
estético, antes amplia o entendimento da luta permanente da escritora com o signo lingüístico e com
as estruturas narrativas na tradição literária brasileira.

As relações dialógicas no discurso literário
Rodrigo S.M, um escritor que questiona e problematiza seu processo de escrita.
Macabéa, migrante nordestina em uma cidade toda feita contra ela. O que há de comum entre esses
dois personagens e até que ponto Clarice sustenta o falso autor de seu livro?
Buscando respostas a essas questões, a análise recaíra sobre o processo de representação
e auto-representação verificando como se apresenta a configuração do discurso por meio das
personagens Rodrigo e Macabéa. Para isso, será utilizado como referencial teórico os estudos
realizados por Mikhail Bakhtin, bem como a fortuna crítica da autora Clarice Lispector.
Segundo Bakhtin, a compreensão de que a existência ocupa lugar na fronteira do “eu” com o
“outro” determina o caráter social da vida humana, que se realiza através da linguagem. Portanto, a
linguagem é um instrumento de interação social, visto que:
[...]a palavra penetra literalmente em todas relações entre indivíduos, nas relações de colaboração,
nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político,
etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a
todas as relações sociais em todos os domínios.(BAKHTIN, 1997, p. 41)
Dessa concepção de linguagem, que percebe a palavra permeando toda e qualquer atividade
humana, Bakhtin(1993) retira o seu conceito básico de dialogismo, isto é, a relação de sentido que
ocorre entre dois enunciados, cada um deles social e ideologicamente situado. Essa relação pode
verificar-se em enunciados de falantes diferentes, por meio do chamado diálogo composicional ou
dramático, ou principalmente no enunciado de um só falante, configurando o chamado dialogismo
interno. Isso se compreende melhor a partir da noção da língua como um elemento vivo, mutável,
em constante evolução. Para Bakhtin(1993) a língua só se realiza através do processo de
enunciação, que compreende não só a matéria lingüística, mas o contexto social em que o
enunciado se manifesta. Disso decorre que o “discurso é um fenômeno social em todas as esferas de
sua existência” (BAKHTIN, 1993, p.71), e traz para dentro de sua estrutura sintática e semântica
outras vozes, outros discursos, igualmente situados social e ideologicamente e que, além disso, ao
serem citados, não perdem, de todo, sua forma e conteúdo.
O discurso efetivo de alguém é, assim, o resultado da interação entre os processos
ideológicos e os fenômenos lingüísticos. O dialogismo bakhtiniano adquire novas e mais complexas
significações quando aplicado à literatura, notadamente na questão do discurso no romance.
Discorrendo sobre o assunto, Bakhtin declara que “o romance, tomado como conjunto, caracterizase
por ser um fenômeno pluriestilístico, porque, nele, diversas e heterogêneas unidades estilísticas
se encontram, não de forma estanque, mas harmoniosamente, submetidas ao estilo maior do
conjunto” (73). Noutras palavras, cada uma dessas unidades se individualiza e diferencia nos planos
vocabular, sintático e sobretudo semântico, mas se relaciona com as outras unidades estilísticas,
todas elas portadoras de visões de mundo, de modo a construir a visão conflituosa e crítica da
sociedade que o estilo do romance pretende representar.
O romance é também plurivocal, porque, nele, também se apresentam diferentes línguas e
vozes sociais (“dialetos sociais, maneirismos de grupo, jargões profissionais, linguagens de gêneros,
fala de gerações, das idades, etc.”), que possibilitam ao romance organizar e difundir seus temas,
abrindo-se à complexidade geralmente conflituosa das sociedades modernas, nomeadamente
burguesas em que este gênero literário costuma inspirar-se.
