sexta-feira, 2 de maio de 2014
quinta-feira, 1 de maio de 2014
Casa de Pensão, de Aluísio de Azevedo
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http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000014.pdf
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Análise da obra
A obra foi baseada num fato real: a Questão Capistrano, crime que sensibilizou o Rio de Janeiro em 1876/77, envolvendo dois estudantes, em situação muito próxima à da narração de Aluísio Azevedo. Neste livro, o autor estuda as influências da sociedade sobre o indivíduo sem qualquer idealização romântica, retratando rigorosamente a realidade social trazendo para a literatura um Brasil até então ignorada.
Autor fiel à tendência naturalista difundida pelo realismo, Aluísio Azevedo focaliza, nesta obra, problemas como preconceitos de classe, de raças, a miséria e as injustiças sociais. Descreve a vida nas pensões chamadas familiares, onde se hospedavam jovens que vinham do interior para estudar na capital. Diferente do romantismo, o naturalismo enfatiza o lado patológico do ser humano, as perversões dos desejos e o comportamento das pessoas influenciado pelo meio em que vivem.
Casa de Pensão é uma espécie de narrativa intermediária entre o romance de personagem (O Mulato) e o romance de espaço (O Cortiço). Como em O Mulato, todas as ações ainda estão vinculadas à trajetória do herói, nesse caso, Amâncio de Vasconcelos. Mas, como em O Cortiço, a conquista, ordenação e manutenção de um espaço é que impulsiona, motiva e ordena a ação. Espaço e personagem lutam, lado a lado, para evitar a degradação.
As teses naturalistas, especialmente o Determinismo, alicerçam a construção das personagens e das tramas.
Romance naturalista de 1884, em que o autor, de carreira diplomática bastante acidentada, move personagens que se coadunam perfeitamente com a análise dos críticos de que seus tipos são, via de regra, grosseiros, não se distinguem pela sutileza da compreensão, nem pela frescura dos sentimentos. São eixos de relações da estrutura da presente narrativa a Província - Maranhão, a Corte - Rio de Janeiro, a casa paterna e a casa de pensão.
Estilo
O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão desde a abertura do romance, quando Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes...". O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro." Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem.
Está presente também na obra o sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. Como já mencionado, a estória do romance se baseia num caso real.
Linguagem
Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos.
Não se pode dizer que a linguagem do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.
Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise (é uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal). São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Se me não engano, você está certo." Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum.
Foco narrativo
O autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais.
Temática
Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. Em O Cortiço o meio social é mais baixo; na Casa de Pensão é médio.
Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na Casa de Pensão de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor...
Personagens
Os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais:
Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos - (João Capistrano da Silva) estudante, acusado de sedução. Foi absolvido.
Amélia ou Amelita - (Júlia Pereira) a moça seduzida, pivô da tragédia.
Mme. Brizard - (D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino) é uma viúva, dona da casa de pensão:
João Coqueiro - Janjão - (Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido).
Dr. Teles de Moura - (Dr. Jansen de Castro Júnior) advogado da família da moça.
Enredo
Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.
Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, forçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires.
Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.
"Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores."
A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro...
O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê-la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...
Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.
"Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca.
Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado...
Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.
Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos.
A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...
Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris...
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000014.pdf
Análise da obra
A obra foi baseada num fato real: a Questão Capistrano, crime que sensibilizou o Rio de Janeiro em 1876/77, envolvendo dois estudantes, em situação muito próxima à da narração de Aluísio Azevedo. Neste livro, o autor estuda as influências da sociedade sobre o indivíduo sem qualquer idealização romântica, retratando rigorosamente a realidade social trazendo para a literatura um Brasil até então ignorada.
Autor fiel à tendência naturalista difundida pelo realismo, Aluísio Azevedo focaliza, nesta obra, problemas como preconceitos de classe, de raças, a miséria e as injustiças sociais. Descreve a vida nas pensões chamadas familiares, onde se hospedavam jovens que vinham do interior para estudar na capital. Diferente do romantismo, o naturalismo enfatiza o lado patológico do ser humano, as perversões dos desejos e o comportamento das pessoas influenciado pelo meio em que vivem.