A idéia de que um enunciado está sempre voltado para outro repete-se e ganha maior grau de
complexidade quando Bakhtin se refere aos fenômenos específicos do discurso com suas variedades
de formas e graus de orientação dialógica. Na visão bakhtiniana, o discurso está sempre voltado
para seu objeto (tema) que já traz no bojo idéias de outros falantes. Em conseqüência, o discurso é
sempre levado dialogicamente ao discurso do outro, repleto de entonações, conotações e juízos
valorativos. Assimila o outro discurso, refuta-o, funde-se com ele, e, assim, acaba por constituir-se
enquanto discurso. Enfim, o discurso forma-se a partir das relações dialógicas com outros discursos,
que influenciam o seu aspecto estilístico. Bakhtin(1993) ressalva que o discurso é “diálogo vivo”;
por isso, está sempre voltado para a réplica, para a resposta que ainda não foi dita, mas que é
provocada e, conseqüentemente, passa a ser esperada. Todo falante espera ser compreendido, espera
a resposta, a objeção ou a aquiescência; por isso orienta seu discurso para o universo do ouvinte;
com isso acrescenta novos elementos ao seu discurso.

O Existencialismo em A hora da estrela

A partir de estudos feitos sobre a obra A hora da estrela, de Clarice Lispector, e
sobre pontos relevantes em O Ser e o Nada, de Jean-Paul Sartre, busca-se analisar, neste
artigo, a trajetória da protagonista Macabéa, tomando como base conceitos existencialistas,
como as noções do ser “em si” e o ser “para si” presentes na obra sartreana.
Levando em consideração que o ser “em si” é a aparição, é aquilo que se manifesta,
fechado em si, não se opõe ao ser porque não tem consciência de si, não tem um dentro que se
contrapõe a um fora, é a essência acabada, definida.
Enquanto o primeiro é, o “para si” é o que não é, ou seja, este tem consciência de si,
não é um ser inerte. Antes é jogado no mundo e se constitui como pessoa, como sujeito
relacionando-se com o fenômeno de ser, com o “em si” e com o outro para construir sua
essência. Antes dessa relação, o “para si” é vazio, é nada de ser, onde se completa na busca do
que está fora de si.
A narrativa A hora da estrela inicia-se contando passo a passo a angústia de escrever
sobre uma moça de existência questionável, sendo necessário tornar visível essa história.
A jovem Macabéa que aos dois anos de idade perdera os pais no sertão de Alagoas e
que passa a viver na capital Maceió com sua tia beata, tinha uma magreza espantosa, ombros
curvos, encardida, rosto amarelado e com manchas, sendo apresentada nas primeiras páginas
do romance como uma moça anônima, pois ela ainda não tinha semeado a emoção de viver:
“já que sou o jeito é ser” 2.
Desde que nascera, Macabéa “vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o
melhor”3, o ser “em si” se sobressai, ela simplesmente é, ou seja, ela é jogada no mundo, um
objeto que não tem liberdade, resta reconhecer e dar sentido a essa existência. A interação
1Docentes do curso de Letras, turma 2009.2, Universidade do Estado da Bahia - Departamento de
Ciências Humanas e Tecnológicas - Campus XVI – Irecê - BA
**Professor Orientador
2 Idem, 1998 p. 33
3 Idem, 1998 p. 23
com o outro faz com que o ser humano se perceba, exista, mas Macabéa não existe para se
própria, ela se desconhece.
--- que ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se
ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si
em si mesma.
Jean-Paul Sartre considera em sua teoria que “A existência precede a essência”.
Partindo desse pressuposto, nota-se que para o ser humano existir ele necessita ter
características notáveis, definir-se, ter consciência de si, mas a figura de Macabéa ainda
cristaliza a idéia de completude, de um ser acabado, sem questionamentos. Um ser “em si”
não dispõe de um projeto a ser cumprido, remete-se a um ser maleável que enquanto não
tomar conhecimento de si e assim promover mudanças, mostrar potencialidades e,
conseqüentemente, abolir a idéia de essência definida, se reduzirá ao nada.
O ser “em-si” não possui um dentro que se oponha a um fora e seja análogo a um
juízo, uma lei, uma consciência de si. O “em-si” não tem segredo é maciço.5
Datilógrafa era sua profissão. Sua tia antes de morrer lhe ofereceu este curso, um
favor que lhe proporcionou a dignidade e a empregou na cidade do Rio de janeiro, porém
Macabéa acreditava-se feliz, por isso, não sonhava alto. A felicidade para ela fazia parte da
rotina “Ela pensava que a pessoa era obrigada a ser feliz. Então era” 6.
A convivência com sua tia, seu Raimundo, Olímpico e Glória deixaram marcas que
tornavam ainda mais difícil a sua compreensão e transcendência, transformando-a em um ser
“em si”, este ser que ainda desconhecia a liberdade que faz da vida uma constante angústia,
um dualismo acarretado de responsabilidades na construção do seu projeto futuro, sendo
assim, um ser “para-si”.
Glória, talvez por remorso de ter tomado Olímpico, namorado de Macabéa, indicalhe
uma cartomante. Macabéa decide procurá-la, uma decisão que mudará sua vida. Esta lhe
revela o seu passado, presente e futuro. Macabéa sente sua existência, pois aquela que “Nunca
pensara em “eu sou eu”7, estava agora “grávida de futuro” 8..
Ao observar as coisas que existia na casa da cartomante, Macabéa se encontra no
artificial do ambiente, agora ela sabe que não é. É o outro (para si) e as coisas da casa (em si)
que revela quem ela é, e quem ela precisa “vir-a-ser”.
Enquanto isso olhava com admiração e respeito a sala onde estava. Lá tudo era de
luxo. Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás. E até flores de plástico. Plástico
era o máximo estava boquiaberta. 9
4 Idem, 1998 p. 24
5 SARTRE, 1943 p 39.
6 LISPECTOR, 1998 p. 27
7 LISPECTOR, 1998 p. 36
8 LISPECTOR, 1998 p. 79
9 LISPECTOR, 1998 p. 72
Este reconhecimento agora faz parte de sua existência, pois, ao se dar conta dessa
realidade, ela sai da casa da cartomante cheia de si, de sonhos, de objetivos que “até para
atravessar a rua ela já era outra pessoa”. 10
Então, se o conhecer pertence somente ao para-si, isso se deve ao fato de que
somente o para-si é o próprio aparecer a si como não sendo aquilo que conhece. E,
como aqui aparência e ser constituem a mesma coisa, já que o para-si tem o ser de
sua aparência-, devemos concluir que o para-si encerra em seu ser o ser do objeto
que ele não é, na medida em que em seu ser está em questão o seu ser como não
sendo este ser.11
Ao dar o passo para descer da calçada, Macabéa é atropelada por um luxuoso
Mercedes amarelo, batendo a cabeça no meio fio, ela fica ferida e muitas pessoas se
aproximam e a observam, dando-lhe a certeza de sua existência “Hoje, pensou ela, hoje é o
primeiro dia de minha vida: nasci.12”. Esta é a sua hora da estrela em que lhe concretiza a
consciência de si, do seu “para si”, encerra-se a sua completude, surgindo o seu verdadeiro
“para-si”, cheio de angústias, com perspectivas futuras ela encerra em seu ser o objeto que ela
não é, este que também é um ser para morte.
Macabéa traz consigo a falta do questionamento sobre sua vida, ela desconhece
qualquer reflexão sobre as coisas que a cercam e se satisfaz com a rotina proporcionada pelas
pessoas que a tornava cada vez mais um ser “em si”, manipulável, de uma ingenuidade que
beirava a estupidez. Possuía uma essência definida, ou seja, um objeto sem utilidade na
sociedade em que estava inserida.
Através da leitura da obra sartreana, podemos notar o ser “em si” e o “para si” na
trajetória da protagonista clariceana de forma clara, partindo de um olhar direcionado as
características de Macabéa que confirmam os conceitos existenciais defendidos por Sartre.
10 LISPECTOR, 1998 p. 79
11 SARTRE, 1943 p. 237
12 LISPECTOR, 1998 p. 80
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Especial Ed. Rio de Janeiro: Rocco,1998.
SARTRE, Jean- Paul. O Ser e o Nada- Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Rio de Janeiro:A Hora da Estrela, de Clarice Lispector

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