Casa de Pensão é uma espécie de narrativa intermediária entre o romance de personagem (O Mulato) e o romance de espaço (O Cortiço). Como em O Mulato, todas as ações ainda estão vinculadas à trajetória do herói, nesse caso, Amâncio de Vasconcelos. Mas, como em O Cortiço, a conquista, ordenação e manutenção de um espaço é que impulsiona, motiva e ordena a ação. Espaço e personagem lutam, lado a lado, para evitar a degradação.
As teses naturalistas, especialmente o Determinismo, alicerçam a construção das personagens e das tramas.
Romance naturalista de 1884, em que o autor, de carreira diplomática bastante acidentada, move personagens que se coadunam perfeitamente com a análise dos críticos de que seus tipos são, via de regra, grosseiros, não se distinguem pela sutileza da compreensão, nem pela frescura dos sentimentos. São eixos de relações da estrutura da presente narrativa a Província - Maranhão, a Corte - Rio de Janeiro, a casa paterna e a casa de pensão.
Estilo
O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão desde a abertura do romance, quando Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes...". O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro." Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem.
Está presente também na obra o sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. Como já mencionado, a estória do romance se baseia num caso real.
Linguagem
Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos.
Não se pode dizer que a linguagem do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.
Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise (é uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal). São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Se me não engano, você está certo." Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum.
Foco narrativo
O autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais.
Temática
Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. Em O Cortiço o meio social é mais baixo; na Casa de Pensão é médio.
Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na Casa de Pensão de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor...
Personagens
Os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais:
Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos - (João Capistrano da Silva) estudante, acusado de sedução. Foi absolvido.
Amélia ou Amelita - (Júlia Pereira) a moça seduzida, pivô da tragédia.
Mme. Brizard - (D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino) é uma viúva, dona da casa de pensão:
João Coqueiro - Janjão - (Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido).
Dr. Teles de Moura - (Dr. Jansen de Castro Júnior) advogado da família da moça.
Enredo
Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.
Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, forçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires.
Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.
"Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores."
A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro...
O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê-la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...
Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.
"Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca.
Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado...
Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.
Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos.
A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...
Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris...
QUESTÃO
CAPISTRANO
Notório crime passional ocupou as
manchetes dos jornais cariocas e foi inspiração para o enredo do romance
"Casa de Pensão"
Em janeiro de 1876, a cidade do
Rio de Janeiro foi assolada pela notícia de um crime envolvendo dois amigos. A
história, que tomou ares de novela ao dividir opiniões, suscitar debates e
causar comoção, ficou conhecida como Questão Capistrano, devido ao sobrenome de
um dos jovens envolvidos na tragédia.
Pode-se considerar que o caso de polícia,
protagonizado pelos inseparáveis amigos João Capistrano da Cunha e Antônio
Alexandre Pereira, foi popularizado porque continha todos os ingredientes de
uma boa trama: romance, amizade, honra, vingança e assassinato. Assim, a
opinião pública envolveu-se nos acontecimentos, dividiu-se em juízos, mas,
sobretudo, polemizou.
O tema mereceu destaque na
biografia de Aluísio Azevedo escrita por Raimundo de Menezes que, no capítulo
"O crime do estudante Capistrano", relata as minúcias do acontecido.
Eis como o enredo que inspirou o romance "Casa de Pensão", de Aluísio
Azevedo, principia...
A viúva baiana Júlia Clara
Pereira, com dificuldades para sustentar as despesas da família somente com a
quantia advinda das aulas de piano, delibera alugar outra casa, maior e mais
confortável, que lhe possibilitaria alugar alguns quartos e, com isso,
prosperar sua renda mensal. Assim, muda-se com os filhos Antônio Alexandre
Pereira e Júlia Pereira para a rua do Alcântara, sob o número 71, local em que
estabelece uma casa de pensão.
Entre os primeiros pensionistas
encontra-se o paranaense João Capistrano da Cunha, colega de Antônio Alexandre
na Escola Politécnica, considerado confiável e, portanto, acolhido
carinhosamente no seio da família Pereira.
Com o convívio cotidiano,
Capistrano e Júlia enlaçam um namoro, no qual a concupiscência leva o
desventurado jovem a adentrar o quarto da moça, em uma madrugada de janeiro de
1876, e no ímpeto violentá-la.
Após a filha relatar o acontecido
na noite anterior, Dona Júlia exige explicações do estudante que, com
pretextos, intenta adiar o matrimônio, compromisso que repararia o dano
causado. Feita a promessa, João Capistrano atravessa semanas e meses sem movimentar-se
no sentido do cumprimento de sua palavra até que desaparece de vez, sem deixar
notícias. Com isso, a família apresenta queixa-crime na delegacia mais próxima,
acompanhados do causídico dr. Jansen de Castro Júnior, para pleitear uma
indenização de 50 contos pelo prejuízo à honra da menina Júlia.
O julgamento tem início e a
imprensa não tarda em estampar seus desdobramentos nas colunas diárias sobre o
caso, inflamando a opinião pública a se manifestar ora a favor do casamento
reparador dos danos causados ora a favor da imputação de uma severa pena ao
jovem sedutor.
No Tribunal, João Capistrano da
Cunha tem como defensores os advogados Busch Varela e Duque Estrada Teixeira,
além do conselheiro Saldanha Marinho. Figura como promotor público interino o
dr. Ferreira de Oliveira, que produz vigorosa acusação. Completando o cenário,
tem-se uma agigantada massa popular desejosa de acompanhar os detalhes do
julgamento.
Após a contestação do dr. Bush
Varela, há a réplica do promotor, seguida pelos dizeres de Duque Estrada
Teixeira e Saldanha Marinho. O resultado dos enérgicos debates é a absolvição
do jovem Capistrano que, para festejar o veredicto favorável, reúne os amigos
no Hotel Paris, em festança exuberante comentada por toda sociedade fluminense.
Para Antônio Alexandre, a
irresignável sentença demandaria que ele próprio tomasse uma atitude para
restaurar a honra de sua família e, principalmente, de sua irmã, cujo
incessante choro denota a vergonha e a profunda prostração. Deste modo,
articula por três dias uma possível solução que impusesse ao ex-amigo uma
lição.
Assim, o irmão inconformado sai à
procura do estudante, encontrando-o à rua da Quitanda, quando caminhava para
casa de um negociante. Empunhando uma arma de 25 cápsulas, atira em João
Capistrano pelas costas, ceifando-lhe a vida em plena luz do dia. E, após
tentar sem sucesso a fuga, é preso em flagrante e entregue à Justiça.
Os alunos da Politécnica,
comovidos pelo crime e enlutados, homenageiam o falecido, tornando o enterro
praticamente uma glorificação pública. Até o próprio Visconde do Rio Branco,
diretor da Escola, suspende as aulas por dois dias.
Pelo assassinato, Antônio
Alexandre é levado a julgamento a 20 de janeiro de 1877 e tem a defesa
elaborada pelo já conhecido dr. Jansen de Castro Jr. Neste momento, o público
que alimentava antipatias pela família Pereira, compadece-se pelo irmão que
agiu em defesa da honra. Com isso, o mesmo júri que remiu Capistrano também
absolveu seu assassino... por unanimidade de votos! E, por paradoxal que
pareça, aqueles que na véspera homenageavam o colega morto foram quem também
ovacionaram o amigo que ganhava a liberdade.
JORNAIS DA ÉPOCA
Na Gazeta de Notícias, de 20 de
novembro de 1876, lia-se:
"A população de nossa cidade
foi ontem sobressaltada por um triste acontecimento, terrível desenlace de um
drama, que há pouco, todos presenciamos e que além de duas famílias, veio
encher de luto a mocidade acadêmica, roubando-lhe um de seus membros.
(...)
Às dez horas da manhã, na rua da
Quitanda, o estudante da escola Politécnica João Capistrano da Cunha, que há
três dias o júri absolveu da acusação de ter violentado D. Júlia, foi
assassinado com dois tiros de revólver por Alexandre Pereira, irmão de D.
Júlia."
Já o conservador Jornal do
Comércio, sob o título ASSASSINATO CAPISTRANO, assim mesmo, em caixa alta,
estampava em suas páginas do dia 21 de novembro:
"Ontem, logo depois do
meio-dia, algumas ruas das mais centrais, e com especialidade a da
Quitanda..."
E segue o relato, em linguagem
esmerada, que lembra a da ficção, para finalmente fechar o texto informando que
os advogados que cuidaram da defesa e absolvição de Capistrano levaram-no ao
cemitério:
"Carregaram a princípio o
caixão os Srs. conselheiro Saldanha Marinho, Drs. Duque Estrada Teixeira, Busch
Varela, Pinto Júnior e os Srs. Matos Cruz e Nunes de Sá. Era na verdade uma
cena bem comovente aquele féretro, rodeado de mancebos que, trajados de preto e
com a tristeza estampada no rosto iam levar à última morada o companheiro de
todos os dias, tanto nas árduas lidas do estudo, como nos descuidosos prazeres
da mocidade."
DA REALIDADE À FICÇÃO
Observa-se, portanto, que o crime
foi narrado por vários gêneros diferentes, mostrando-se arqueável e apto a
transitar na convergente fronteira da realidade jornalística e da ficção
literária. Assim, a Questão Capistrano resgata a dicotomia emblemática da
fatualidade e da ficção, exemplificada com maestria na trama naturalista de
Aluísio Azevedo.
As várias Canções do Exílio
Parodiar a Canção do exílio,
de Gonçalves Dias, tornou-se aos poucos uma conduta literária. Os poetas Oswald
de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e José Paulo Paes, entre
outros, serviram-se desse poema, para, a partir da matriz romântica, fazer uma
espécie de desvelamento do país. O nativismo de outrora desaparece em meio ao
olhar crítico, que, a cada novo momento, apanha uma faceta do Brasil e, ao
mesmo tempo, reavalia um ponto de vista. Oswald não desmerece a riqueza
nacional, “Minha terra tem mais ouro/ Minha terra tem mais terra” (Canto do
regresso à pátria), porém, remete-se a ela lembrando-se também dos que a
manusearam em benefício de poucos: “Minha terra tem palmares”. A astúcia de
Oswald é admirável. Ele encontra convivendo ao lado da riqueza natural (“palmeiras”)
a dor e a miséria que marcam a escravidão (“palmares”). No entanto, o poeta não
deixa de ser também inocente. Ao reavivar o estigma da escravidão, Oswald
desmistifica, de um lado, os atrativos e as benesses do solo pátrio, de outro,
entretanto, parece retomar a inocência de antes, na medida em que mistifica a
modernização11.
Ao final do poema é feita uma espécie de súplica:
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E
o progresso de São Paulo
José Paulo Paes, por sua vez,
valoriza em sua versão o entredito. Diferente do momento histórico do poeta
modernista, o terreno sobre o qual José Paulo se desloca pode ser considerado
minado. A dificuldade de se impor às claras contra a ditadura o obriga a ser um
homem de meias palavras. Mas são murmúrios que dizem muito dos apuros do
cotidiano. O sussurro e a elipse são reveladores do sistema de opressão. O
poema Canção de exílio facilitada limita a conversa ao mínimo, e o
mínimo faz as palavras se encherem de significado:
lá?
ah!
sabiá…
papá…
maná…
sofá…
sinhá…
cá?
bah!
Embora o pano de fundo se
mantenha, a versão de Cacaso é mais lúdica, mais irônica e menos elíptica, o
humor lhe serve de instrumento para abordar a tensão e os dilemas que faziam do
cotidiano uma zona de combate (ainda que nesse combate não pudesse ser incluída
a maioria dos brasileiros). O poema resume em sua trajetória (as alamedas são
muitas e variadas entre si) um modo de ver o Brasil que pode ser visualizado do
ponto de vista romântico, bem-humorado ou lúdico e, ao mesmo tempo,
desencantado. Caminha-se, assim, das belezas às mazelas nacionais:
Jogos florais12
I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho
vira direto vinagre.
II
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
(será mesmo com 2 esses
que
se escreve paçarinho?)
temos a impressão de avistar em Jogos
florais um
pouco da nostalgia da Canção do exílio: a natureza em seu esplendor e o
saudosismo que faz embevecer o espírito colocam-se por instantes. O sentimento
teria sido preservado se não se substituísse notadamente o “sabiá”: “Minha
terra tem palmeiras/ onde canta o tico-tico.” O atrevimento e a malícia que se
associam ao “tico-tico” passam a habitar naturalmente a imagem do “sabiá”; e
vice-versa, a amabilidade que define o sabiá marca o comportamento do
“tico-tico”. O “sabiá” torna-se uma ave de rapina: “vive comendo o meu fubá”.
Alude-se aqui ao choro de
Zequinha de Abreu Tico-tico no fubá. Cacaso mostra-se consciente do
alcance dessa parodia no momento em que mescla com precisão o saudosismo do
poema romântico à ludicidade da canção. A troca das aves reforça os traços de
cada um dos elementos em jogo. Acontece que com isso se invalida aquela
nostalgia da abertura. A inocência, não por acaso, se esvai e, nesse escoar,
cede a vez a uma visão de mundo que se mostra menos cândida e mais analítica
sobre o território nacional. Basta ler com atenção a segunda estrofe para se
notar o olhar de reprovação com relação ao desenvolvimento do Brasil e especialmente
ao “milagre econômico”, que parecia ser mesmo uma bênção: “a água já não vira
vinho/ vira direto vinagre”.
Associa-se o avanço da economia
ao relato bíblico, sinal com o qual Jesus revelou-se como o cordeiro de Deus a
ser sacrificado para salvar os homens. Se o intuito não é necessariamente
expressar o grau de falsidade do “milagre econômico” (os historiadores se
encarregaram de examinar em detalhes as contradições que o constituíam),
associar ao milagre o relato bíblico ajuda a escancarar a virulência da modernização.
A velocidade do processo é tamanha que se converte a “água” em “vinagre”. O Messias daqui não veio redimir o indivíduo, livrando-o de seus pecados, mas,
sim, submetê-lo ao consumo, ao jogo de interesses, ao Deus dinheiro, etc. O
poeta retira da modernização o brilho, a áurea de felicidade e a sensação de
bem-estar que a ela se associam para cativar o indivíduo e prendê-lo em sua
rede. A exclusão de tais mecanismos de persuasão faz sobressair o produto da
modernização em curso: a agressividade de suas ações.
Havíamos
visto em Canto do regresso à pátria, de Oswald de Andrade, uma mudança
que extraiu do Brasil majestoso o custo desta majestade: “Minha terra tem
palmares”. A sacada do poeta modernista foi bem aproveitada em Jogos florais.
Cacaso amplia o alcance dessa modificação, escrevendo em
maiúsculo, para surtir ainda mais efeito, o que antes vinha meio acanhado:
“Minha terra tem Palmares”.
A falta de liberdade de expressão
é também a perda da Liberdade. O fato de se recordar, em plena ditadura
militar, do ambiente onde os negros escravizados refugiavam-se para se livrar
do jugo dos senhores de escravo é bem sintomático da condição dos núcleos de
resistência ao longo do regime militar. Os membros da guerrilha urbana são
também fugitivos. E os órgãos de vigilância corresponderiam mutatis mutandis
aos capitães do mato de outros tempos. Dois momentos históricos se cruzam
e, ainda que exijam dois modos de avaliar o tema da opressão, levando-se em
conta todas as diferenças que os individualizam, há que se considerar, no
entanto, o ambiente de opressão, o clima de terror que autoriza uma associação
como esta, favorecendo, então, o confronto de dois períodos da história
brasileira. É uma relação que vem a calhar. Ou viria, não fosse por certo o
temor de ser um dia, quem sabe, uma das vítimas da repressão: “memória cala-te
já.”
O receio de se expor em demasia
reflete o cotidiano de quem se sente mesmo intimidado pelos acontecimentos e
deles não consegue se desvincular a fim de lutar ao menos contra si mesmo. Os
versos finais da primeira estrofe ensaiam uma reação que parece acentuar esse
sentimento, pois, em se tratando de atenuar o que se disse até o momento, se
produz uma cortina de fumaça: “Peço licença poética/ Belém capital Pará”.
A saída do poeta é fazer do verso
“memória cala-te já” uma rima com “Belém capital Pará”, que, diferentemente do
que se constata no Poema de sete faces, “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu
me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”, é uma solução em Jogos
florais. Assim como ajuda a despistar também o disfarce da embriaguez:
“dado o avançado da hora/ errata e efeitos do vinho”
A fonte de referência parece ser
de novo Carlos Drummond de Andrade: “mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a
gente comovido como o diabo.” A bebida pode mudar, mas não muda, porém, a força
do álcool e sua capacidade de alterar o eixo do indivíduo, que fica mais “comovido”
e mais falante do que deveria, deixando escapar naturalmente o que há muito
está reprimido. Esse efeito do álcool se adequa bem aos movimentos da paródia:
“a cavaleiro entre a razão desmistificadora (enquanto analisa e ironiza formas
alienadas de dizer) e a pura violência do instinto de morte,”
que não reconhece barreiras. Ainda que se tenha silenciado a
“memória”, e o “vinho” sirva de desculpa, o dedo continua em riste, mesmo em pensamento, como traz ao final Jogos
florais, que anuncia, pelo avesso, os problemas do Brasil. A bola da vez é
o oponente Jarbas Passarinho, ex-ministro da Educação. A pilhéria com seu
sobrenome – “(será mesmo com esses/que se escreve paçarinho?)” – é uma
maneira de alertar sobre as deficiências do ensino público. Ao inserir tais
versos no poema Cacaso reinicia um discurso que parecia ter sido encerrado, e
sua irreverência, mais uma vez, volta a servir de recurso para abordar o
cotidiano e seus impasses.
Compositores
também escreveram releituras da Canção do Exílio. Na MPB, o exemplo mais
conhecido é a canção "Sabiá", composta por Tom Jobim e Chico Buarque.
A música foi composta pelo Tom, intitulada, a princípio, Gávea. Recebeu, em
seguida, a letra de Chico Buarque e passou a se chamar Sabiá.
Apresentada
no III Festival Internacional da Canção, em 1968, recebeu uma sonora vaia no
Maracanãzinho já que concorria com “Prá não dizer que não falei das flores”, de
Geraldo Vandré, a preferida pelo público. Foi taxada de alienada e desvinculada
da realidade nacional por alguns e de nova “Canção do Exílio” por outros.
Apesar de toda rejeição e polêmica, acabou sendo premiada.
Por
ironia, no final do mesmo ano, os militares baixaram o AI-5 e fecharam o
Congresso. Chico Buarque se viu pressionado a deixar o país. e o sabiá e a
palmeira passaram a ser símbolos, também, do exílio político.
Sabiá
Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir
Cantar uma Sabiá...
Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira que já não há
Colher a flor que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia...
Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer...
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
E é pra ficar
Sei que o amor existe
Não sou mais triste
E a nova vida já vai chegar
E a solidão vai se acabar...
E a solidão vai se acabar...
A
referência ao sabiá e à palmeira já nos remete à Canção do Exílio, de Gonçalves
Dias, mas de uma forma mais triste, melancólica como que para mostrar que essa
volta é impossível.
No
reconhecimento de uma pátria esvaziada e sem perspectiva de modificação
próxima, Chico usa a negação do símbolo palmeira:
"Vou deitar à sombra
de uma
palmeira que já não há
Colher a flor que já não dá"
Colher a flor que já não dá"
Na música
“Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, os valores de sua terra foram
destruídos, mas o “eu” poético tem esperança de voltar e encontrar um novo
tempo capaz de modificar a realidade destruída. Durante toda a canção aparece a
dualidade entre o desejo que se queria real e a realidade que se tem:
“ Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá.”
Como numa
visão premonitória baseada pela situação do país, o autor da letra percebia a
solidão das noites de exílio que iria viver longe das palmeiras e sabiás:
“As noites que eu não queria
E anuncia o dia.”
Mesmo
existindo o sentimento de perda, existencial e político, durante toda a música
ainda há o desejo do regresso para o lugar de paz – a pátria. Se na Canção do
Exílio, de Gonçalves Dias, a pátria corresponde a um lugar de prazer, na música
Sabiá essa pátria foi desfigurada principalmente na sua essência. O exílio é de
todos. O regresso, então, seria a volta a uma realidade diferente do regime
militar vigente na época:
“Vou voltar!
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir
Cantar uma Sabiá”
A
esperança do regresso é viva e a saudade tem um sentido social: a recuperação
da pátria perdida.
Carlos
Drummond de Andrade também escreve a sua Nova canção do exílio, em 1945, que é
dedicada a Josué Montello. Das diferentes leituras do poema Canção do Exílio
que possibilitam o conhecimento da nossa pátria ao mesmo tempo em que nos
reconhecemos como parte dela, é meu preferido.
Drummond,
mais filosófico, reflete, em seu poema, sobre a distância da felicidade
existente na sua terra natal e não tem o tom crítico de Oswald de Andrade e
Murilo Mendes.
O poeta,
em sua releitura, retoma a imagem do sabiá e da palmeira para idealizar um
lugar indeterminado. Na construção “um sabiá, na palmeira, longe” percebe-se a
indeterminação – de qual sabiá? Em que palmeira? Longe onde? Como sabiá e
palmeira já estão plantados na imaginação do leitor, ele apenas os enuncia.
No final
do poema, o poeta inverte a posição do sabiá/palmeira e, além de determinar “a
palmeira, o sabiá”, através do uso do artigo definido, substantiva o advérbio
“longe”, reforçando a ideia de exílio: o “longe”, lugar de onde veio. Esse
afastamento constitui o seu exílio.
Drummond
vai além do nacionalismo, discute sobre os lugares míticos que criamos na
imaginação, em geral associados à terra natal: "onde tudo é belo / e
fantástico: / a palmeira, o sabiá, / o longe".
Nova
Canção do Exílio
Um sabiá
na
palmeira, longe.
Estas
aves cantam
um outro
canto.
O céu
cintila
sobre
flores úmidas.
Vozes na
mata,
e o maior
amor.
Só, na
noite,
seria
feliz:
um sabiá,
na
palmeira, longe.
Onde tudo
é belo
e
fantástico,
só, na
noite,
seria
feliz.
(Um
sabiá,
na
palmeira, longe.)
Ainda um
grito de vida e
voltar
para onde
tudo é belo
e
fantástico:
a
palmeira, o sabiá,
o longe.
O sucesso
alcançado pelo poema Canção do Exílio de Gonçalves Dias tornou-se o grande
paradigma do nacionalismo literário no Brasil. Vários poetas, posteriores a
Gonçalves Dias, seguiram a mesma linha explicitando um olhar otimista e, ao
mesmo tempo, saudoso sobre o país.
Casimiro
de Abreu, contemporâneo de Gonçalves Dias, usa a mesma temática em alguns de
seus poemas.
Em 1855,
Casimiro de Abreu também escreveu uma canção do exílio:
Eu nasci
além dos mares
Eu nasci
além dos mares:
Os meus
lares,
Meus amores
ficam lá!
― Onde
canta nos retiros
Seus
suspiros,
Suspiros
o sabiá!
Oh! Que
céu, que terra aquela,
Rica e
bela
Como o
céu de claro anil!
Que
seiva, que luz, que galas,
Não
exalas,
Não
exalas, meu Brasil!
Oh! Que
saudades tamanhas
Das
montanhas,
Daqueles
campos natais!
Que se
mira,
Que se
mira nos cristais!
Não amo a
terra do exílio
Sou bom
filho,
Quero a
pátria, o meu país,
Quero a
terra das mangueiras
E as
palmeiras
E as
palmeiras tão gentis!
Como a
ave dos palmares
Pelos
ares
Fugindo
do caçador;
Eu vivo
longe do ninho;
Sem
carinho
Sem
carinho e sem amor!
Debalde
eu olho e procuro...
Tudo
escuro
Só vejo
em roda de mim!
Falta a
luz do lar paterno
Doce e
terno,
Doce e
terno para mim.
Distante
do solo amado
―
Desterrado ―
a vida
não é feliz.
Nessa
eterna primavera
Quem me
dera,
Quem me
dera o meu país!
(Casimiro
de Abreu)
Em outro
poema, datado de 1856, Casimiro de Abreu usa como epígrafe os dois primeiros
versos do poema de Gonçalves Dias, mostrando as qualidades que existem
amplamente no Brasil por ser a “minha terra” e que não existem em qualquer
outro lugar.
Minha
Terra
Minha
terra tem palmeiras
Onde
canta o sabiá.
(Gonçalves
Dias)
Todos
cantam sua terra,
Também
vou cantar a minha,
Nas
débeis cordas da lira
Hei de
fazê-la minha rainha;
— Hei de
dar-lhe a realeza
Nesse
trono de beleza
Em que a
mão da natureza
Esmerou-se
em quanto tinha.
Correi
pras bandas do sul:
Debaixo
dum céu de anil
Encontrareis
o gigante
Santa
Cruz, hoje Brasil;
— É uma
terra de amores
Alcatifada
de flores
Onde a brisa
fala amores
Nas belas
tardes de Abril.
Tem
tantas belezas, tantas,
A minha
terra natal.
Que nem
as sonha um poeta
E nem as
canta um mortal!
— É uma
terra encantada
— Mimoso
jardim de fada —
Do mundo
todo invejada,
Que o
mundo não tem igual.
Não, não
tem, que Deus fadou-a
Dentre
todas — a primeira:
Deu-lhe
esses campos bordados,
Deu-lhe
os leques das palmeiras.
E a
borboleta que adeja.
Sobre as
flores que ela beija.
Quando o
vento rumoreja
Nas
folhagens da mangueira.
É um país
majestoso
Essa terra
de Tupã,
Desd’o
Amazonas ao Prata,
Do Rio
Grande ao Pará!
— Tem
serranias gigantes
E tem
bosques verdejantes
Que
repetem incessantes
Os cantos
do sabiá.
(...)
(Casimiro
de Abreu)
Em sua
“Canção do Exílio” continua seguindo a mesma temática, apenas acrescentando ao
poema uma referência à sua infância, à figura materna e substituindo
“palmeiras” por “laranjeiras”.
Essa
“Canção do Exílio” foi escrita em Lisboa, no ano de 1857. O poema soa como uma
premonição de um desejo que na verdade se realizou, já que morreu aos 21 anos
de idade, em terras brasileiras.
Canção do
Exílio
Se eu
tenho que morrer na flor dos anos
Meu Deus!
não seja já:
Eu quero
ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o
sabiá!
Meu Deus,
eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando
êste ar;
Faz que
eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos
do meu lar!
O país
estrangeiro mais belezas
Do que a
pátria não tem;
E este
mundo não vale um só de beijos
Tão doces
de uma mãe!
Dá-me os
sítios gentis onde eu brincava
Lá na
quadra infantil;
Dá que eu
veja uma vez o céu da pátria,
O céu do
meu Brasil!
Se eu
tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus!
não seja já:
Eu quero
ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o
sabiá!
(Casimiro
de Abreu)
O
modernista Murilo Mendes, em 1930, também revisitou a Canção do Exílio de
Gonçalves Dias. Se o poema de Gonçalves Dias e o Hino Nacional são uma
exaltação ufanista da natureza brasileira, os versos de Murilo Mendes tem
intenção oposta, pois pretendem ridicularizar esse nacionalismo exaltado.
Murilo
escreve sua "Canção do Exílio", empregando o mesmo tom
paródico-piadista de Oswald de Andrade. Em sua “Canção do Exílio”, utiliza o
mesmo humor e sátira de Oswald, porém de forma mais ousada denuncia a invasão cultural
estrangeira no Brasil. Seu poema critica a realidade cultural brasileira. Ele
não aceita tudo o que vêm de fora já que também temos coisas boas que devem ser
valorizadas. As nossas frutas, como são exportadas, tem o preço elevado e o
poeta é um exilado em sua própria terra.
Sua terra
se torna verdadeiramente seu Brasil, quando manifesta a vontade de “chupar uma
carambola de verdade” e de ouvir um sabiá (pássaro ou povo), que tenha certidão
de nascimento brasileira, cantar.
Canção do
Exílio
Minha terra
tem macieiras da Califórnia
onde
cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas
da minha terra
são
pretos que vivem em torres de ametista,
os
sargentos do exército são monistas, cubistas.
Os
filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente
não pode dormir
com os
oradores e os pernilongos.
Os
sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro
sufocado
em terra
estrangeira.
Nossa
flores são mais bonitas
nossas
frutas mais gostosas
mas
custam cem mil-réis a dúzia.
Ai quem me
dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir
um sabiá com certidão de identidade!
(Murilo
Mendes)
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